Crítica publicada no Site Pecinha é a Vovozinha
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 20.09.2019
Comentários críticos entusiasmados a respeito de meia dúzia de espetáculos recentes do circuito paulistano de teatro para crianças e jovens
Vou hoje escrever um pouquinho sobre cada uma das seis peças infantojuvenis que vi recentemente em São Paulo – e algumas até já saíram de cartaz.
Espero que voltem em novas temporadas. Gostei de todas estas a seguir: Elagalinha, Vila dos Macacos, Bertoldo – O Tubarão Que Queria Ser Gente, O Amigo Fiel, Nomo e Tatianices. Como eu estava atrasado para escrever sobre todas essas peças, resolvi inaugurar uma modalidade entusiasmada de escrita: a ‘baciada’ de críticas. Ou: inando por atacado! Desfrutem e me perdoem pelo atraso.
Acho magnífico quando me deparo com um autor que diz coisas atuais, necessárias, urgentes, sem precisar ser explícito, agressivo, catequético. Um autor que dá seu recado por metáforas, fabulações, sugestões, mais do que entregas. Assim é Marcelo Romagnoli, sempre, mas agora também em seu mais novo texto, Elagalinha, que até já saiu em livro pela Patuá Editora. O galinheiro (literalmente) que ele armou no quintal do Sesc Ipiranga era delicioso, uma festa lotada de adultos e crianças em todas as sessões. Ele falou de censura, de ditadores, de fascistas, de direito à educação, em uma ode à liberdade de expressão, feita por imagens, alegorias, simbologias, paródias, brincadeiras – mais alegria e até deboche do que raiva. Isso é ser um grande autor. Isso atinge mais do que enfiar o dedo no nariz da plateia com lições de moral – nunca me canso de escrever isso.
O elenco de Elagalinha é um primor de talento e graça. Um time de feras. Jackie Obrigon, Guto Togniazollo, Joaquim Lino, Georgette Fadel, Cris Rocha e Pascoal da Conceição. Todos impecáveis, hilários, exuberantes. Joaquim e Pascoal fazem um par de críticos de teatro infantil, um bonzinho, o outro cruel, que interrompe a peça a todo momento, com observações cerceadoras e palpiteiras. Grande sacada nesses tempos da volta de patrulhas e censores. A música ao vivo é simplesmente um encanto, com Gui Calzavara e Bruno Garcia (batizados de Granja Sounds!), que executam a sempre competente trilha original de Dr. Morris. E como não se derreter pela cenografia de Marisa Bentivegna e os figurinos de Chris Aizner, que se complementam à perfeição na caracterização da ambiência de um microcosmo-galinheiro? Tudo incrível e muito bem pensado. Orgulho do teatro para crianças feito em São Paulo.
Saí exultante também da plateia de Vila dos Macacos, que encerrou temporada curta no Sesc Pinheiros. Para criar o espetáculo, a Cia. Nóis na Mala investigou alguns textos literários, como o conto “O palácio dos macacos”, do livro Fábulas Italianas, de Ítalo Calvino. Tem o mesmo tom de alegria e fábula bem contada de Elagalinha. Também fala do mundo de hoje sem usar clichês e didatismos. A sacada do reality show para escolher um sucessor para o rei é sensacional, atualíssima.
O mundo de vaidade nas redes sociais, a febre por ser celebridade, a descoberta das diferenças, os conceitos de lealdade e honestidade – tudo isso está em cena da forma mais eficiente possível, com divertidas referências sobre as tantas trapalhadas de nosso atual governo federal – o que regozija os adultos da plateia também. A dramaturgia (João Alves) enreda o público sem ser acintosamente militante, ao contrário, tudo é pura diversão em cena. Sou fã desse grupo desde Uma Jornada de João e Maria. Ótimo recurso da direção de Bruno Cordeiro é iniciar a peça no saguão, com os atores travestidos de macacos, para as crianças menores já se aproximarem sem medo e entenderem que é um jogo teatral. Plenos de informações são também os figurinos de Ana Luísa Lacombe e a cenografia ágil de João Alves. Grande momento de nosso teatro de censura livre, capaz de atingir a todas as idades!
Gratíssima surpresa foi ver Bertoldo – O Tubarão Que Queria Ser Gente, no auditório da Biblioteca Mário de Andrade. O subtítulo diz tudo sobre o que você vai ver: “Uma Experiência Brechtiana”. Se você quer ter noções do que Brecht significou para o teatro mundial, com suas lições de distanciamento e o uso da música em cena, não pode deixar de ir – e levar crianças também. É ideal, inclusive, para escolas de iniciação teatral recomendarem para seus alunos.
Peça escrita a partir do conto do escritor alemão Bertolt Brecht, Se os Tubarões Fossem Homens, narra a história de um tubarão que quer adestrar peixes para que nadem pacificamente e felizes… para dentro de sua boca. Que imagem genial para falar de…tanta coisa! Um tema universal. A adaptadora Christine Röhrig e o diretor Alvise Camozzi acertaram em tudo, sobretudo na forma como fazem a plateia deliciosamente participar de algumas cenas decisivas da trama. O bom uso do jogo narrativo, a quebra da quarta parede… está tudo lá. Menção também para o capricho nos figurinos e adereços de Márcio Vinícius, sempre um craque.
Uma aula de puro encantamento quem também nos dá é mais uma vez o veterano Grupo Sobrevento, com O Amigo Fiel. Baseado no conto homônimo de Oscar Wilde, escrito há 130 anos e ainda muito atual, o poético espetáculo dirigido por Sandra Vargas usa o teatro de sombras e bonecos construídos com galhos de árvores (maravilhosos!), para refletir sobre o cinismo, o individualismo e, em contrapartida, também sobre a tolerância e a amizade. Um amigo, de coração aberto, sem interesse nenhum e como um poço de bondade e solidariedade, ajuda o outro constantemente – mas é sempre de mão única, pois o egoísta receptor nunca retribui. O mais lindo nesse conto de Oscar Wilde é como o amigo fiel nunca desiste de continuar ajudando, mesmo diante de tamanha injustiça e falta de reconhecimento do outro.
Uma montagem calma, magicamente fluente, narrada com placidez, tirando criatividade de gestos simples, na contramão do mundo frenético a que hoje as crianças são submetidas. É tão lindo e tão triste. Não tenha receio de levar suas crianças em uma peça triste. Falei acima com entusiasmo da alegria em cena de Elagalinha e Vila dos Macacos, mas a tristeza nos ensina tanto também. Um espetáculo que cala fundo em nossos corações. Impossível não enxugar lágrimas no canto dos olhos, ao final. Mais um magnífico acerto do Grupo Sobrevento, em sua trajetória de 32 anos. Que marcante trilha de William Guedes, que iluminação envolvente de Renato Machado! Ah, e não deixem de pedir o programa impresso, uma das peças gráficas mais delicadamente elegantes que vi nos últimos tempos no teatro para crianças. O crédito da programação visual é de Liana Yuri, também atriz da peça.
Para jovens e sobre jovens, Nomo é top de linha. Vi no Teatro do Shopping Jardim Sul, que eu não conhecia e onde ainda está em cartaz, mas por pouco tempo. É bom, muito bom. Também pudera. Direção e dramaturgia são assinadas por Pedro Garrafa, que já está nesse ramo de fazer teatro para adolescentes há alguns anos, tendo inclusive levado alguns prêmios por isso. Ele entende do riscado. Escreve sobre a alma dessa moçada, com perspicácia, sensibilidade, incrível empatia. Dramaturgos como Pedro Garrafa são raros e muito necessários, porque a vertente de teatro jovem carece de mais e mais textos – textos assim como o dele, em que o jovem se identifica, não fica enfastiado por ser teatro para adultos nem fica irritado por ser tratado como criança.
Nomo é assim. Diálogos maravilhosos, engraçados, cortantes, acertadíssimos, sem gorduras desnecessárias, sem pieguices infantilóides que afastariam a galera descolada da plateia. E como Pedro Garrafa é bom diretor de atores!, pois o casal em cena é perfeito. Dois atores adultos que interpretam com jeito de adolescentes, sem ficarem ridículos nem forçados. São eles Kuka Annunciato (em uma incrível composição de teenager misteriosa, com cabeça cheia de neuroses da idade) e Lucas Padovan (simplesmente magnífico e merecedor de prêmios, por seu jeito de viver um nerd obsessivo e antissocial).
O casal dá conta do recado como poucas vezes vi no teatro, um completando o outro a cada cena. Ah, a peça fala da dependência que todos nós já temos – mas os adolescentes mais ainda – da tecnologia e, especificamente, dos smart phones. A concepção cenográfica, com duas telas de celular projetando imagens dos personagens, é perfeita, apropriada e criativa. Corra para ver, com seus meninos e meninas crescidinhos. E se emocione com eles. A peça é linda. Fala deles – e fala de nós, os pais deles.
E eis que, na semana passada, tive mais um grande prazer imenso na plateia de teatro para crianças: constatar a sensibilidade de um grupo incrível de artistas que se dispôs a homenagear (sem patrocínio!) a grande autora Tatiana Belinky (1919-2013) no ano de seu centenário de nascimento. Tatianices (título encantador!) juntou os seguintes talentos: Ideia e pesquisa: Deborah Corrêa, Elder Fraga e Joaz Campos; Dramaturgia: Marcello Airoldi; Direção: André Capuano; Direção de Arte e visagismo: Kleber Montanheiro; Elenco: Joaz Campos, André Pereira, Gabriel Ivanoff e Rita Gutt; Músicas originais: Joaz Campos, Marcello Airoldi, Giovani Martins e Gabriel Ivanoff; Figurino e adereços: Deborah Corrêa; Bonecos: Marcio Pontes; Iluminação: Ronaldo Dias.
Que time! Que feliz agrupamento de gente sensível! Tatiana, se visse o espetáculo, morreria de orgulho da forma como todos não só se apropriaram, como recriaram coerentemente sua arte, sua forma de pensar o teatro para os pequeninos, sua poesia latente. Gente mais despreparada poderia fazer um espetáculo hagiográfico, cartesianamente biográfico, ingenuamente laudatório. Nada disso. A começar pelo texto genial de Airoldi (com sua estrutura multifacetada, rimada e alegórica), passando pela direção fluida e inteligente de Capuano, tudo remete ao universo de Tatiana, sem ser fácil, sem ser bobo.
Que delícia saber que há pessoas que fazem teatro para crianças sem a obsessão por explicar tudinho o tempo todo. Que sensacional deixar que cada um monte seu quebra-cabeças interno de sensações e emoções. Assim é Tatianices. Corra também, com a certeza de que se encantará por imagens e ideias, mais do que com uma trama linear. As crianças precisam passar por experiências assim, para já começarem a entender como são infinitas as possibilidades de se contar uma história no teatro.
Parabéns a todos da equipe e obrigado para sempre. Viva Tatiana!