Critica publicada no Jornal do Brasil
Por Flora Sussekind – Rio de Janeiro – 03.09.1982

 

 

 

 

 

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Hoje é dia de caricatura

É engraçado como muita gente que se dedica a teatro infantil parece ter que pedir desculpas todo o tempo por isso. Um dos procedimentos mais comuns, nesse sentido, é representar efetivamente para um público infantil mas pressupor sempre um espectador adulto e dotado de pontos de referência idênticos aos daqueles envolvidos no espetáculo. É como se, ao invés de fazer “gracinhas” para os amiguinhos, preferissem fazê-las para a titia. E, às vezes, nem um grupo talentoso como o TAPA consegue fugir à regra. Basta observar a linha interpretativa dos atores no recém estreado Tempo quente na Floresta Azul, cartaz do Teatro Gláucio Gill. A opção por um tom caricatural ao extremo a princípio não significa nada de especial. Quando se observa, no entanto, que os atores quase parecem disputar quem é o mais crítico, o mais distanciado de seu personagem, o mais capaz de provocar risinhos cúmplices sobretudo nos espectadores adultos, é que a caricatura deixa de ser apenas um recurso teatral para funcionar quase como uma salvaguarda para o grupo. Os atores vestem suas caricaturas como se dissessem para o espectador: Olha, estou fazendo teatro infantil, mas vejo só como sou crítico e inteligente! A caricatura deixa de funcionar teatralmente e serve de “gracinha” entre amigos. E de compensação simbólica para os envolvidos com o espetáculo. Como se uma pessoa quisesse fazer o papel de lobo mau mas a ela tivesse cabido Chapeuzinho Vermelho. Então, não tem problema. Ela disfarça, atende pelo nome de Chapeuzinho, mas fica avisando todo o tempo ao público que, na verdade, trata-se do lobo mau. Para o seu ego talvez seja bom, mas, para o público, realmente é meio cansativo servir de ponte para as gracinhas alheias. Às vezes deixar uma margem para que o espectador acrescente suas próprias interpretações irônicas, sem que os atores lhe dêem tudo de bandeja, pode ser bastante interessante.

O excesso caricatural sem dúvida prejudica a montagem de Tempo quente na Floresta Azul. A não ser que os espectadores fossem máquinas de riso. Quando tudo é claramente para obter risos, ao contrário, parece haver até um certo constrangimento. Às vezes motivado por cenas sem a menor graça como a entrada do “veado” na floresta. Às vezes pela repetição dos mesmos truques cômicos em demasia. Às vezes porque se tenta fazer do espetáculo uma caricatura do que teatro infantil tem de chato, esquecendo-se, no entanto, que esse tipo de crítica talvez obtivesse maior eco se os espectadores tivessem alguma chance de simpatizar com alguns dos personagens. Mas todos já entram em cena a léguas de distância tanto de seus personagens quanto do público.

Num ponto, entretanto, o grupo TAPA foi quase perfeito: na recriação teatral do texto de Orígenes Lessa. Quem tem a oportunidade de ler o texto publicado há apenas um mês pela Editora Brasil América, não pode deixar de perceber como é muito mais “literatura” do que “teatro”. E o grupo soube teatralizá-lo muito bem. Falas imensas, quase monólogos interiores, tornaram-se mais curtas e ganharam outra dinâmica. E um texto que poderia motivar montagens cansativas e ao pé da letra obteve cores novas na versão sob a forma de revista de Eduardo Tolentino. Talvez tenha faltado uma melhor dosagem na caricatura. Tudo já é tão “crítico” que talvez o ponto mais criticável do texto passe incólume: a crença de que a “inteligência” deve governar a floresta. É claro que num país onde se valoriza pouco a atividade intelectual nunca é demais pedir mais reconhecimento e poder para os intelectuais os “jabutis” da floresta. Só que não dá muito mais para engolir essa representação do sábio como um deus “ex-machina” que surge em cena e resolve tudo. Talvez o personagem a receber um tom alto de caricatura fosse justamente o jabuti, junto a crença dos demais nas suas “luzes”. E, estranhamente, o mesmo ator que faz um macaco tão crítico, faz um avô-jabuti quase ao pé da letra. Por que? O Grupo será que endossa esse perfil do intelectual como dono das “luzes”?

Com todos esses problemas, no entanto, não há dúvida de que Tempo quente na Floresta Azul é um dos bons espetáculos na temporada atual de teatro infantil. E, nem que fosse para assistir à cena da Mãe Onça e suas Filhas Oncinhas, muito bem interpretadas por Emília Rey, Clarisse Dersié, Denise Weinberg, Priscilla Rozenbaum, já valeria a pena ir ao Gláucio Gill. Ou, até para ver os belíssimos figurinos de Lola Tolentino, um dos pontos altos da cuidadíssima produção.