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Num cenário internacional globalizado e interligado cada vez mais pelas tecnologias digitais, a televisão ainda é o meio de comunicação que ocupa espaço privilegiado no cotidiano da maioria das famílias brasileiras. Num país de dimensões continentais, a TV (1) alcança praticamente todos os municípios (99,84%) e está presente em 91,4% dos domicílios (2). A influência sobre a constituição das identidades das crianças é, portanto, notória.

De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2005, divulgados este ano pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a televisão está presente em 91,4% dos domicílios. O rádio, em 88%. O computador, em 18,6%. O computador com acesso à internet em apenas 13,7% dos domicílios pesquisados.

Pesquisas indicam que, em média, elas assistem à televisão quatro horas por dia. Tempo, muitas vezes, similar ao que é dedicado à escola. Por meio da tevê, as crianças estão expostas a um mundo de informações, conhecimentos e valores. Estão expostas a um veículo que utiliza linguagens criadoras de significados sobre o mundo em que vivem.

As crianças têm acesso a tudo: novelas, seriados, programas de humor, de auditório, reality shows, telejornais, entrevistas, comerciais… Mas, em geral, os programas prediletos não são aqueles produzidos e destinados para sua faixa etária. Mesmo porque a programação dirigida ao público infantil, no Brasil e em toda a América Latina, não ultrapassa 10% do total da grade de programação. As crianças assistem a programas produzidos para os adultos, principalmente, à noite, quando a família está em casa e o controle remoto é comandado pelos pais, responsáveis ou irmãos mais velhos.

Neste cenário, a televisão rompe com a separação entre o mundo adulto e o infantil. Dentre outras consequências, os conteúdos televisivos acabam de certa forma estimulando e instigando uma antecipação da vida adulta, seja no modo de vestir e no linguajar. Seja no consumo e nos valores. Seja no comportamento e nos desejos. As crianças falam de dieta, de cirurgia plástica, de dinheiro, de beleza, de conquistas amorosas, de intrigas e traições. Psicólogos afirmam que a sociedade está diante de uma infância mais esperta e atenta, e muito pouco ingênua.

Espaço e tempo de organização e sistematização do conhecimento, a escola e seus professores reconhecem o lugar de destaque que a televisão ocupa na sociedade contemporânea. Sabem que seus alunos – crianças e jovens – se informam, se educam e, em grande medida, se divertem por meio dela.

Tradicionalmente constituídas sob a égide da linguagem escrita e por uma retórica pedagógica que privilegia a leitura e esta mesma escrita dos seus alunos, algumas escolas ainda não veem as imagens, em particular a TV, como parte da realidade e do contexto de seus estudantes. O fascínio, o discurso, a mensagem e a imagem da tevê não são trabalhados, analisados e debatidos pelas crianças junto aos seus professores. Em muitas unidades escolares, a TV está presente apenas como um suporte físico, utilizado para reproduzir vídeos e/ou documentários educativos. Um simples apoio didático. Tal postura só faz aumentar o distanciamento entre as crianças e as escolas.

Vários pesquisadores brasileiros revelam em seus estudos que, de uma forma geral, a escola não vê a TV como objeto de discussão. Há um preconceito, velado ou não, de que se trata de um produto de entretenimento apenas. Muitos professores veem a TV como um instrumento de alienação e como má influência.

No entanto, ao acompanhar o dia-a-dia de uma sala de aula, é possível perceber o quanto a televisão se faz presente, independente das possíveis resistências. A forma de se vestir e de se pentear de meninas e meninos acompanha os moldes dos principais atores e atrizes das novelas e dos atletas em alta. Os acessórios – mochilas, estojos, cadernos, lápis, canetas, pulseiras, óculos, brincos, chaveiros… carregados com orgulho e prazer, quase sempre fazem referência aos personagens dos desenhos animados veiculados pelos programas infantis.

Os triângulos amorosos e as intrigas dos protagonistas das novelas e dos reality shows, os esquetes humorísticos e os jogos de futebol transmitidos pela TV quase sempre são temas das conversas dos alunos. Os apelidos, as piadas e as brincadeiras, muitas vezes, são inspirados em personagens, programas de televisão e comerciais. As informações veiculadas pelos telejornais ratificam a realidade que cerca o mundo das crianças, servindo de parâmetro para o tempo e o espaço, servindo de exemplo de alguma situação/tema apresentado pelo professor. Indiscutivelmente, a televisão atravessa os muros e chega à escola por uma demanda das próprias crianças e dos jovens (3).

Em torno da televisão – entendida como um conjunto de informações, conhecimentos e valores – as crianças criam laços e espaços de identificação, de socialização e de pertencimento a um mesmo grupo, sentimentos importantes para o seu crescimento. E, ao que parece, quanto menor o nível socioeconômico e cultural da família, maior a presença da televisão no cotidiano da criança, maior a sua influência, penetração e importância (4).

Várias pesquisas evidenciam que a produção audiovisual tem o poder de estimular os dois lados do cérebro: o tecido neocortical, responsável pelas funções superiores do raciocínio, tais como a constituição do significado de palavras e ações; e o sistema límbico articulador dos instintos, da intuição, dos desejos, afetos e emoções. O cérebro das crianças é por isto cooptado, com facilidade, pelos programas de TV, que tanto exercem atrações sobre seu raciocínio, quanto sobre seus sentimentos, desejos e afetos.

O professor Geoff Beattie, do Departamento de Psicologia da Universidade de Manchester, na Inglaterra, constatou que as pessoas retêm mais informação quando esta é apresentada por meios audiovisuais, que lidam com aspectos prazerosos. Esta tese também é comprovada em outros estudos realizados ao longo dos últimos anos, nos Estados Unidos e na Escandinávia, onde foram pesquisados programas de televisão de alta qualidade educativa, cultural e de entretenimento.

No cenário brasileiro, algumas escolas já perceberam isso e trabalham com a televisão não como suporte, mas como uma linguagem que é parte integrante da vida de seus alunos. Ao desenvolver tal dinâmica, os professores logo descobrem que, embora a televisão exerça forte influência, as crianças e os jovens não são meros consumidores passivos. Eles reorganizam e reinterpretam o que veem e ouvem a partir de seus contextos socioeconômicos, políticos e culturais.

Há experiências interessantes, tanto de escolas privadas quanto públicas, de utilização da TV como objeto de estudo. Junto a seus professores, as crianças são instigadas a desvendar os bastidores da produção da tevê; a debater as intenções e os objetivos de quem faz a TV; a refletir sobre suas próprias ações frente à tela; a pensar que papel a televisão ocupa em suas vidas; e a produzir na linguagem da tevê suas próprias histórias. É surpreendente ouvir o que elas têm a dizer.

No Rio de Janeiro, a MULTIRIO, Empresa Municipal de Multimeios da Prefeitura do Rio de Janeiro, órgão ligado à Secretaria Municipal de Educação, entre outras ações, produz programas de TV com a participação de crianças e jovens, alunos das 1.055 escolas da região. Envolvidos no processo, meninos e meninas criam histórias, reinventam outras. Dizem o que pensam sobre os assuntos e assumem também o papel de entrevistadores. Mergulhados na fantasia da televisão, eles descobrem os bastidores e o processo de produção. E, de acordo com seus professores, adquirem um olhar crítico que se aplica em diferentes áreas de suas vidas. Os programas produzidos são veiculados em canal aberto e fechado. E todos os professores da Rede de Escolas da Prefeitura do Rio têm acesso facilitado ao material.

Mais do que uma exigência dos novos tempos, de uma escola mais antenada, de uma sociedade mais exigente ou de instituições públicas e privadas que têm o objetivo de contribuir para o sucesso escolar, incluir a mídia, e em especial a TV, na rotina escolar como parte de uma nova pedagogia é uma demanda que vem sendo imposta pelas próprias crianças.

Durante a 4a Cúpula Mundial de Mídia para Crianças e Adolescentes, realizada em abril de 2004, no Rio de Janeiro, por meio das ações da MultiRio, 150 adolescentes de 40 países elaboraram a Carta do Rio e deixaram isto bastante claro. No documento, eles manifestaram o desejo de que fossem criados “espaços nas escolas para que eles pudessem ser preparados para receber, buscar e utilizar as informações de forma crítica e produtiva, incluindo atenção especial às crianças e adolescentes portadores de necessidades especiais”.

Ignorar a cultura televisiva é ignorar a vida das crianças e dos jovens, das pequenas, médias ou grandes cidades do país. É ignorar o entendimento do mundo que meninos e meninas trazem para a escola. E mais do que isso: é ignorar o que acontece na própria sala de aula. Indiscutivelmente, a televisão já está lá há bastante tempo e tem um importante papel a cumprir nos contextos educativos, culturais e de entretenimento.

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Notas

(1) No Brasil, a televisão chegou em 1950 pelas mãos de Assis Chateaubriand. O país foi o quinto do mundo a possuir uma emissora de tevê, logo depois dos Estados Unidos, Inglaterra, Holanda e França. Embora fosse, inicialmente, um bem de consumo acessível apenas às classes mais favorecidas, o aparelho se popularizou rapidamente, sendo inclusive fabricado no território nacional. No ano de sua primeira transmissão, havia cerca de dois mil televisores, todos importados. Cinco anos depois, foram vendidos 85 mil aparelhos, dos quais sete mil já eram nacionais. O recorde histórico é de 1996, quando a indústria vendeu 8,5 milhões de unidades.

(2) De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2005, divulgados este ano pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a televisão está presente em 91,4% dos domicílios. O rádio, em 88%. O computador, em 18,6%. O computador com acesso à internet em apenas 13,7% dos domicílios pesquisados.

(3) De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2005, divulgados este ano pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a faixa etária dos zero aos 19 anos de idade corresponde a 36% da população brasileira, cerca de 67 milhões. Levantamento divulgado, também este ano, pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) revela 80% dos jovens do Cone Sul vivem no Brasil. O país reúne 50% de todos os jovens da América Latina. Ao todo, são aproximadamente 34 milhões de jovens (20% do total da população). Deste total, 20 milhões vivem em famílias com renda per capita de até um salário mínimo e 1,3 milhões são analfabetos.

(4) Dados do Governo Federal mostram que 51% das famílias brasileiras recebem mensalmente de 1 a 3 salários mínimos. Um salário mínimo equivale a R$ 350,00 ou US$ 175.

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Regina de Assis
Presidente da MULTIRIO e coordenadora do RIO MÍDIA – Centro Internacional de Referência em Mídias para Crianças e Adolescentes. Ex-secretária municipal de Educação do Rio de Janeiro.

Marcus Tavares
Jornalista. Consultor Técnico em Mídia e Educação da MultiRio. Mestrando em Educação/UniRio