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Por quantas vezes não ocorre de escorrer os sentimentos aos olhos quando, estes, emocionados, direcionam-se ao frescor da novidade de uma imagem inusitada e surpreendente a qual, numa fração de instantes, desvela e revela um mundo tão completamente desconhecido e, ao mesmo tempo, intensamente presente em nossas vidas? O mundo é muito mais do que aquilo que simplesmente vemos. Ele é, também, todas as possibilidades que dele podemos depreender imaginativamente. Por isso, a poesia completa o mundo, pois nos oferece uma nova percepção das coisas.

A animação, enquanto linguagem teatral, apresenta-se como manifestação da necessidade básica de ilusionamento humano. O homem, ávido por representar a si, ao mundo e às suas forças invisíveis, encontra na expressão simbólica do objeto animado a mais engenhosa forma para traduzir o mundo poético, projetando seu verdadeiro “eu” nas coisas que o cercam, antropomorfizando-as. Imbuído desse misterioso sentimento dêitico, é-nos possível reproduzir e apreciar, teatralmente, o encanto do ciclo existencial de todas as coisas. É da hiperatividade em exteriorizar um mundo de ideias e sentimentos, escondido por detrás de muros de pele e carne, que nasce o teatro de animação.

Nas especificidades dessa linguagem, na interação simbiótica e mágica entre ator, objeto e público, apresenta-se uma ponte pela qual podemos reencontrar o mítico e religar o homem ao sentimento sacro, ao lúdico e ao encantatório. O tempo condensado, sacralizado, a superposição de significados, a síntese e a subversão da realidade convencionada abrem portas de comunicação com o indizível, com a verdade profunda e escondida de todas as coisas; a verdade da negociação das realidades, da descoberta do vasto campo das possibilidades reais e imaginárias. No teatro de animação, homens e coisas animadas se igualam em valor, de tal maneira que não identificamos mais o objeto ativo nem o passivo, pois ambos tornam-se unidade indivisível que compartilham o ela vital, insuflando no espectador, também, um pouco da centelha divina que permeia o maravilhoso bale de movimentos de simulação e dissimulação de vida e morte.

Para falarmos de uma dramaturgia para o teatro de animação, podemos começar ponderando que a criação dramatúrgica começa com uma semente (propostas, pretextos) que detona o desejo de desenvolver algo. Essa semente deve ser uma imagem geradora que comova e produza histórias. Pode ser uma imagem suscitada por um objeto, um lugar no espaço, um personagem ou outra coisa qualquer que, fundamentalmente, impressione-nos e nos estimule a dizer algo sobre. A partir dessa semente é que serão feitas improvisações imaginárias que relatarão uma história, compondo uma escritura ou cena teatral. Imaginação é a imagem em movimento. Imaginar é transformar a imagem dinamicamente. Uma imagem, por si, é estática. Uma vez que improvisamos com ela, tornamo-la dinâmica. A criação dramatúrgica deve prever movimento contínuo da cena para suscitar no leitor, ou público, a constante interpretação multissignificativa. Alguns elementos são fundamentais para uma boa criação, como a surpresa (o acontecimento inesperado), o suspense (a expectativa do que pode acontecer) e a comoção (a criação deve abalar, perturbar, tocar de alguma forma os sentimentos do público).

Dramaturgia, portanto, é o registro de um mundo de imagens dinâmicas, de uma improvisação imaginária captada por todos os sentidos em um suporte, seja ele papel ou a própria cena, através de caneta ou ações físicas e/ou psicológicas (para esta improvisação imaginária, a marca da sensorialidade é imprescindível. Quando a imaginação não percebe o sensorial, a obra fica chata. O sensorial ativa e induz ao poético). Dramaturgia é o desenvolvimento do drama, uma ação conflituosa que impele as imagens à dinamização, à imaginação. O conflito (alguma coisa que se opõe a outra coisa de alguma forma), portanto, é o cerne da dramaturgia. Ele é que causa o desequilíbrio que irá mover os acontecimentos. Ao seu redor orbitarão as peripécias (imprevistos, incidentes) da história representada. E, se o conflito é o motor de toda a ação dramática, o combustível para esse motor é a angústia e o desejo, ou os dois ao mesmo tempo. Toda angústia interna revertida ao exterior e todo desejo contrariado geram conflitos – sejam de ordem cultural, sobrenatural, físico, psicológico etc.

Ao elaborarmos uma dramaturgia específica para o teatro de animação, devemos observar as propriedades intrínsecas da linguagem, suas especificidades e suas limitações. A força do teatro de animação está naquilo que o objeto-personagem, desprovido de vida, mas com o valor convencionado de um ser vivo, pode realizar de forma única, ou seja, aquilo que somente suas propriedades físicas, respaldadas pela convenção cênica, permitem-lhe realizar. O objeto, pela forma como sua fisicalidade se nos apresenta no jogo cênico, descreve, por si só, grande parte de sua composição dramática. Entretanto, é através da interpretação e manipulação que o ator irá potencializar as propriedades do objeto, conduzindo as imagens dinamizadas para o espectador. E, na forma como será realizadas a interpretação e a manipulação, em conformidade com as características físicas do objeto-personagem, é que será construído o discurso. Assim, para realizar a criação dramatúrgica, vale lembrar que, os objetos personagens:

– Podem realizar ações impossíveis, transgredindo as leis da física (velocidade, tempo, peso).

– Pela sua função simbólica, podem aludir a muito mais do que são;

– Podem transgredir as proporções e, com isso, construir um discurso;

– Não necessitam transformar-se, “são” em si mesmos;

– São mais aptos para as convenções, pois “são” convenções. Dessa forma, a permissividade do público é muito maior;

– Não necessitam ter fisicalidade antropomórfica, embora a eles se atribuam qualidades antropomórficas nos traços psicológicos;

– Exigem a cumplicidade do público na aceitação das convenções;

– Podem voar, multiplicar-se, transformar-se, explodir, desaparecer imediatamente, com uma velocidade que nenhum ser humano possui;

– Dizem algo pela significância do material que os constituem.

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Paulo Balardim
Ator-bonequeiro, cenógrafo e pesquisador de teatro de animação.

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 8º e 9º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2004 e 2005)