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Despertou nossa atenção, no 5º Festival de Teatro Infantil de Blumenau, a relação estabelecida entre o infantil e o popular: mais que partir de textos escritos especificamente para crianças, boa parte dos espetáculos recorreu ao folclore, a contos populares, e inclusive a adaptações de clássicos que partiam desta mesma base. Levando-me a perguntar: Que relação existe entre o infantil e o popular?

Na sociedade hierárquica e autoritária em que vivemos, fundada em relações verticais que colocam em plano inferior, em termos de expressão artística ou cultural, os produtos a que dão o rótulo de “infantil” ou de “popular”; de uma sociedade em que o fanatismo do ganho ou do lucro faz do negócio (nec-otium) sua lei – e nessa negação do ócio, da possibilidade contemplativa ou recreativa  (re-criativa), instala o fanatismo da trabalho,fazendo desse trabalho um dever com a qual se oculta a condição explorada e alienada daquele que é um trabalhador; de uma sociedade em que são, assim, desqualificados ou desvalorizados o jogo, a brincadeira, as representações e as manifestações espontâneas que expressam um exercício de pensamento com total liberdade de movimento e uma ingenuidade que é a abertura mesma para o imaginário; em que a “seriedade” daquele saber estabelecido e institucionalizado é posta em confronto, nos planos ontológico e ético, com a suposta “superficialidade” dessas representações; em que a “realidade” em que se alicerça a primeira critica implícita ou abertamente a imagem ilusória” que caracterizaria as demais – o adulto desqualifica o infantil, “cultura” de elite desqualifica a expressão popular e uma sociedade de relações verticais fabrica uma ideologia que tenta justificar a necessidade e a pretensa “verdade” das hierarquizações que  estabelece.

No entanto, as últimas décadas vêm mostrando acentuada tendência para uma crescente apropriação daquelas expressões e manifestações por aqueles que hoje manipulam a chamada “indústria cultural”. No caso da criança, como forma de atuar sobre ela e formá-la à imagem e semelhança de modelos desejados  – modelos que, como tem sido seguidamente denunciado, sobretudo no que se refere à mídia, buscam legitimar a escala de “valores” da sociedade estabelecida capazes de garantir a reprodução social. No caso do “lazer” adulto, repetindo as relações da sociedade que o gera: as competições (esportivas, automobilísticas, festivais de cinema e música, etc.), a valorização em função do mercado ( que hoje se pavoneia como “marketing cultural”), os mecanismos de projeção (como no futebol e carnaval) aliviando tensões e inquietações…

Não é dessas manifestações que falamos. Falamos em a-propria-ção: termo que tem à raiz a noção de serem aquelas expressões próprias ou características do infantil e do popular. O que as caracteriza, ou seja, o que trazem como caráter ou marca e que é sentido como um valor a ser apropriado e transformado em mercadoria de consumo, ou tornado objeto de manipulação e controle?

Ou melhor, O que é a brincadeira, o que é o jogo?

O que denotam, do brinquedo infantil ao folguedo popular? O que têm em comum suas diferentes expressões? Qual o seu sentido e significado mais profundos? Qual o seu papel para a criança ou para o povo que os gera?

A formulação mesma das perguntas já evidencia a diferença do enfoque: perguntar o que são para a criança ou para o povo é buscar desvendar os recursos geradores dessas expressões, ou seja, aqueles que informam quanto a suas formas de garantir uma sobrevivência material ou usar produtivamente a própria experiência; quanto às formas de associação ou relação com os outros; quanto às formas de expressar ou representar no plano simbólico suas relações com o mundo em que estão e os seres humanos que nele vivem. Recursos que, conscientizados ou sentidos como tais têm um potencial transformador cada vez mais evidente.

Pois uma das primeiras e mais evidentes características comuns das “brincadeiras” ou jogos populares e infantis é o fato de serem a fabulação de uma relação. Por exemplo, em “O Boi Viramundo”, das relações sociais – o patrão, o padre, o doutor apresentados de forma crítico-cômico, nelas afirmando o papel do “brincante”; ou em “A Porta “Azul”, a da mulher jovem enfrentando os obstáculos e desafios a sua individuação e crescimento; que em “O Casamento da Princesa Juliette” incluem a vivência da diferença, a abertura ao mundo-floresta e a negação do tradicional no que tem de castrador (a educação dita “feminina”,  a etiqueta…); ou do dono do “Cirquinho” e seus palhaços e destes entre si, reproduzindo criticamente as formas dominantes atuais; ou em “João e Maria” atingindo em plano profundo a relação pais/filhos, e sua possível carga de medos, fome, abandono e morte, etc. etc. Os exemplos, multiplicáveis, mostrariam sempre uma relação, experimentada ou revivida. Daí a posição ambivalente da criança, ou do brincante, que ora vê suscitada sua atividade – e aí desprende toda a potência da fabulação, assumindo papéis, inventando estratégias para as situações criadas, enfrentando obstáculos, resolvendo problemas, correndo todos os “Riscos”, tendo que ser Arisco, um Corisco” – ora se mantém em passividade, brincando de ser ela própria o brinquedo, o joguete do jogo – como se sentem muitas vezes quando os acontecimentos estão acima e além de seu controle e a “sorte” ou o “azar” é que decidem ( como no final de “O Carro Caído”).

O que leva a perceber a seriedade desse brinquedo, que Freud já assinalou ser uma de suas características mais importantes, ou que Bruno Bettelheim lembra ao dizer que é a “perplexidade existencial” da criança que se reflete nessa fabulação. E evidencia que esse exercício do corpo, da inteligência e a fantasia não é tão gratuito quanto o julga a pseudo-seriedade da cultura “erudita” e “adulta”.  Pois detendo-nos um pouco mais sobre ela vemos que a potência dessa fabulação coloca-se a serviço de necessidades e desejos. Ou seja, da realização do desejo, não na satisfação alucinatória, mas sim na lúdica ou ritual: o princípio da realidade (que no brincante adulto obriga a seus comportamentos do cotidiano), cede lugar ao princípio do prazer – o jogo, a alegria, a soltura, que fazem  dos palhaços figuras emblemáticas – e assim abre espaço ao irreal, ao imaginário, ao sonho (como no lírico “Sonho de Natanael” ), à troca de papéis. (em que o “marinheiro Marinho” pode  até mudar a atitude do comandante), ao jogo de possíveis, em que tudo pode acontecer – até vencer o diabo ou transformar uma “megera” em afável companheira… E, para o personagem que aí age, se expressa, neste possível, o que ele pode, o seu poder.

O ator ou brincante instala-se no irreal, no lúdico e produz algo que, se não “espelha” à realidade externa, expressa uma outra realidade, interna, profunda, que é a sua maneira de sentir e viver a realidade em que se insere: profunda porque o que se passa na cena, o mundo aí colocado, é “real” para os personagens que o vivem. Não é este, aliás, o paradoxo mesmo do jogo teatral, que “finge” ou ”mente” para melhor dizer a verdade, em que através da máscara teatral do personagem se revela o eu mais fundo dos seres humanos?

Profunda também porque esse faz de conta situa-se no parecer, não no ser – mas esta aparência tem tal carga e força que o ator/espectador entra no jogo, instala-se no imaginário, é capaz até de “ver” as pulgas que fazem acrobacias no circo…Naquele momento, desligado do tempo real, cronológico, surge a possibilidade de uma outra vida,  de um permanente recomeçar: o boi morreu, mas vai ressuscitar; o marinheiro ou os meninos se perderam, mas vão se salvar… A cada lance tudo recomeça do nada – espera que é típica do jogo teatral, onde se está sempre esperando Godot, o julgamento de um deus, o desvendar de uma verdade que fará a tragédia do herói ou dará um final feliz ao drama…

Por tais características o jogo torna-se uma aprendizagem da realidade, ou seja, uma maneira possível de organizar ou elaborar as próprias experiências para situar-se dentro dessa realidade.  A realização do desejo e a abertura para o imaginário são também mais que um momento catártico ou um divertimento: situar-se é também identificar-se, obter uma valorização ou reconhecimento – que pode ser um (re)conhecer-se, um “mostrar quem sou”, no caso do adulto, ou um responder à pergunta fundamental, “quem sou eu?”. De todo brinquedo infantil.

Não será por todas essas razões que o jogo teatral se torna reanimador, isto é, capaz de, recreando, recriar uma anima (alma) nova para todos os que dele participam? O 5º Festival de Teatro Infantil nos deu ocasião para afirmar que sim…

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Maria Helena Kühner
Professora, pesquisadora, escritora com publicações de ensaios, artigos, resenhas e livros. Membro técnico de comissões estaduais de teatro, Conselho Estadual de Cultura RJ, assessora da direção do Serviço Nacional de Teatro, responsável pela política teatral e supervisão – avaliação de sua atuação nacional nas áreas de teatro experimental, universitário, infantil e amador. Gerente da área infanto-juvenil da TV Educativa, Diretora (eleita) da Revista SBAT – Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, abrindo seu intercâmbio com 38 países. Possui em seu currículo vários prêmios e participações de concursos nacionais de dramaturgia, peças radiofônicas, críticas, entre outros. Pelo conjunto de sua obra recebeu da União Brasileira de Escritores o Diploma de Mérito Cultural, entregue na Academia Brasileira de Letras em 1992. Além dessas atividades mais permanentes, desenvolve uma série de outras secundárias e temporárias.

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 5º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2001)