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Existe um tempo em que o mundo entra avassaladoramente pelos nossos sentidos promovendo descobertas contínuas num processo acelerado de aprendizado. O sabor e o saber vão sendo ingeridos.

O alimento alfabetiza o paladar além de aplacar um pouco da dor da separação do ventre de nossa mãe. O olfato sente os cheiros que estimulam a fome. O toque aproxima nossa pele da pele do seio materno. A visão pouco a pouco vai distinguindo formas e cores. E a audição que na metade da gestação entrou em ação numa bela aventura sonora já está totalmente desenvolvida no nascimento. A oral idade já começou. É o momento de estimular a narrativa através do ato de contar histórias.

E esse processo tão natural no amadurecimento do ser humano é o mesmo que deve acontecer com aquele que pretende narrar para alguém. Afinal uma boa narração tem que ter todos os elementos que seduzam os nossos sentidos.

O escritor Jonas Ribeiro no seu livro Ouvidos Dourados da editora Ave-Maria sugere que a matéria-prima do contador de histórias está composta da harmonia de três elementos: palavras, silêncio e linguagem corporal. E isso independe se trabalhamos com a literatura oral (1) ou autoral (2).

Vamos as PALAVRAS. Nada pior do que ouvir um contador que não tem a dimensão do texto que está narrando. As palavras saem sem colorido como se fossem tons monocórdios. E isso normalmente está ligado à falta de estudo. É fundamental entender em profundidade a história escolhida e conhecer o autor ou a fonte de onde ela vem. Afinal sem essa imersão estaremos apenas repetindo as palavras mecanicamente.

Também é muito importante na preparação da história compreender as diferenças do texto oriundo da literatura oral e da autoral. O contador precisa ter intimidade com a leitura.

Quando estamos contando contos populares a nossa espontaneidade e o nosso poder de improviso podem estar mais presentes, pois o que interessa é o esqueleto da história, ou seja, a sucessão de ações que levam ao desfecho do conto. Mas ao contarmos literatura autoral existe um trabalho com a linguagem que brota do escritor e não pode ser deixado de lado pelo contador.

Esse estilo presente em tantos autores faz da sua obra algo particular que obrigatoriamente precisa ser preservado. O que estamos contando é sempre superior a quem conta ou senão estaremos pasteurizando a narração. Essa atitude é muito comum em contadores que privilegiam seu carisma e histrionismo em detrimento da história. Basta lembrar quantas vezes saímos de uma sessão de contos e somente nos recordamos da performance do contador. O texto foi usado apenas de uma forma recreativa, o que não é ruim, mas não faz parte do leque de ações de quem pretende usar a narração para promover a leitura. O maravilhoso é quando saímos loucos de desejo por aquele livro que foi contado ou com uma enorme curiosidade por um autor ou uma cultura que acabamos de conhecer.

SILÊNCIO! A história precisa entrar pelo ouvido do outro, reverberar no imaginário, se transformar e ganhar algum sentido senão a narração não aconteceu. Nada pior do que aquele contador tão ansioso que impede o ouvinte de saborear o texto, criar suas imagens, ler as entrelinhas, tal qual no momento que temos um livro em nossas mãos. Sim, porque o narrador oral é a literatura transformada em voz. Ou é o que proporciona a leitura de ouvido como diz o professor Ezequiel Theodoro da Silva, da UNICAMP, ao se referir ao ato de contar histórias. Sendo assim o contador tem que ter claro onde e como deve incluir as pausas que vão favorecer o nosso ouvinte, mas nada de exagerar, pois também é muito desagradável àquela sensação de vazio provocada por um tempo de silêncio que parece interminável e nos leva a imaginar que a história se dispersou por um branco momentâneo em quem está contando tirando a concentração de quem ouve.

Quando o contador mergulha numa história ele compreende que cada uma tem seu próprio ritmo. Um texto de humor tem uma agilidade que não combina com uma história de terror. Já a prosa poética constrói imagens que precisam de tempo para assimilação. Portanto existem pausas diferentes para gêneros diferentes.

Descobrir essa pulsação demanda uma escuta apurada e muita observação. Nossos ouvidos têm que estar ligados na história que estamos contando, não podemos desviar nossa atenção. Também é preciso sentir o que o público nos devolve com o seu olhar, pois é através dessa interação que saberemos o momento exato para acelerar ou ralentar uma história. A concentração tem que ser total.

Todos os corpos falam. A LINGUAGEM CORPORAL muitas vezes completa discursos que as palavras não conseguem alcançar. E isso é fundamental na hora que vamos contar. Mas não significa ficar andando sem sentido ou usando as mãos desenfreadamente. E nunca redundar uma palavra com um gesto que traduza o seu significado.

O contador é como uma rica ilustração de um bom livro que vai transmitindo novas leituras através de seus movimentos ou com sua imobilidade. Nada pode ser gratuito. Tudo tem que ter um sentido mesmo que nos pareça como ouvintes alguma coisa estapafúrdia, pois também faz parte da narração suscitar dúvidas que podem ser completadas pelo expectador. E assim a história sai repleta de aromas, sons, sabores. E em sintonia com o que está sendo contado.

Narrar é abusar dos sentidos de quem conta e de quem ouve. Todo o corpo tem que estar integrado ao texto e assim o público vai abrir alguma via de acesso que possibilite a entrada da história e sua compreensão.

Mas o fato de termos um excelente texto, bem preparado e com todas as nuances pensadas não garante uma boa narração. O contador deve se preocupar com sua aparência e o tipo de roupa que vai usar, pois o expectador repara em tudo. E às vezes um deslize pode colocar tudo a perder. Não é preciso um traje de luxo, mas se for um figurino que tenha relação com as histórias e se for uma roupa comum que não concorra com o texto.

É preciso também cuidar do local onde vamos exercer a ação criando um ambiente agradável para que o público sinta-se acolhido e bem acomodado. E antes de começar a história aproximar-se das pessoas distribuindo sorrisos, palavras de boas-vindas e muita amabilidade. Assim já teremos um grande caminho andado, pois o ato de contar está associado à empatia provocada pelo narrador oral.

Daí contar histórias ficcionais, de família ou inventadas na hora, desde que com segurança e levando em conta o desejo de quem vai ouvir.

Devemos narrar durante toda a vida já que sempre haverá um ouvido sedento por uma boa história. Ouvir e contar são experiências inesquecíveis.

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Notas

(1) O termo foi criado por Paul Sebillot (1846-1918), no seu Littérature Orale de la Haute Bretagne (1881) e reúne miscelânea de narrativas e de manifestações culturais de fundo literário, transmitidas oralmente, isto é, por processos não-gráficos. Essa miscelânea é constituída de contos, lendas, mitos, adivinhações, provérbios, parlendas, cantos, orações, frases-feitas tornadas populares, estórias… (Câmara Cascudo) Fonte: E-Dicionário de Termos Literários  http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/index.htm
(2) Segundo Foucault, o conceito de autoria, tal como concebe a cultura moderna, se estabelece no final do século XVIII e início do século XIX quando se instaura a noção de texto como propriedade e o autor passa a ter direitos. A idéia de autoria torna-se, então, central aos discursos considerados “literários”, já que se relaciona à noção de criador original que perpassa a modernidade artística.

Fonte: E-Dicionário de Termos Literários  http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/index.htm

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Benita Prieto
Contadora de Histórias do Grupo Morandubetá, Escritora, Produtora Cultural, Especialista em Literatura Infantil e Juvenil e em Leitura: Teoria e Práticas. Idealizadora do Simpósio Internacional de Contadores de Histórias do Rio de Janeiro