Matéria publicada na Revista Ilustração Brasileira
Por Sebastião Fernandes – Rio de Janeiro – Mai 1949
Teatro Infantil
Se já era digno de registro o interesse pelo problema da criança: agora, com mais experiência e sem aqueles inúteis gestos de demagogia ou de vaidade pessoal, mais frisante se torna a diretriz nova, pois vêm lembrar a criança como figura que se projetará no futuro para melhor ventura e sem servir, como nós, de cobaias dos senhores do mundo. Por isso a luta pelo homem de amanhã, o problema da infância e formação da criança tomou um caminho que sempre foi esquecido: O teatro.
Havia o livro quase frio, de poucas estampas com a movimentação encantadora do Disney esbarrando nos letreiros intercalados. E tínhamos num ambiente estreito (toda ditadura é um corredor escuro) o “téceico” acenando-nos com suas frias e dogmáticas lições a proibir o “maravilhoso”.
Ninguém ignora que nossas crianças precisavam de recreação, porém tudo que tínhamos era deficiente e mal feito. Não tínhamos eleições, porém havia muita demagogia de orador em “véspera” de pleito, falando na proteção à infância…
Para longe o retorno ao mundo do faz de conta, a volta às histórias de mil e uma noites, o nosso delicioso folclore contado pelas velhas pretas nas fazendas do interior, retorno que só um frio, velho e pirracento doutrinário nega para alegria e distração da criança.
Condenam os contos de fadas porque é contra a lógica. Os conhecimentos positivos, tão preconizados pelos mestres da pedagogia moderna, excluem qualquer espécie do maravilhoso.
O maravilhoso é prejudicial ao infante. Aliás, a pólvora ou a desintegração do átomo são, também, tão prejudiciais à criança e, no entanto, o mundo, de todos os lados está cheio de conhecimentos positivos. Quer dizer que toda a tendência dos primeiros anos para a evasão da verdade, o irreal, o imaginoso, o feérico deve ser eliminado. Quer queiram ou não essa teoria fará prevalecer somente o materialismo que não é só tema político como o problema da infância.
Os psiquiatras condenam os contos de fadas para a primeira infância, pois dizem que verificaram causas das psicoses no adulto. Também antes de Freud os alienistas já haviam constatado os distúrbios mentais derivados da féerie, dos sacis e duendes que se incrustaram na mente das crianças e dizem que as desordens mentais chegaram às vezes a paranoia. Isso sem falar nas taras ancestrais…
O impulso normal para pensar, tanto pode ser no camponês debruçado sobre a enxada como no datilógrafo na indefectível carta de “prezado senhor” – todos sonham. A vitória da alambicada cinematografia de Hollywood não é mais do que a fuga real em tecnicolor.
Pascal dizia que a poesia ajuda a viver. Se os adultos também gostam de sonhar, porque roubar nas criancinhas as cenas de fantasia? Por acaso o suético é algum lunático só porque a aventura de Nils Helgrsoe que contou a todas as crianças lá da Scandinava a história dum anão montado num ganso selvagem? Os pedagogos modernistas e bem materialistas apelariam para um gigante dentro dum avião… E todos os crimes fascistas germânicos têm origem em contos de fadas?
Ainda que não houve um criminalista que encontrasse entre os mais tarados criminosos algum amante de contos de fadas. No entanto todos nós sabemos como são explorados outros gêneros de publicações…
Do bebê até o infante, do berço a janela ou jardim, depois de querer ser dono de todos os cavalos, carros, procurar verificar o avesso dos relógios ou como são grudadas as pétalas duma flor será – com ou sem livro de fadas – mais tarde um sonhador que tanto pode fazer um poema como um modelo de metralhadora atômica.
Existem leis, existem policiais, os códigos reprimem toda espécie de rapinagem, tudo em ótimos estudos materialistas e de experimentados estudiosos de crimes, porém mesmo sem contos de fadas as galés estão cheias.
No entanto sabemos quantos contos de fadas mostram a vida verdadeira, dando-os conselhos, preparando o espírito infantil com exemplos e alertando a existência de seres bons e mãos, e, portanto, ensinando o caminho da vida prática. Pelo menos os contos maravilhosos jamais ensinaram os meninos a jogar pedra no professor numa antecipação jornalística da estratégica casca de banana posta no caminho dum super maioral.
Muito melhor escrevermos um conto de fadas e felicitar as crianças do que compor laudatórios da riqueza da nossa terra e importarmos batatas de países devastados pela guerra. Por acaso a incapacidade dum dirigente foi porque na infância leu contos de fadas?
Quantas vezes é numa ingênua fábula que vamos encontrar uma ótima lição para plantar feijão e outros legumes sem esperarmos a importação dos vizinhos?
Só o homem corrido de todos os ácidos da maldade e maledicência poderá negar o encanto mesmo para adultos que existe em ouvir uma história de fadas.
E que prazer para um adulto que passou toda sua infância e juventude sem ter um único espetáculo (excetuando-se honrosamente o imortal Circo de Cavalinhos) sem jamais ter ido ao teatro para ver aquilo que ouviu ou leu. Nada mais fácil, em livros, do que fazermos os animais falar a aumentar ao infinito as diabruras de personagens mais ou menos absurdas. Mas o livro não é completo para a imaginação da criança.
Por acaso temos parques de diversões?
Por acaso temos cinema infantil?
Os filmes das chamadas matinées infantis são, na sua maioria, cenas de bandidos profundamente contra-producentes.
E a não ser o foot-ball, que é um espetáculo sempre repetido, fica a criança sem uma diversão.
Na verdade não tínhamos um teatro como função precípua para a infância. Aliás nunca tivemos tal espécie de recreação. Muito raramente arremedos de dramatização e sempre mal feitos. O gênero, sendo muito difícil, era, evidentemente que por tanto tempo e em todas as épocas escritores e artistas tivessem tentado, mas sempre com grandes lacunas e deficiências.
O aparecimento do Teatro Infantil, no ano de 1948, pelos “Artistas Unidos” com a peça O Casaco Encantado, de Lúcia Benedetti, é acontecimento para ficar há História Teatral Brasileira, como em nossa evolução social e cultural.
É preciso uma ampla divulgação para o fato inédito da peça teatral de real valor em todos os setores; infantil, educativo, literário, duma singeleza de entrecho que delicia os espectadores de todas as idades, que não tenham sido mordidos pelos ideais téchinos dos pedagogos esmiuçadores de Freud e tão envenenados de regrinhas rabujantas, infelizes sofredores do fígado, incapazes do riso franco e são. Pode ser lembrada a aventura de dois alfaiates que recebem a visita do secretário do rei que rasgara o casaco – pois há muitos reis que rasgam o casaco. Quase pronta a fatiota, caiu tinta e Sua Majestade ficou foribunda e queria cortar a cabeça dos alfaiates, que tiveram de trabalhar dentro da noite. Mas aparece um bruxo que tudo transformou na oficina, o gênio do mau transfigurou o alfaiate em sapo e pôs feitiçaria no casaco, pois quem o vestisse saia pulando… o sapo e o outro alfaiate vão para a floresta em busca da caverna do bruxo para desvendar a palavra mágica que o transformasse em homem e tirasse o encanto do casaco. Porém só encontraram a bruxa, sua esposa, que estava muito triste porque tinha quebrado o cabo da vassoura nova que o marido cavalgava. Como nada conseguissem da bruxa, vestiram nela o casaco e a velha pulou tanto e os levou à gruta escura e feia onde em enorme caldeirão ia fazer a estranha beberagem de dois olhos de cabritos, água da serra colhida às três da madrugada, tromba de elefante, ovos de cobra gordura de baleia e fígado de alfaiate…
Depois duma luta conseguiram a palavra mágica, o sapo voltou a ser homem e fora levar o casaco ao palácio do rei que, como em todas as épocas, tinha um secretário intrigante e pretendente à mão da princeza. O rei eram muito rico, porém só tinha aquele casaco; ficou contente e a princesa casou com o alfaiate como só pode acontecer em contos de fada para a alegria de todos que não são técnicos…
E isto tudo com uma cenografia admirável de Nilson Pena onde vemos o relógio, o ministro, a bruxa, o sapo, o rei, tanta coisa de mentira e cheia de verdade, envolto numa poesia que deslumbrou o mundo infantil que assistiu a vitória de Lúcia Benedetti com a Companhia de Henrique Morineau.
Porém a principal vitória foi mostrando que não há riqueza e maquinaria de cinema com toda a tecnicolor que sobrepuje a imortalidade do Teatro.