Tais interpreta Laila e a Joaninha

Crítica publicada no Site da Revista Crescer
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 16.12.2016

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Thais interpreta Laila e a Joaninha.
O enredo é simples, claro e envolvente. Fotos: Vitor Vieira

A peça mostra a amizade entre uma menina e um inseto

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O passeio de uma joaninha pelas páginas de um livro

Com esse mote, o sensível monólogo Vou-Eu, de Gustavo Kurlat, fala de medos, encontros e amizades

Quando, em 2013, conheci a faceta de dramaturgo de Gustavo Kurlat, até então mais comumente identificado como um grande compositor de trilhas sonoras, escrevi aqui neste mesmo espaço o quanto fiquei surpreso. Era o espetáculo Uma Trilha para Sua História. “Um texto que flui, não emperra, com alta dose de poesia, metáforas lindas e certeiras” – era uma das frases de minha crítica. Pois eis que essa mesma frase pode ser repetida hoje, sem tirar nem pôr, pois se encaixa perfeitamente à nova maravilha escrita e dirigida por Kurlat, Vou-Eu, em cartaz só até domingo no Sesc Pinheiros, em duas sessões.

Kurlat, comprovando ter total domínio da escrita para crianças, desta vez arriscou no formato: montou um monólogo. Esse jeito de escrever já é visto com desconfiança e preconceito no teatro dito adulto… Imagine para crianças! Risco total. Mas ele tem talento suficiente de dramaturgo e jogo de cintura como diretor para não deixar o espetáculo ficar maçante, cansativo, verborrágico. Ao contrário, ‘Vou-Eu’ é ágil, curto e eficiente. Dura cerca de 35 minutos. “Terminei de escrever, vi que estava curto, mas deixei assim mesmo, pois tudo o que eu queria dizer já estava lá; então para que ficar enrolando com mais e mais palavras?”, nos conta ele. Sábia decisão.

O enredo é simples, claro e envolvente. Fala da amizade entre uma menina, Laila, e um inseto: a joaninha Joana. A atriz Thaís Pimpão (que fazia a incrível narradora de Uma Trilha para Sua História) é quem está sozinha em cena, com a missão de desfiar seu monólogo no palco. Ela se alterna nos dois papéis, Laila e Joana.

Muito bem sacada é a forma como ela muda de personagem: sua mochila, nas costas, acende as luzinhas redondas toda vez que ela vai falar como joaninha. Se volta a ser menina, as luzes da mochila se apagam. Recurso inteligente, que consegue imediata compreensão das crianças, incluindo-as nesse jogo de duplos da grande atriz. Sim, porque Thaís Pimpão é das grandes. Tem plena segurança de seu trabalho e nos cativa com graça e versatilidade. De quebra, ainda assina a idealização e a concepção da peça.

O espetáculo é sensacional para crianças em fase de alfabetização. Atenção, escolas, fiquem de olho nas novas temporadas. Há muitas referências a livros, alfabetos, pontuação. Reproduzo trechos que ilustram essa vocação didática (no bom sentido) do espetáculo:  “Muitos Zes juntos me dão sono. Adoro a letra F, mas não sei de qual lado ficam os tracinhos. O V não se cansa de ficar o tempo todo com os braços abertos? A letra i não tem braço, mas nunca perde a cabeça. O T também vive de braços abertos, mas não tem cabeça. Por que separado se escreve todo junto e todo junto se escreve separado? Pisquei o olho para um O gordinho que eu acho que estava me paquerando! Às vezes não sei para que serve o H. Às vezes acho que as vírgulas ficam tristes porque separam todo mundo…” E assim por diante. Delícias de brincadeiras com nossa língua escrita.

É muito esperto o texto ao mostrar o mundo sob a ótica de uma joaninha: “Quando passeio nas pessoas é que eu descubro de verdade os seus detalhes: uma cor desconhecida na roupa, a barriga que sobe e desce quando respira, uma pinta atrás do cotovelo, um papelzinho com segredos caindo do bolso da calça. Eu preciso percorrer as pessoas para entendê-las. Não basta fazer rasantes.” Não é inspirador? Percorrer as pessoas…

O lance de criar um bordão para a personagem, ou, melhor dizendo, fazê-la repetir uma expressão diversas vezes em suas falas também é um recurso inteligente que diverte as crianças. A Joana, por exemplo, confessa: “De cada 28 palavras que eu falo, uma é maneira. Também gosto de falar ‘maneiro’, não só ‘maneira’. Eu adoro tanto palavras meninas quanto palavras meninos.” No dia em que eu estava na sessão, um garoto repetiu ‘maneiro’ na plateia o tempo todo e, ao final, deu sua opinião sobre o espetáculo: “Maneiro!” Demonstrou sua aprovação, entrando no jogo de repetição estimulado pelo teatro.

O medo é um tema bem explorado também. Surge com a menção aos vagalumes ou pirilampos: “Valente não é quem não tem medo. Valente é quem enfrenta o medo!” É o tipo de frase que fala a língua das crianças, em suas fases de medo do escuro, por exemplo. Daí a inteligente inserção de vagalumes na trama, com suas luzinhas poético-encantatórias. O humor pueril, nada grosseiro, também marca presença o tempo todo, como na frase: “Nós, Joaninhas, soltamos pum quando temos medo. Isso é científico.” E ela conta que teve medo de ser esmagada pela menina, dentro das páginas do livro.

Não deixe de reparar também nas letras de todas as canções (compostas, claro, pelo craque Gustavo Kurlat), pois elas complementam o texto das personagens e enriquecem o monólogo com novos elementos e novas citações. Em uma delas, a joaninha conta para o público quais são seus outros nomes em outros países: “Na Itália devo ter sido bem gorda um dia, pois sou um porceletto de Santa Lucia. Na França, Poulette do Bom Dieu. Na Suécia, Jungfru Marias nyckelpiga. Marienkaefer em alemão, que, se você não sabe, quer dizer Barata de Maria!” Vou-Eu merece que ‘vá-você’ ao teatro, correndo, antes que acabe. E que venham novas temporadas dessa pérola cênica, muito apropriada para o público da primeira infância, mas com força para agradar também muitos marmanjos.

Serviço

SESC Pinheiros – Auditório
Rua Paes Leme, 105 – Pinheiros, São Paulo
Tel.: (11) ) 3095-9400
Domingos, às 15h e 17h
Ingressos: R$ 17,00 (inteira). R$ 8,50 (meia)
Para crianças até 12 anos: grátis. Só até domingo (18)