A adaptação reproduz o que já se conhece da fábula. Fotos: Helmut Hossmann

Atores em cena em A Cigarra e a Formiga

Crítica publicada no Site da Revista Crescer
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 20.01.2017

Barra

Musical carioca é exemplo do pior teatro feito para crianças

A Cigarra e a Formiga, no Shopping da Gávea até fevereiro, reproduz estética antiquada e uma série de equívocos apelativos

Passei rapidamente, no início deste mês, pelo Rio de Janeiro e quis conferir algo em cartaz no teatro para crianças que eu não conhecesse. Vi que haveria, naquele fim de semana, uma reestreia, A Cigarra e a Formiga – O Musical, no Teatro das Artes, no Shopping da Gávea. Ao entrar no referido shopping, já comecei a perceber pelos corredores a presença dos atores da peça, vestidos com seus respectivos figurinos, e abordando as crianças, convidando para o espetáculo, posando para fotos ao lado da garotada no shopping.

Começou aí minha desconfiança com relação às intenções desse ato tão desnecessário, rançoso, antigo e próprio de quem ainda encara teatro infantil apenas como lazer e entretenimento comercial, não como arte séria e ritualística. Sempre acho mais rico, proveitoso e mágico que os atores surjam com seus figurinos apenas no palco, para fazer a peça.

Aparecer antes, e andando pelo shopping, em meio a lojas, gritarias e consumismos, prejudica o elemento surpresa do espetáculo e o mundo de fantasia e imaginação no qual se pretende que a criança mergulhe. Sair no saguão depois da peça, para fazer fotos com o público que acabou de ver o espetáculo, já acho meio boboca, mas até entendo e aceito melhor como crítico. Mas aparecer antes andando pelo shopping? Os personagens com seus figurinos ficam completamente descontextualizados, banalizados.

Bem, essa atitude inicial já deve dizer muito sobre o que verei em cena, pensei. Sim, não deu outra. O espetáculo, escrito e dirigido por um jovem chamado Allan Ragazzy (também autor das canções originais), é bastante equivocado. Ruim, mesmo. Eu diria mais: é algo a ser combatido, pois vai contra tudo o que se pode chamar de bom teatro. Uma repetição de fórmulas pífias dos piores musicais já encenados.

Imaginem: houve atraso para começar…  Marquei 15 minutos de atraso, sem contar o tempo em que um telão fica no palco para mostrar os patrocinadores e toda a extensa ficha técnica, nome por nome. Por que atrasar, se todos os atores já estavam prontos, vestidos e maquiados meia hora antes, passeando e tirando fotos pelo shopping? Mania de musical, querendo se valorizar e se fazer de dificultoso? Pois não passa de desrespeito descabido com o público.

E eis que começa o desfile de equívocos em todos os quesitos. Os figurinos (Paulo Kandura) não poderiam ser mais óbvios e sem criatividade. Não há uma peça sequer que traga algo novo. O cenário (Mario Pereira) acompanha essa falta de talento, com seu mural ao fundo, estático e ultrapassado, e algumas treliças sem nenhuma identidade preenchendo o palco. As coreografias (Pablo Ventura) são risíveis de tão pasteurizadas e pobres.

O elenco parece atuar mecanicamente, reproduzindo marcas óbvias, falando como se estivesse naquelas comédias ao vivo da televisão e cantando sem personalidade e na base dos playbacks. O humor do texto muitas vezes é baseado nas facilidades do popularesco de baixo nível, assim como as canções e as citações aos ritmos erotizados, como o funk, entre outras referências musicais desnecessárias para as crianças, caso o diretor tivesse o mínimo de bom gosto e consciência do que faz. A canção final, claro, tinha de ter letra com liçãozinha de moral e o estímulo aos valores da amizade, do trabalho e da solidariedade. Isso é muito antigo. Se a peça fosse boa, esses valores estariam embutidos na poesia, na fantasia, na simbologia e nas metáforas – sem necessidade de arrematar o espetáculo com musiquinha bem-intencionada.

A adaptação é péssima, porque apenas reproduz o que já se conhece da fábula, sem acrescentar nada, sem propor nada. É importante, sim, que se continuem montando esses contos tradicionais tão importantes inclusive para a formação psíquica das crianças. Nada contra montar A Cigarra e a Formiga. Mas, por favor, cadê a criatividade e o talento para se recontar um clássico, atualizando-o, dando viço a ele, renovando sua linguagem? (A produção desse musical todo errado deveria dar uma passadinha em outro shopping carioca, o Fashion Mall, e conferir a adaptação incrível que o diretor paulistano Isser Korik, da produtora Conteúdo Teatral, fez para o clássico Cinderela. Há referências ao mundo atual, ao linguajar dos adolescentes, ao mundo da internet e das redes sociais, mas tudo com bom gosto e a serviço do teatro de qualidade. Em fevereiro, no mesmo Fashion Mall, vai estrear também seu Chapeuzinho Vermelho sem texto. Esses sim são exemplos de bom teatro, de boas adaptações.)

Um autor e diretor tão jovem quanto este Allan Ragazzy deveria trazer novidades, ousadias, estéticas diferentes, propostas de renovação, e não reproduzir o pior do que já se fez no teatro infantil em décadas de equívocos e de teatrinho no diminutivo. Esse tipo rançoso e démodé de se fazer teatro para crianças precisa ser interditado de uma vez por todas, precisa parar de ser prestigiado pelos pais, precisa sim ser boicotado. Em vez disso, esse tipo de peça ainda dá ibope até hoje justamente na terra de uma desbravadora corajosa como foi Maria Clara Machado e seu Tablado? Que vergonha.

Ah, já ia me esquecendo. Quando você pensa que acabou, o que se passa no palco? Sorteio de brinde do patrocinador! Já escrevi algumas vezes sobre esse equívoco também tão antiquado. Teatro não é programa de auditório, minha gente! Sortear brindes ao final do espetáculo desvirtua o seu valor artístico, tira a atenção da criança, que deveria ir para casa fascinada pelo que viu em cena e não desapontada por não ter sido sorteada e chorando no colo da mãe.

Para finalizar a sessão, vamos lá: todos de novo no saguão para mais fotos com os atores, claro. E a cigarra e a formiga, assim, viveram felizes para sempre.

Serviço

Teatro das Artes
Rua Marquês de São Vicente, 52 – Shopping da Gávea, Rio de Janeiro
Telefone: (21) 2540-6004
Sábados, domingos e feriados às 17h
Ingressos: R$ 70,00 (Inteira) e R$ 35,00 (meia)
Temporada: até 19 de fevereiro de 2017