Crítica publicada no Jornal do Brasil – Caderno B
Por Lucia Cerrone – Rio de Janeiro – 09.09.1995
Viagem que deu certo
Muito antiga é a afirmação de que o livro é sempre melhor do que o filme. A valorização da palavra escrita e seu peso literário dá ao leitor a capacidade de interagir na obra, imaginando e interpretando as situações de um modo muito pessoal. No teatro, onde uma parcela muito pequena do público tem acesso ao texto, o que se vê no palco é uma obra de muitos autores. A sensação de prazer ou desconforto, ao final do espetáculo, vai depender de como as parcerias foram unidas até se chegar ao produto final.
A Ver Estrelas, de João Falcão, é um desses casos raros, onde o texto, de assustador palavrório, se converte pela direção do autor, aliada a eficiência do elenco e demais elementos de apoio técnico num dos mais brilhantes espetáculos da temporada. O enredo, levemente inspirado na viagem de Alice no País das Maravilhas, é desenvolvido como um jogo de absurdos onde a meta a ser alcançada é a realidade explícita. O susto é substituído pela surpresa, quando as questões, a principio marcados pelo non sense, são na verdade achados do cotidiano. A identificação por parte da plateia é imediata.
Tudo começa quando Jonas, um desses muitos sujeitos que trabalham, comem e dormem dentro da maior regularidade, e que na busca de uma vida melhor se contentam a ver estrelas, é assaltado por seus inconformados eus que pretendem navegar. Talvez por que estivesse num bom dia, ou talvez porque o convite fosse irresistível, Jonas embarca na aventura sem o tom maravilhado de Alice e, muito melhor, sem sair dela imaginando que tudo foi um sonho. O jogo do contrário, arquitetado com precisão poética, volta ao ponto de partida quando Jonas, fortalecido pela viagem de descobrimento, põe em xeque outros Jonas, alguns deles sentados confortavelmente na plateia. Sem autoritarismo caricato ou tom previsível de entenderam a mensagem?, o desfecho surpreendente é tão doce como guaraná com formicida.
Os atores valorizam cada cena, sem falhas nos tempos de passagens e sem nenhuma concessão de humor fácil aos personagens que representam. Elias Andreatto é extremamente generoso em aparições episódicas e Emílio de Melo, o Jonas original de toda a história, um sensível condutor da trama. O restante do elenco – Pedro Brício, Luiza Mayer, Carla Ribas, Malu Galli, Virgínia Cavendish, Marcela Ráfea e Charles Paraventi – não só se destacam nos muitos papéis que representa, como se mostra afiadíssimo nas cenas de canto e coreografia.
Com iluminação de delicada interferência, assinada por Wilson Reis, música ao vivo, grifando com humor as situações do palco – o tema de Romeu e Julieta, do Zefirelli, é uma delas – e figurinos inusitados de Rita Murtinho, que dá as substitutas de Tweedlee Dan e Tweedlee Dun, perucas de Shirley Temple e vestidos com estamparias do mapa-múndi, ou fazendo entrar no palco uma princesa sem pernas puxada por um carrinho, A Ver Estrelas é um espetáculo de impacto que se diferencia dos demais por levar ao público o exercício do pensamento, mesmo quando este já se encontra a léguas do teatro.
Cotação: 3 estrelas (Ótimo)