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De maio a dezembro do ano passado participei, na qualidade de observadora/ debatedora, de um seminário de teatro infanto-juvenil realizado no Rio de Janeiro, que envolveu os principais grupos que trabalham permanentemente com a criança e o jovem. Entre os inúmeros e variados aspecto lá discutidos, um despertou minha atenção, ligado à dramaturgia e à modificação, a meu ver positiva – pela qual essa vem passando.
A dramaturgia mais tradicional para crianças e adolescentes nos apresenta, em geral, um esquema que se repete em infinitas variações: um dia ou um mundo em aparente calma; surge um “mal-feitor” ou uma situação nova, que provoca a transgressão dessa “ordem” ; o “bem”, em nome dessa ordem, se arma contra aquele “mal” ; entram em conflito ou luta aberta; por interferência de terceiros e/ou meios quase sempre mágicos, os “bons”, premiados e o tudo volta a “ficar bem” de novo. Em tal esquema, bom e mau não são mais adjetivos, qualidades possíveis e/ou instáveis: são definidos e estabelecidos a priori e não em função das atitudes e comportamentos de seus agentes. Esses não são sequer bons ou maus: são o bem e o mal, absolutizados, pois por eles se definem sempre em função de um status ou classificação preestabelecidos: o herói já surge “heroico”, trazendo consigo, por dom do acaso ou dote de deuses ignorados, aquilo que faz dele o esperado salvador ou vencedor. Visão que nada cria, que isola os seres e as coisas nesses termos absolutos e dá à realidade uma imagem estática que muitos gostariam que fosse real. Mas esse esquema é ainda encontrado não só em peças de teatro, como em filmes de tevê, histórias em quadrinhos e cinema.
Refletindo a transformação pela qual passou/passa a criança e o jovem de hoje pelos meios de comunicação colocados em contato direto com a realidade e informados, desde cedo, de maneira diferente, por uma cultura que não é mais mediatizada ou transmitida pela “autoridade” de pais ou professores, mas os desfia a assumir por conta própria a tarefa a os riscos de seu conhecer – a dramaturgia vem apresentando uma tendência a trabalhar a partir de sua experiência: no caso dos jovens, que representam hoje uma clientela específica, com produções que buscam refletir “o universo jovem e seus conflitos”, ou seja, retratar as coordenadas que ditam o comportamento jovem e seus valores, sua visão, linguagem hoje (“tudo que nós fazemos está dentro de nós”, resumiu um ator no seminário); no caso da criança, partindo de um fato psicológico, o de que tudo que vê, vive ou sente é por ela vivido como uma experiência, e de que é o conjunto dessa experiência, que dá as bases de seu enriquecimento potencial, trazendo algo que possa ajudá-la a organizar, a interpretar suas experiências: um peixinho que sai do aquário e de repente vê-se no mar ou na rede; um muro que se abre ao surgir aí algo novo e pulsante, que só as crianças e o poeta conseguem captar e usar; uma menina descobrindo a música ao ter como professor o próprio piano, etc.
O que não significa, obviamente, uma anulação dos clássicos, pois eles se tornaram tais exatamente por espelharem uma vivência humana permanente e universal: o Patinho Feio continua falando a todo àquele que passou pela triste experiência da rejeição; Peter Pan continua a simbolizar aquele que prefere ilhar-se na infância e recusar-se a crescer, etc. Mas nos coloca diante de novos e válidos parâmetros de avaliação para o que é produzido para aquelas faixas etárias, a partir de duas perguntas básicas: o que está oferecendo o trabalho apresentado para a maturação, a socialização, a percepção e o conhecimento, e demais mecanismos psicológicos da criança ou do jovem? Que uso podem eles fazer com o que lhes é oferecido para organizar e interpretar as próprias experiências?
Um desafio que a programação teatral ou televisiva, hoje destinada à criança e ao jovem, nem sempre está sabendo enfrentar, pois nem sempre aí se vê algo capaz de dar a variedade de informação e experiência que esses precisam receber fora da educação formal; de alargar seus poderes de observação e expressão; de aumentar-lhes a “alfabetização visual”, respeito dos objetos e fatos; de elevar sua curiosidade pelo que veem em torno; de abrir-lhes o mundo da realidade, ligando-o também ao imaginário, ao metafórico e ao abstrato; de estimular a satisfação de necessidades até então desconhecidas e a curiosidade por áreas e assuntos de interesse e importância humana; de dinamizar sua inventividade, sua capacidade e inteligência para aproveitar os recursos que lhe oferece a realidade em torno, seu poder de reflexão, informando uma liberdade de escolha, seu poder de reflexão, informando uma liberdade de escolha, seu desejo de afeto e união, duplicando suas forças no contato e nas relações com os outros, enfim, de aproveitar tudo aquilo que caracteriza o rico potencial essencialmente humano e de melhorar sua condição, através de suas experiências artísticas e/ou visuais.
Impossível? Quem disse? Se Monteiro Lobato, tão perto de nós, já provou que isso pode ser real! E se alguns bons espetáculos de teatro e a melhor literatura infanto-juvenil estão aí para comprovar essa possibilidade.
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Maria Helena Kühner
Professora pesquisadora escritora. Membro técnico de comissões estaduais de teatro, Conselho Estadual de Cultura, assessora da direção do Serviço Nacional de Teatro, responsável pela política teatral e supervisão avaliação de sua atuação nacional nas áreas de teatro experimental, universitário, infantil-juvenil da TV Educativa, diretora (eleita) da Revista da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais; prêmios e participações em concursos nacionais de dramaturgia, peças radiofônicas e críticas. Pelo conjunto de sua obra recebeu da União Brasileira de Escritores o Diploma de Mérito Cultural, entregue na Academia Brasileira de Letras, em 1992.
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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 4º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2000)



