Matéria Publicada no Jornal do Brasil – Caderno B
Por Eliana Yunes – Jornal do Brasil – 26.01.1986
Uma Literatura que Atrai o Preconceito
Os livros infantis podem ser uma opção para uma renovação estratégica da escola básica e da educação como um todo, com repercussões sociais
Muita gente passou a escrever para crianças com o aumento do interesse em torno da Literatura Infantil. Basta ver a estatística do Sindicato Nacional de Editores de Livros (SNEL) para uma avaliação: em 1974 publicaram-se 424 títulos infantis contra 1 mil 159 em 1980 (número mais ou menos estável de lá para cá) e, destes, mais da metade é de autores nacionais. Mas é bom não confundir: não se trata de mera curtição de quem escreve. O autor, adulto, poderosa “voz” que dita a narração, a ilustração, a edição e a venda do livro, precisa tomar precauções: criança é um crítico arguto e inteligente, se pais e professores não impedirem, à custa da domesticação, que venha à tona sua percepção livre de preconceitos.
A cada etapa da vida corresponde um conjunto de interesses e dificuldades próprias. E para o perfil do mundo visto na perspectiva da infância e da adolescência que o autor deve se voltar quando delibera sobre o tipo de leitor ao qual se dirige. E aí as coisas se complicam. Muitos bons autores não escreveram para crianças e foram por elas consagrados, a começar pelos contos folclóricos que antes de se transformarem em contos de fada existiam para o consumo de toda uma classe popular medieval. Além deles, As Viagens de Gulliver (1726), de Jonathan Swift, e Robinson Crusoe (1719), de Daniel Defoe, foram originalmente criados para adultos e, ao contrário, Alice no país das maravilhas (1865), de Lewis Carrol, faz as delícias dos analistas e críticos universitários, mas foi dedicado a uma menina.
E mais. Os interesses do leitor certamente variam de acordo com a classe social e o tipo de produção cultural a que ele tem acesso no cotidiano. O que não significa que existam leituras restritas à criança no campo, da favela, ou obras preferencialmente dirigidas a pobres ou ricos. Se o leitor pudesse realmente escolher o que quer ler e tivesse informação para optar, tudo seria diferente.
Acontece que entre nós o grande agente do livro é a escola, o que já é um privilégio das pessoas que dela desfrutam. Mas será que a escola é desfrutável? Dá gosto saborear o fruto de seu dia-a-dia? Em outras palavras, a escola aproxima ou afasta a leitura? Dá para parar e pensar. Ao que tudo indica, ler transformou-se num fardo ou num castigo, subsequente às desordens em sala. Evidente que o problema que não é do leitor: antes é do professor que não lê (ah! Quantas justificativas), do orientador mal informado e muitas vezes dos autores. Criança é coisa séria, mesmo e sobretudo na brincadeira! Por isso, atenção: um livro infantil não é qualquer coisa.
Longe das célebres adaptações de conteúdo, de linguagem e de forma, que promovem quase sempre a redução qualitativa da arte da literatura, o livro infantil dirige-se a um ser inteiro, com capacidade própria de perceber o mundo, afetiva, psíquica e intelectualmente. Do mesmo jeito que o adulto, com todas as suas limitações, é um explorador do texto potencial. Por isto mesmo, há marcas particulares num texto infantil que não significam sua imaturidade. A linguagem literária, independente da faixa etária do possível leitor, é por excelência espaço de arte e como tal deve permitir leituras diversas. Assim, diante da literatura infantil, o leitor adulto deve encontrar o prazer de ler, com percepção diversa, é verdade, daquela que uma criança terá desse mesmo texto.
Falar sobre o que seja um livro infantil obriga-nos a retomar uma série de observações que gente sensível e interessada já faz a respeito. Drummond, por exemplo, em suas Conferências de Minas, já falava que a criança é um ser naturalmente poético na medida em que o furor lógico e classificatório só lhe chega através do estreito uniforme da escola. E assinala, recusando o preconceito, que os livros infantis de literatura não se limitam a despertar o interesse e o prazer da leitura entre crianças. Cecília Meireles, no já clássico Problemas de Literatura Infantil, fala numa literatura infantil a posteriori, isto é, consagrada pelo leitor mirim e não por autores e editores que nem sempre acertam no juíza a priori. Ana Maria Machado, autora definitivamente consagrada no mundo das letras, confessa aliás, como Ligia Bojunga Nunes, que não sabe o que é escrever para este ou aquele leitor. E diz que “infantil” com relação à literatura não é adjetivo restritivo, mas uma ampliação do campo de leitura – “para ser lido também por crianças”. E de tal modo isto vem sendo levado a sério pelos autores ditos infantis que os limites do “gênero” estão ficando cada vez mais tênues. É verdade, os múltiplos níveis de leitura do texto literário aparecem com maior frequência na leitura crítica das obras contemporâneas. Mas os jogos de linguagem e a intertextualidade já estavam em Monteiro Lobato.
Sabemos que o preconceito tem lá sua razão de ser: confundido com educação, atropelada pela escola, a literatura infantil se vê na alça de mira da mesma sociedade que a pequena a criança para diminuí-la, dominá-la, domesticá-la. Como? Como as enfadonhas lições de comportamento e moral, quando já se provou que muito pouco fica das atitudes ocas impingidas de fora para dentro, em qualquer pedagogia. Com as inúmeras fichas e questionários para responder questões absolutamente irrelevantes diante da comunicação emotiva e afetiva que um bom livro detona no leitor. Assim tomada como instrumento, como meio, a literatura infantil que se vem a produzir, deixa a desejar. Será muito menos arte, muito menos expressão da cultura e muito mais assimilação forçada (e com o tempo rejeitada) de valores dominantes, já muito questionáveis.
Daí para o preconceito contaminar tudo o mais, é um pulo: os cursos de literatura infantil na universidade só muito recentemente são oferecidos e como matéria optativa, mesmo quando maciçamente os formandos vão lecionar no 1º grau. E ainda lá o professor/pesquisador é olhado como “sub”, cuidando de artes menores. Pós-graduação. Nem se fala!
Nos jornais do país, contam-se nos dedos as colunas críticas regulares mesmo nas páginas e suplementos literários; nos órgãos de financiamento da cultura poucos ousam apoiar iniciativas como congressos, seminários, cursos de especialização e edições sobre o tema e tudo isto num país com 50% de analfabetos e uma crise insustentável na educação.
A literatura infantil pode ser a opção para uma renovação estratégica da escola básica e da educação como um todo, com sensíveis repercussões sociais. Mas longe de ser instrumento pedagógico para apresentar modelos.
E há muita gente grande (e boa) que ainda acha este assunto sem importância!
Mas é um problema de miopia: educação se faz com cultura e não o contrário. A cultura é a matéria-prima da educação: é viva, dinâmica e não significa apenas erudição. Como invertemos para enquadrar a cultura em certos padrões uniformes e homogêneos, o que ocorre é uma ruptura entre a escola e a vida. Pois a arte denuncia coisas como esta e a literatura infantil brasileira hoje tem autores e obras capazes de não caber no estreito escaninho destas classificações limitadores, quando não, pejorativas. A literatura digna deste nome, infantil e não-infantil, aguça o espírito crítico, expõe as ambiguidades e contradições e apresenta ao leitor de qualquer idade o avesso do mundo. A arte é um modo de conhecer, um outro modo que não o da ciência. Sobretudo na infância…
A literatura é um caminho de formação do sujeito, é bom que se diga isto. A leitura inclui o homem no circuito da informação e da participação consciente, desde que a arte não esteja manipulada a serviço do que não seja ela mesma. A criação artística – e a literária com maior evidência – permite a sensibilização da inteligência para outras leituras da realidade. Como não começar isto na infância, quando menores são os preconceitos e menos cristalizados estão o gosto (o sabor) e o saber?