Contrária a qualquer didatismo em literatura infantil, Sylvia Orthof diz que “livro deve ser sempre uma festa”. Foto: Frederico Rozario

Matéria publicada no Jornal do Brasil
Por Beatriz Bomfim, Rio de Janeiro, 23.11.1984

 

Sylvia Orthof – O Prazer de Recriar a Magia da Infância

O livro infantil, para ela, que escreve desde pequena, faz e monta peças de teatro, cria bonecos e ganhou dois prêmios com Os Bichos que eu Tive (APCA) e A Vaca Mimosa (Jabuti) deve ser uma festa. Assim como a cultura, que não se deve metamorfosear em senhora de ar severo, coque segurando os cabelos.

Sylvia Orthof, três filhos grandes, dois netos e “outros postiços”, publicou 12 livros infantis desde 1980. Prontos, guardados na gaveta ou ainda no prelo das editoras, foi através do teatro infantil que chegou à linguagem simples, enxuta, ideias aqui e ali pipocando, cutucando, divertindo, revelando medos ou defeitos, falando de uma vaca gorda que é uma formosura ou da liberdade do bicho carpinteiro.

Foi com Os Bichos que eu Tive, ou memórias zoológicas do tempo da menina que morava em Ipanema com amendoeiras e grandes espações vazios, que ganhou, recentemente (não recebeu ainda a comunicação formal) o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, pelo melhor livro infantil do ano passado. Um livro que, publicado pela Salamandra, volta aos seus medos e alegrias de criança, fala do bicho de pé de estimação ou do elefante que não ganhou de presente, do cachorro bassê e do bicho carpinteiro.

Todas as histórias dos bichos têm um começo verdadeiro. Depois, deixa voar sua fantasia. Em Bicho Papão de Minha Imaginação, conta os medos ou a invenção. No caso, de uma cozinheira gorda, Guiomar, que vivia lhe falando de histórias incríveis, “de botar cabelo em pé”. Era sobre o demônio que podia tomar várias formas, o que era conferido pelos pés de pato.

Numa fase em que havia algo no ar (“meus pais estavam se separando, devem haver entrelaçados aí problemas psicológicos”), cismou que o pai era o bicho papão e não olhava para seus pés.

Não são apenas bichos triviais. E são o centro de histórias de uma autora que não gosta de ditar normas para crianças, escrever como adulto mas sim deixar desabrochar o que de criança tem dentro de si, numa conversa de igual para igual, sem “apequenar ou mostrar só o bonitinho”. Tem, pronta para ser editada, uma história de terror, primeira experiência, por achar que as crianças gostam (escreve, sobretudo, para a faixa dos seis, sete, oito anos) de um “medinho gostoso”:
– Criança, para perder o medo, deve enfrentá-lo. E sentir ciúmes, conhecer defeitos e não apenas qualidades.

Sua rotina de autora de livros infantis surgiu há pouco tempo e ganhou um empurrão depois de ganhar dois concursos do Teatro Guaíra, em anos seguidos, com A Viagem de Um Barquinho (a mesma peça deu-lhe um Molière) e Eu Chovo, Tu Choves, Ele Chove.

Foi aí que Ruth Rocha convidou-a para escrever histórias curtas para revistas, surgindo depois os livros, muitos já prontos e guardados na gaveta.

Sylvia Orthof não escreve a partir de roteiros. Para ela existe apenas uma disciplina de horário que a faz sentar-se diante de uma máquina com folha branca e escrever, trabalhar seu processo de criação como alguém que come no momento da fome. Esquece muito o que já escreveu, tem até medo de autoplagiar-se e, entre suas poucas regras, não gosta de lançar uma moral de adultos, verdades insofismáveis, lobos que comem crianças porque estas desobedeceram à mãe.

Em sua casa em Laranjeiras, no início de uma ladeira, móveis antigos, portas pintadas pelo marido, o arquiteto e ilustrador Tato, jeans e blusa branca, fala com alegria e prazer do seu ofício, dividido ou misturado com o de escrever e montar peças infantis, fazer bonecos na máquina de costura que fica do lado oposto à de escrever.

 

Diz do seu gosto em encontrar rimas- conheceu uma mulher que se chamava Maria e tinha mania de limpeza, mas ao dar título ao livro escolheu Limpeza de Teresa ou A Barriga de H.Linha, Um Pipi Choveu Aqui – da busca, agora com o marido ( o filho Gê ilustrou muito com ela, mas está fazendo mestrado nos Estados Unidos), de ilustrações diferentes das usuais:

 

– Tenho visto muitas ilustrações de livros infantis que tendem a ser bonitinhas. Estou buscando, com Tato, as que possam ser mais sarcásticas, porque o bonitinho, em educação, é muito perigoso. Uma história deve ser forte, não fraca – diz. Em Histórias Curtas e Birutas, chegou ao que quer: a ilustração do vovô general e da vovó vedeta é mais picante, divertida.

Péssima aluna na escola, Sylvia gostava só de redação. E aos 12 anos ganhava um concurso de revista, com uma poesia. Com formação de teatro –  fez escola de arte dramática – nunca estudou Literatura mas é chamada para dar aulas de como escrever histórias infantis ou contar histórias ou ainda sobre teatro infantil.

Pára, acha que está falando muito dela mesma, mas sorri quando recebe a confirmação de que é assim mesmo porque a entrevista é ela. E fala dos filhos, dos netos. Brinca com o cachorro boxeur, Banzé, e revela alguns de seus cuidados ao escrever para crianças ou ter seus livros ilustrados.

– Procuro ser política sem ser politiqueira, levar problemas como justiça social através de situações. E não resvalar para o reforço de situações como a de submissão da mulher através de uma imagem dela na cozinha e o marido lendo jornal, ou de racismo com a apresentação da empregada doméstica sempre negra.

Sylvia, que se define como uma pessoa mais a favor do que contra, não critica, como muitos autores de livros infantis, a televisão.

– Não é a televisão que é ruim, mas os programas nela apresentados. Acho que a TV, como a cultura, deveria ser uma festa. E gostaria de escrever histórias para este veículo, com criatividade e simplicidade, com menos produção e mais artesanato, porque vivemos num país pobre e grande. Na minha opinião, a televisão passa imagens muito globais, mostrando um mundo artificial de mulheres sempre lindas e falsa riqueza.

Lamenta o pouco espaço dado a “tudo que se relaciona com a criança”:

– Teatro infantil é teatrinho, livro é livrinho, dizem que a criança é a coisa mais importante, mas não a respeitam tanto assim.

Mas reconhece que de repente, para seu espanto, está começando uma onda “de leitura saudável”, com os adultos dando livros de presente para as crianças, as escolas buscando uma integração autores-leitores.

Contrária a qualquer didatismo através das histórias infantis – abre uma honrosa exceção para Monteiro Lobato, onde aprendeu muito de aritmética-, afirma:

– Uma história infantil não pode servir de pretexto para aulas de geografia ou quaisquer outras. Isto é perigoso, rompe com o sentido lúdico da literatura. Livro, para mim, deve ser sempre uma festa.

“Papai ia para São Paulo. Era a sua primeira viagem de avião. Antes de partir ele falou:

– Sylvia, vou viajar de avião. O que você quer que eu traga pra você?

– Quero uma nuvem – respondi, depois de pensar um pouco. Achei que uma nuvem seria ótimo: era coisa fofa, boa de brincar.

 

Papai e mamãe riram. Senti raiva, um pouco de vergonha. Notei que havia pedido algo de ridículo, comecei a pular num pé só, pra disfarçar. Papai partiu, com muitas despedidas. Era um acontecimento; ia viajar de avião!

Quando papai voltou trouxe a rã, em vez de nuvem. Achei a troca meio maluca, mas eles eram adultos, achavam que rá valia igual a nuvem, com certeza.

Ou, quem sabe, por cima das nuvens, pulavam rás?

Meu pai deve ter estendido o braço, pela janela do avião, e pescado a rá, na nuvem”.

Trecho de A Rã Santa Aurora, do livro Os Bichos que eu Tive