Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Carlos Augusto Nazareth – Rio de Janeiro – 01.08.2004
O mais brasileiro dos brasileiros
A Turma do Pererê, de Ziraldo, ganha montagem inteligente e criativa, dirigida por Stella Miranda
A Turma do Pererê, de Ziraldo, é um musical brasileiro para toda a família, em cartaz no Teatro Carlos Gomes. Cada espetáculo é sempre uma grande narrativa, formada por inúmeras pequenas narrativas – que resultam, ou não, num tecido único e harmônico. Pois este é o caso de A Turma do Pererê. Entre suas inúmeras qualidades, ressalta-se a habilidade da diretora Stella Miranda em reunir no palco diversas linguagens.
Há a animação em bonecos e em vídeo, no traço inconfundível de Ziraldo; a música; a dança; enfim, um universo mágico muitíssimo bem orquestrado por Stella a partir da adaptação teatral de Tim Rescala para o clássico e revolucionário quadrinho de Ziraldo, que encantou a geração dos anos 60. E que agora, redescoberto, corre o saudável risco de se tornar um marco no teatro musical para crianças.
Pererê tem início quando a história é, mais uma vez, contextualizada por uma “professora maluquinha”, desta feita Dona Stella, que surge em vídeo, composta por Stella Miranda e pelo traço de Ziraldo, em animação. Início criativo, feito com muito humor, dá ao público as referências necessárias à compreensão da obra sem, em nenhum momento, carregar no tom saudosista ou didático.
Depois, no redemoinho do Saci, a turma viaja pelas muitas regiões do país em busca de Zé Bento, aquele tipo de personagem que todo grande criador busca – de Mário de Andrade, com Macunaíma, a Monteiro Lobato, com Jeca Tatu. Por fim, eles descobrem que este “homem brasiliensis” está representado pela diversidade da nossa cultura, do nosso povo.
O espetáculo bafeja sobre o público brasilidade, prazer, orgulho e identidade, sem nenhum ufanismo. Ao fim, muitos saem dançando ao som de música brasileira, com um sorriso orgulhoso nos lábios. É a melhor aprovação da plateia, pois vai muito além dos aplausos. Tim Rescala desenvolve um bem-humorado roteiro para Pererê, cujo texto é construído pelas ricas – e brasileiras – músicas, também de sua autoria, cantadas ao vivo pelo elenco, a partir da preparação vocal de Agnes Moço, sob a direção musical do próprio Tim.
Há quem saia do teatro ainda dançando as músicas, de Rescala
O espetáculo resgata a identidade estética da Turma do Pererê e do traço de Ziraldo, mantendo a referência das histórias em quadrinhos. Sem querer reproduzir, mas sempre recriando, trabalham em conjunto o cenário de Daniela Thomas e Patrícia Rabbat e os figurinos de Rita Murtinho. Formas, cores, traço, o próprio formato do palco, a luz e as cenas lembram grandes quadrinhos. Com isso se preservam as características de uma expressão plástica renovadora dos anos 60, ao mesmo tempo que dela se faz uma releitura, mantendo-a viva e atual para as novas gerações.
As diversas linguagens são trabalhadas de modo tão harmônico que é difícil ressaltar este ou aquele elemento, como a luz de Aurélio de Simoni, que contribui decisivamente para a realização da proposta; ou os músicos, que tocam ao vivo; ou ainda as coreografias de Márcia Rubin. Pois o mérito da unidade deve-se mesmo à direção de Stella Miranda.
O elenco, que também prima pela homogeneidade e pelo conjunto tem, em Maurício Tizumba, que faz o Saci Pererê, o grande destaque. Não só pela sua criação, mas pelo que nos remete ao humor dos anos 50 e 60, que o ator resgata com talento ímpar. Isabel Filardis tem no quadro da boneca de piche, ao lado de Tizumba, o seu momento de brilho.
A atriz Cláudia Neto compõe inúmeros personagens, canta e manipula bonecos – é uma presença forte e decisiva toda vez que entra em cena. Destaque especial também para Carol Machado, que brilha, não só nas acrobacias aéreas, mas como atriz, com um humor afiadíssimo. Numa produção impecável, A Turma do Pererê é um espetáculo infantil imperdível, um marco da inteligência e do talento no teatro, que pode ser resumido em uma só palavra: qualidade.