… para contar histórias. Fotos: Felipe Stucchi

As crianças “ocupam” suas escolas em plena guerra…

Crítica publicada no Site da Revista Crescer
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 19.05.2017

Espetáculo inspirado em Malala é ode ao direito de estudar

Cia. La Leche acerta em tudo em seu tocante tributo ao poder das histórias

Malala, a garota paquistanesa que ganhou o Prêmio Nobel da Paz, só queria lutar pelo direito de continuar a ir à escola e estudar, como os meninos de seu país. Acabou levando um tiro dentro do ônibus escolar e quase morreu. Hoje, vive na Inglaterra. Essa sua história serviu de inspiração para o sensível espetáculo Salve, Malala!, da Cia. La Leche, em cartaz em São Paulo, no SESC Ipiranga.

No enredo da peça, duas crianças moradoras de uma aldeia qualquer não identificada, Sofia e Yan (os incríveis Léia Rapozo e Alessandro Hernandez), ‘ocupam’ sua escola em plena guerra e revivem ali histórias de habitantes que resistiram aos desmandos do governo tirânico. O casalzinho encantador chega até a promover uma campanha sobre a importância do aprendizado e a igualdade dos sexos – os dois atores descem à plateia e distribuem panfletos de verdade.

É muito bonita a estrutura narrativa do espetáculo: duas crianças contando histórias sem parar no meio da guerra, tentando brincar e escapar daquele horror por meio da fantasia e da memória. O que mais é o teatro senão isso? Aliás, há um trecho que se constitui em emocionante homenagem aos artistas mambembes, ambulantes, nômades, desses que chegam às aldeias, espalham a alegria e vão embora, não se importando com a guerra. Duas personagens são chamadas, por exemplo, de Cacilda e Cleyde, em tributo às saudosas atrizes brasileiras, as irmãs Cacilda Becker e Cleyde Yáconis. Tudo isso é muito lindo e bem construído na dramaturgia de Alessandro Hernandez e na direção da premiada Cris Lozano. Uma ode ao poder das histórias.

Salve, Malala!, por ser atemporal e se passar em um lugar imaginário, não se acanha também em usar referências da atualidade política brasileira em seu enredo. Por exemplo, surge no telão uma foto de uma obra grafitada dos Gêmeos, em prédio de São Paulo, e o garoto Yan pergunta: “É aí que agora está tudo cinza?” Há também citações a manifestações por demarcação de terras, brincadeiras com a expressão “do lar e recatada”, e assim por diante. Tudo sem ser grosseiro, nem acintoso – e, o que é mais importante, tudo integrado ao enredo de forma harmoniosa, sem forçar a barra nas militâncias.

Contribui muito para os ‘climas’ da peça a trilha sonora original de Luciano Antônio Carvalho – bem pontuada, com sons de guerra na medida certa. Cenografia, adereços e figurinos de Eliseu Weide dão um show de bom gosto e eficiência. As roupas dos personagens, expostas em cabides e araras, muitas vezes viram elas próprias os personagens da história. Um perfilar de pares de sapatos, em outra cena, basta para que a plateia enxergue ali o corpo todo dos personagens, exercitando a imaginação. O casaco e os sapatos do personagem ‘dono da escola’, com formigas gigantes aplicadas e sobrepostas na roupa, são de uma criatividade a se aplaudir muito.

Sem falar nos singelos bonecos de pano, de pequenos formatos, que encantam quando se passam por crianças dentro do ônibus escolar amarelo, indo para a escola – uma das partes mais lindas do espetáculo, que culmina com uma cena final esperançosa, falando sobre o que cada criança vai ser quando crescer – o futuro, as próximas gerações. Uma lição de fé no ser humano é transmitida sem tom de lição, sem ranço, sem dedo em riste, sem discursos morais e verborrágicos – apenas com criatividade e inteligência. Não percam.

Ah, e não posso deixar de fazer menção ao caprichado programa do espetáculo, que traz textos curtos e objetivos sobre a verdadeira Malala Yousafzai, uma lista de perguntas que serviriam de ponto de partida para conversas após o espetáculo (como: Que escola você quer?) e um glossário explicando termos como burca, grafite, democracia e ditadura. Fique de olho.

Serviço

SESC Ipiranga – Teatro
Rua Bom Pastor, 822, Ipiranga, São Paulo
Telefone: (11) 3340-2000
Capacidade: 200 lugares
Domingos, às 11h
Classificação etária: Livre
Duração: 50 minutos
Crianças até 12 anos não pagam. Ingressos a R$ 5,00 (comerciários com carteirinha SESC), R$ 8,50 (meia) e R$ 17,00 (inteira)
Temporada: De 30 de abril a 04 de junho de 2017