Um Soldadinho de Chumbo, em cartaz no Teatro Maria Clara Machado: amor entre bailarina e soldadinho é minimizado


Crítica publicada no Jornal do Brasil
por Carlos Augusto Nazareth – Rio de Janeiro – 06.11.2004 

 

 

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Um Soldadinho de Chumbo, em cartaz no Teatro Maria Clara Machado, é mais um espetáculo baseado na obra de Hans Christian Andersen (1805-1875), antecipando a comemoração do seu bicentenário. Esta é uma das histórias mais conhecidas do autor, dinamarquês, considerado a primeira voz a  sugerir padrões de comportamento e divulgar valores ideológicos, consagrados pelo romantismo, em histórias para crianças. Um Soldadinho de Chumbo faz parte do grupo de contos de Andersen que trata das situações aleatórias que conduzem a vida dos seres humanos.

A fábula conta a história de um soldado de chumbo de uma perna só que se apaixona perdidamente por uma bailarina  que ele pensa também ter apenas uma perna. Ele cai da janela, acaba num barco, naufraga, é comido por um peixe e retorna ao seu pequeno dono na barriga deste peixe. O amor pela bailarina o ajuda a vencer  as situações difíceis. Na volta, o menino, sem razão evidente, joga o soldadinho e a bailarina na lareira. E eles morrem juntos, sem poder viver  o seu inconfessado amor.

No texto adaptado por Carlos Cardoso um menino ganha Um Soldadinho de Chumbo sem uma das pernas e o põe na estante, junto com os outros brinquedos. No dia seguinte, ao perceber que o soldadinho desapareceu, o garoto decide empreender uma missão de resgate, para a qual convoca o melhor amigo. A releitura do texto cita todos os elementos da história de Andersen, mas deixa de lado alguns significados importantes de seu conto.

O adaptador coloca seu foco na história de Mathias e Pablo, interpretados pelas atrizes Inês Cardoso e Fernanda Donini. A história do soldadinho  fica como pano de fundo para as aventuras recriadas para os personagens. O pretendido paralelo entre as histórias existe na intenção, mas se revela tênue para o espectador. Os diálogos são narrativos: contam, mas não mostram a história, a não ser em algumas brilhantes cenas em que a cenografia de Cica Modesto e a luz de Luiz Paulo Neném criam o ambiente mágico do teatro, como na belíssima cena do fundo do mar.

O cenário tem como conceito a transformação dos objetos do cotidiano. Caixas de papelão, que se referem à história, regadores e batedores de ovos se transformam ludicamente em objetos de cena e personagens. É nessa brilhante magia da reinvenção presente no cenário e nos objetos cênicos, e na teatralidade da luz, que o espetáculo se apoia. As atrizes que fazem os dois meninos, dão verdade cênica à brincadeira, contagiando a plateia. Fávia Fafiães tem forte presença em cena.

O amor do soldado de chumbo pela bailarina, que encerra inúmeros significados e que termina tragicamente, como um Romeu e Julieta, é minimizado, apesar de ser um  núcleo importante da história. Mais uma vez a dramaturgia é o calcanhar-de-aquiles da produção, o que tem sido frequente nos palcos cariocas.

A dificuldade de transposição de linguagens, principalmente dos contos tradicionais, tem colocando em risco o próprio espetáculo, como em Um Soldadinho de Chumbo, ainda que neste caso a direção de Carlos Cardoso e Mário Piragibe prime pela criatividade. Histórias são recontadas sempre, através dos tempos, mas não se pode perder o cerne delas. Se o perdemos, deixamos de lado a própria razão que nos levou ao reconto.