Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Ricardo Schöpke – Rio de Janeiro – 23.01.2010
O encantamento da nobre arte do palhaço
Peça reinterpreta o circo sob a luz do cinema mudo
Ao assistir a Triciclo, em cartaz no Teatro Municipal Maria Clara Machado, é impossível não lembrar do universo chapliniano. Responsável pela criação de Carlitos, um dos clows mais comoventes, hilários, poéticos e patéticos da história do cinema mundial, Chaplin soube como ninguém tirar proveito das dificuldades técnicas do início da sétima arte. Construiu, a partir daí, ótimos artifícios para o desenvolvimento da sua personagem clownesca mais importante. A ausência de som foi também fundamental para que ele pudesse desenvolver as suas qualidades de mímico, e a sua impressionante máscara facial, aliada a excelentes pantomimas, recheadas por gags, teatro de vaudeville e uma trilha sonora de altíssima qualidade.
Triciclo marca a estreia do importante palhaço Márcio Libar na dramaturgia infantil, em parceria com a Cia Flor no Peito. Em forma de roteiro, Libar e a Cia. constroem o universo de um trio de artistas – com referências na estética do cinema mudo – e apresenta-os sob a ótica de três ciclos importantes: o encontro, o desencontro e o reencontro. O espetáculo fala de amizade e tolerância. Utiliza-se dos expedientes da clownaria clássica e da comédia física e começa a brincar já em seu título.
Palhaços para a vida toda
Um dos grandes méritos do espetáculo está na parceria entre Libar e a Cia. Flor no Peito, um grupo que nasceu e se criou na rua. Destacam-se também sua concepção original, e a qualidade de como é contada a história. Não se tratam de gags novas no universo circense, porém o diferencial está na ótima execução dos números e no seu potencial de teatralidade. Aliando-se a tudo isso, tem-se ainda a bagagem dos artistas envolvidos na atuação, que certamente já convivem com seus clows há bastante tempo e em diferentes contextos. Esta é uma das características dos profissionais que se dedicam às artes circenses: a criação de seu palhaço (que ganha traços de personalidade marcante, nome, figurino, adereços) ou de um número a ser executado (báscula, cama elástica, contorcionismo) e que acompanham as suas vidas para sempre.
Espetáculo não traz gags novas; o diferencial está na ótima execução dos números
Em Triciclo nos são contadas, certamente, algumas das histórias vividas pelos palhaços Piter Crash (Fabiano Freitas), Protocolo (Ricardo Gadelha) e pelo músico (Martin Lima) em suas andanças. Acompanhamos assim as suas trajetórias físicas através de jogos de esconde-esconde, nas agradáveis transformações de um jornal que aos poucos vai se multiplicando e tomando formas de objetos inanimados, animais, bebês, malabares. Sem falar na presença poética da música de um bandoneon ao vivo. Assim, é possível acompanhar as trajetórias emocionais que envolvem a apresentação de seu show. Para isso, o atrapalhado trio esbarra nas dificuldades de entendimento inerente ao homem, discutindo a necessidade de escuta, da generosidade, do valor da amizade e do amor à arte.
Os figurinos de Arlete Ruas e Thaís Boulanger acompanham em sua paleta de cores a predominância dos tons pretos e brancos da estética do cinema mudo. Os adereços de cena de Dodô Giovanetti também acompanham este conceito através da criação de placas (inspiradas nas cartelas do cinema mudo) onde são anunciados os ciclos de transição do espetáculo: o encontro, o desencontro, o reencontro e o fim. Atribuída a ele também é a concepção original do pequeno palco para a apresentação do teatro de bonecos. A confecção do bonequinho gracioso e dos adereços é de Fabiano Freitas. Freitas assina também a ótima e delicada manipulação do boneco e dos objetos. A luz de Adriana Milhomem é simples e apoia-se em refletores brancos que colaboram com a ambientação de cinema mudo.
Extrema generosidade
Os atores Fabiano Freitas (Piter Crash), Ricardo Gadelha (Protocolo) e Martin Lima (músico bandoneonista) – indicados merecidamente ao prêmio Zilka Salaberry de Teatro Infantil 2009 – possuem um ótimo domínio do ofício do palhaço. Fabiano, Ricardo e Martin entregam-se de corpo e alma, com movimento expressivos, precisos, e de extrema generosidade na arte do contraceno.