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Quando a ASSITEJ – Associação Internacional de Teatro para a Infância e a Juventude propôs a realização, em vários dos 75 países a ela associados, de Seminários sobre “Temas-tabus no Teatro para Crianças e Jovens”, a primeira reação de alguns foi de surpresa ou curiosidade: por que esse tema? Reação expressa também por outros ao verem o CBTIJ não só realizar no Brasil o Seminário como adotar o mesmo tema-base para seu Concurso de Dramaturgia de 2010.

Por que “temas-tabu”?

Se nos detivermos para pensar um instante veremos que o tema é da maior pertinência atualmente, e de interesse não só de todos os que fazem teatro, como de todos os que, por qualquer razão, tem ligação com essa importante faixa etária. Por que? Vejamos.

Nossa História mostra, em saltos e rupturas, em transgressões, em permanente troca, uma contínua tentativa de preservar o livre fluxo do humano e impedir a rigidez opressora e repressora que paralisa o conhecer e o agir.

No início da Idade Moderna, com as grandes navegações, descobertas e invenções ampliando cada vez mais o espaço, necessário se tornava “organizá-lo”. Hamlet, figura emblemática desse tempo, diz textualmente que “o mundo está fora dos eixos” e que sua “maldita sorte” é “ter que pô-lo em ordem”. Para superar sua dúvida, situar-se, Hamlet chama os atores e os faz representar, para, cenarizando-a, vendo-a à distância, poder analisar seus dados, e, a partir daí, poder agir, “saber que rumo tomar”. Razão desligada de afeto e emoção (Ofélia), contemplação que substitui a ação prática por sua representação, que busca dissipar as “ilusões” ou aplacar os fantasmas apelando a leis ou princípios gerais.

Nada escapa a essa regulamentação: do espaço político, pelo estabelecimento de limites ou fronteiras – das nações, das línguas, das instituições; do espaço econômico pelo estabelecimento de normas e regulação das relações, dando peso maior aos produtos, tomados mercadorias, e, enquanto tais, definidoras da própria noção de valor; do espaço social pela delimitação das classes sociais, hierarquizadas, e pelo estabelecimento de modelos, papéis, normas, comportamentos e valores. Surge a noção de sistema e de uni-verso como “versão única”. Ordem, método, medida – em tudo e por tudo a busca de conhecer e organizar para melhor dominar e controlar. Mas, para assim ultrapassar fronteiras e dilatar o próprio espaço, era necessário dominar a Natureza, a que estavam submetidos: amplia-se o “movimento anti-Natureza” (Sartre), em que ela deixa de ser vista como plenitude ou como espaço vital a que os mitos emprestavam vida e alma (deuses e deusas feitos à imagem e semelhança do homem e portadores até de suas fraquezas e vícios: um Zeus conquistador, uma Hera ciumenta…) e passa a ser conhecido como espaço de dominação e conquista, paisagem representada no espírito por meio da linguagem. Na relação homem-mundo assim estabelecida a lógica se torna a medida do ser e o discurso racional sua expressão.

Racionalidade que não só visa ordenar fenômenos e valores, estabelecer normas de conhecimento, verificar dados por meio da pesquisa, da observação, da experimentação, como geometriza o espaço para apreender e controlar o real através de normas precisas, exatas, rígidas – em um modelo que ainda hoje domina a lógica, a matemática, a ciência e a programação dos computadores. O problema da lógica não está na articulação de seu discurso, está em sua atitude: a finalidade de toda Iógica, por mais escamoteada que seja, é o controle: na retórica é a persuasão (controle das vontades), na ciência, o progresso (controle da produção e da sociedade). Ciência, linguística ou psicanálise falam de uma mesma atitude: o controle da produção, da sociedade, da linguagem, da imaginação, do mistério.

A própria sociedade se organiza como imensa represa. Represa: construção de homens (alguns) para homens (muitos), junção de águas buscando, a qualquer preço, fazer de cada homem um socius ou aliado. Captação, controle, direção: a força das águas represada para delas extrair nova força e energia. Represa: o duro aprendizado dos limites. Não apenas saber a morte, finitude humana, mas sentir-se confinado pela Lei, signo da transcendência e, ao mesmo tempo, interdito imposto a um Édipo que, “de pés atados” (é o que diz seu nome) insiste em caminhar e ir além. As barragens e diques da Lei e do Direito estabelecendo limites à livre circulação das águas; comportas ou sangradouros de tabus e preconceitos permitindo regular e escoar “naturalmente” a água das tensões e impedir que sua elevação, nas cheias, possa invadir as margens e causar indesejáveis danos. Represa: a energia aprisionada do trabalho e pelo trabalho humano colocada sob o controle de mãos que se apresentam como expressão de uma Razão em ato; a energia vital da sexualidade, pela organização repressiva da libido, canalizada apenas a serviço da genitalidade e da procriação, por serem também necessários grandes contingentes humanos para operar o aparelho produtivo e para o consumo dos bens.

Nessa sociedade hierarquizada, vertical, autoritária, trabalho e sexo, pontes de ligação do seres humanos entre si e com seu mundo ficam, assim, sob controle. Poder e controle permeiam subterraneamente toda uma ideologia proibitiva e repressora. Ou seja, a sociedade moderna, imensa represa, organiza-se repressoramente.

Mesmo que Poder e Desejo, com sinais contrários sejam geradores de angustia. E que a transcendência da Lei gere estranheza e angústia no protagonista dessa história,  que se sente avaliado, julgado e com seu destino determinado “de fora” pelo invisível e inatingível proprietário de um “Castelo” ( Kafka ) em que se vê “aprisionado”.

A  que(m) serve(m)  os tabus?

O caráter de renúncia e sacrifício exigidos pelas leis e normas assim impostas se beneficia com sua sacralização em tabus: sacri-ficar, a palavra o diz, é tornar sagrado e, como tal, interdito inquestionável: se tabu é, por definição, a proibição de uma ação ou objeto dado como intocável por ser sagrado ou perigoso, entende-se por que tão temível se torna a infração e possível a aplicação de terríveis castigos ao infrator.

O que tanto pode abranger normas e regras que se quer legitimar e aplicar com maior rigor, como, por exemplo, a proibição de pescar ou caçar em determinado lugar ou época do ano, quanto pode visar a uma rigorosa distribuição de papéis, como, entre os índios tupis, a proibição às mulheres de assistir a cerimônias comandadas pelo pajé ou feiticeiro. Ou derivar de medo do tema ( ex: a morte)  ou de superstições, usos e costumes populares, como a idéia de que falar o nome do diabo é um chamado a sua presença. Mas, sobretudo, servir à manutenção de determinada ordem social e política: a pretensa “superioridade / inferioridade” entre gêneros, raças, classes sociais, etnias ou grupos, geradora do machismo, racismo, torturas etc. e estabelecida sob forma de “pré-conceitos”  indiscutidos e, como tal, impostos.

Freud apontou a natureza irracional do fenômeno, que favorece sua implantação e manutenção e tem origem em atitudes sociais ambivalentes. E assinalou que os tabus vigentes em qualquer sociedade em geral se relacionam a objetos e ações de importância para a ordem social que os impõe e pertencem ao sistema geral de controle da sociedade que assinalamos. Ou seja, servem ao sonho dos poderosos de plantão de eternizar-se no poder.

As trocas do sistema – A nova moral do mundo contemporâneo

Paralelamente aos movimentos de libertação da segunda metade do século passado ( movimentos de mulheres, de negros, de gays, de comunidades ) surge também sua cooptação, ou apropriação, pela “sociedade de consumo”, gerando o que Baudrillard situa “entre os fenômenos mais característicos das sociedades desenvolvidas da segunda metade do século XX”,  transformando-se “na própria moral do mundo contemporâneo”.

As trocas do sistema se tornam particularmente ameaçantes. O “É proibido proibir”, grafitado pelos estudantes nos muros das cidades em Maio de 68, na França, era não só uma nova forma de expressão e denúncia como revelava algo que o sistema já começava a absorver e reverter a seu favor, reforçando e/ou substituindo, a concepção negativa, reacional, transcendente do Poder, fundada na proibição e na lei, e exigindo sacrifício e renúncia, por uma concepção positiva, ativa, imanente, que faz, da manipulação do Desejo, uma estratégia de dominação social. Com suas possibilidades ampliadas pelas novas tecnologias, as grandes corporações tecnocráticas passam a elaborar e aprofundar formas não só de seduzir “consumidores”, como de provocar comportamentos, instigar necessidades, suscitar desejos de todo tipo (emocionais, sensoriais, relacionais, sexuais, estéticos etc), criando novas hierarquias sociais. Pela manipulação ou produção de necessidades, o pathos da alienação desaparece: o homem “se re-conhece” em sua TV, em seu carro, em suas propriedades, nos produtos que consome, pois o tênis de marca, a roupa de grife etc. se tornam fétiches de uma nova identidade e suposto meio de ascensão/ promoção social. As pessoas, coisas, relações não surgem mais como entidades impessoais e estranhas, a própria “coisificação” não é percebida e o homem não sente mais como angustiante, ou sequer in-cômodo, o “admirável mundo novo” (A.Huxley) e domesticado em que se instala. Parecer e aparecer substituem a necessidade de ser, estabelecem a nova norma a ser adotada para ter uma identidade desenhada pela imagem produzida e/ou copiada de “celebridades” promovidas a sedutores “modelos” de “sucesso” – e, por tal, atrativas, sobretudo aos que desejam sair do anonimato e da marginalidade.

Por esses meios, a contestação pode ser abolida sem o recurso à proibição.O pluralismo é absorvido em porosa “unidimensionalidade” (Marcuse); a própria transcendência some de vista – pois em um sistema que se faz crer encarnação da Razão, desaparece a tensão entre aspirações e realidade, entre verdade e aparência.

O modelo anterior de socialização, repressor e violento, é mascarado ou recoberto por outro, mais fluido, sutil, “miniaturizado” e introjetado (o sexual,o libidinal). Modelo correlativo de um desenvolvimento tecnológico e científico, em que o peso das máquinas e engrenagens que desenhavam a visão de mundo anterior vai se trocando por outra na qual a leveza dos átomos e moléculas, das partículas ADN no organismo, dos bits sem peso da informática caminha em paralelo a uma “microfísica do poder” (Foucault), que, com sua “modulação” e “capilaridade”, trazem para o interior do indivíduo uma nova versão do Poder, aderente ao Desejo. Na imanência do desejo, a angústia desaparece, pois o ser humano supõe ou sente como seu o que lhe é artificialmente introjetado. Pois em um sistema que tem a produção como seu eixo vital, tudo (ou quase tudo…) pode ser produzido. E sua eficácia consiste em descobrir e usar cada vez maior número de meios para tal.

No ethos consumo/ diversão implantado, em que os termos se alimentam reciprocamente, a di-versão perde também seu sentido brechtiano de versão outra, necessária ao “estranhamento” gerador de um novo olhar, e passa a ter como sentido e meta, a distração, cuja etimologia (dis-trahere= afastar de) fala por si, vendendo igualmente identidades e estilos de vida. Também a sexualidade, antes colocada sob o signo da repressão, do interdito, da proibição das leis religiosas e morais, muda seu discurso: o pathos do sexo desaparece igualmente, e o próprio sexo, “produzido”, passa a válvula de escape de tensões. Produzido – no sentido etimológico do termo, que não remete à fabricação material de algo, mas à idéia de pro-ducere, isto é, de tornar visível, fazer aparecer, comparecer (como um ator no palco): falado, mostrado, discorrido, confessado, realização imperativa e imediata de um desejo, torna-se o sexo puro funcionamento maquinal; e, como tal, cumulativo, computadorizável, preocupado como o “desempenho” e a “eficácia”, constrangido ao uso, ao desfrute, ao gasto, efêmero e descartável, em suma, “capital” sexual, libidinal, cuja gestão se dá em réplica exata à da que rege o valor da mercadoria. Ou seja, pelo imaginário da liberação, em nome da qual se supõe agir, o Poder funciona menos com a repressão, a proibição, e muito mais com essa “produção e “liberação”. E nelas se revela a incrível capacidade do sistema de produzir simulacros – e até de fazer, de seu próprio crepúsculo, o simulacro de uma aurora.

O que faz entender, em toda a sua plenitude, a preocupante visão atual: quando Poder e Desejo perdem os sinais contrários, e os esquemas do Poder coincidem com os do Desejo, é que surge a possibilidade de controle total – utopia maior de todo Poder.

Onde,  então,  o  desenvolvimento  possível  e  necessário?

O des-envolvimento, a palavra mesma o atesta, passa necessariamente por quebrar o envolvimento enganador do discurso, por questionar (desde o seu momento gerador) as representações existentes. Passa por re-instalar, entre o olhar e a fala, a inquietação e a interrogação, para redescobrir uma comunicação mais direta e espontânea com o mundo, com os outros, conosco mesmos. Passa por um revolver geral: um volver às raízes ( do estético, do lúdico, do sexual etc.), e por quebrar a linearidade de um imaginário voltado para a irreversibilidade de processos ( “progresso”, “acumulação”, “domínio”, “poder”…). Passa por entender que, se a Moral impõe normas, regras e leis para manter os mores (costumes) desejados, a Ética vai mais longe e mais fundo, examina seu fundamento mesmo: pois uma lei injusta pode ser monstruosa – o que se evidencia se lembrarmos que tudo que Hitler fez foi “legal”. Passa por que ver que o fundamento maior dessa ética é a responsabilidade para com o Outro, algo que não pode ser esquecido em um momento em que a quebra de fronteiras, de limites e barreiras exige buscar conhecê-lo e compreendê-lo como tal. Passa por ativar, pela comunicação, a troca entre as diferenças e a abertura a diferentes pontos de vista, como algo enriquecedor e meio de integrar os dados dispersos para com eles desenhar o rosto da totalidade que intuímos. Passa por ultrapassar as limitações da lógica ou de um pensamento / razão que supôs abranger todo o existir (“Penso, logo existo”), para reencontrar, no símbolo, a pluralidade do existente, as alternativas sempre possíveis, a abertura ao imaginário da invenção e da criação.

Se a representação é falaciosa, se o discurso social traz consigo uma carga de entropia que esvazia o real e impede a visão da totalidade, do símbolo pode surgir o transbordamento do significado, a extrapolação em relação àquilo mesmo que designa. Pois o símbolo denuncia seus vazios e a própria potência geradora do que aí ficou elíptico. O símbolo é filho da ruptura (embora também haja símbolos alienadores). Por isso, a troca e o salto, quem os percebe, expressa, ou até provoca, são os artistas, os inventores, os inovadores em idéias e ações. O artista/inventor é aquele que tem os olhos voltados para o amplo horizonte dos possíveis. Por isso toda grande arte sempre foi transgressora – no sentido mais amplo do termo, de confronto, violação, denúncia e ultrapassagem.

Para isso os artistas de cada tempo, atentos a seus desafios, consultam  Mnémosine, a Memória, rainha das Musas da criação, para dela indagar e com ela desenhar o rosto de cada tempo já vivido e nele perceber os traços que o (de)formavam. E a partir daí, reativam o sonhar, o inventar e criar, para neles esboçar e redesenhar um novo tempo e um novo homem.

Se o século 20 foi chamado “o século da criança”, em razão das descobertas da psicanálise e demais ciências do homem mostrando ser a infância uma fase fundamental da estruturação da personalidade adulta; se as décadas finais do século foram chamadas de “a era da juventude” (Hobsbawn) devido à decisiva participação dos jovens nas mudanças que transformariam o mundo e o próprio ser humano; se aqui no Brasil, essas camadas sociais representam 51% da população, desnecessário se torna enfatizar a importância de dar-lhes os meios de enfrentar os inúmeros desafios da era de transição que vivemos e que também os afetam, direta e inescapavelmente.

É também desafio a que não pode fugir o teatro, se fiel a seu sentido mesmo, de ser, antes de tudo, lugar de VER.