Fotos: Leekyung-Kim

Crítica publicada no Site Pecinha é a Vovozinha
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 02.12.2017

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Cia. do Fubá estreia com talento no teatro para jovens

Space Invaders é um retrato fiel e doloridamente agudo das angústias dos adolescentes em fase de virar adultos

O título da peça, Space Invaders, em cartaz no Espaço Elevador, da Bela Vista, na inusitada faixa das 19 horas, pode causar um estranhamento inicial ou suscitar algum questionamento, por não ser um título em português. Mas, ao ver o espetáculo, entendemos perfeitamente essa escolha. Para início de conversa, Space Invaders, para quem não se lembra, era um dos mais famosos games do antigo Atari, nos anos 1980. Além disso, o personagem principal, o adolescente Caio, de 14 anos, é fã não só de games como de quadrinhos, as HQs, e durante toda a trama ele fica criando justamente a sua HQ, que leva esse mesmo título do jogo de Atari, por decisão dele. E mais: três ‘invasores’ surgem repentinamente em seu espaço, três space invaders.  São eles os três filhos de seu padrasto: Pedro, de 17 anos, Vanessa, de 14 anos, e Luca, de 11 anos, que terão de passar a morar com Caio, enquanto a mãe deles está gravemente doente e depressiva. De uma hora para outra, o introspectivo Caio vê sua casa invadida pela prole do padrasto. Pronto, o título da peça fica, assim, mais do que justificado.

De início, o trio de recém-chegados não consegue se entender com Caio, nem mesmo conversam. Os três acham nerd demais aquele menino trancado em casa, desenhando sua HQ o tempo todo e, o que é mais estranho ainda, vestido de astronauta. Fã de David Bowie, Caio retrata a si mesmo em sua HQ como o astronauta Major Tom, da música Space Oddity (1969), um homem que abandona a vida na Terra e acaba sozinho na imensidão do espaço. Aos poucos, vamos conhecendo também as personalidades do trio indesejado. Pedro, o mais velho, angustiado, visita a mãe todo dia sem contar para ninguém; Vanessa sonha com sua festa de debutante, que acaba estragada porque seus nudespara o namorado vazam nas redes sociais, e Luca adora se vestir de mulher e usar o batom da irmã, virando alvo fácil de bullying na escola.

Bom, dito tudo isso sobre o enredo da peça, também fica claro – para quem ainda não foi ver – o quanto ela procura retratar com acuidade a fase da adolescência. Como está apropriadamente relatado no programa da peça, é “uma tentativa de fechar certas feridas que se abriram na gente quanto tínhamos 13 ou 14 anos, fase em que a gente já é velho demais para não entender que a vida dói, mas ainda é novo demais pra saber como fazê-la parar de doer”. Perfeito. Essas palavras traduzem o “climão” do que se passa em cena, a angústia de quatro teens à beira de virar adultos e à custa de muita dor, suas solitárias dores de crescimento.

Fernanda Gama, autora e diretora de Space Invaders, estreando na dramaturgia para (e sobre) adolescentes, demonstra um domínio perfeito de suas intenções como dramaturga e como encenadora. Acerta em tudo. Com o ótimo elenco da Cia. do Fubá, ela dá seu recado com segurança, poesia, dureza, empatia. Impossível que os jovens não se espelhem, impossível que os adultos não se emocionem. Poucas vezes se viu no teatro uma peça tão correta e eloquente no recorte escolhido dentro desta vastidão de interrogações que compõe o universo da juventude urbana burguesa. É realista, mas também fantasiosa. É crua, mas também delicada. Aos poucos, personagens intransponíveis se estendem as mãos, confortando-nos com uma lufada de esperança.

No papel de Caio, está Bruno Gavranic, em uma composição bem adequada para o nerd solitário e arredio. Sua atuação imprime estranheza na medida certa. Pedro, o irmão mais velho, é feito por Mateus Monteiro, que consegue se equilibrar com garra em um personagem muito frágil e misterioso, embora tenha de parecer forte e transparente diante dos irmãos menores. Paula Bega, como Vanessa, nos brinda com um incômodo retrato da menina ingênua, sonhadora e facilmente manipulável, às voltas com seu inseparável smartphone. E o caçula da história, Luca, chega a enternecer, graças à sensibilidade de seu intérprete, Leonardo Devitto, que precisa o tempo todo dar conta dos limites entre retração e espontaneidade. Não à toa, trancado sozinho no banheiro é que o menino, enfim, consegue espaço para simplesmente ser. Para todos os quatro, Fernanda Gama brilhantemente escreveu diálogos secos, diretos, econômicos, além de, como diretora, ter ao mesmo tempo construído brechas e vazios para um jogo de doloridos silêncios.

Meu entusiasmo com o espetáculo Space Invaders ainda vai além. Coroando toda essa verdadeira precisão cirúrgica na representação de um angustiado universo teen, aparece a cenografia de Victor Merseguel. É ver para crer. Vencedor no ano passado como melhor cenógrafo do Prêmio São Paulo de Incentivo ao Teatro Infantil e Jovem, pela peça Meu Amigo Inventor, na qual ele também participa como ator (em temporada aos domingos, até o dia 17, no Sesc Santana), Merseguel traduz aqui, em arquitetura cênica, de um jeito absolutamente brilhante, toda a aflição contida no tema da peça – auxiliado pelo desenho de luz de Jimmy Wong e pela trilha sonora da própria Fernanda Gama.

O apartamento construído pelo inventivo cenógrafo inspira-se em uma página do álbum de quadrinhos que o protagonista tanto preza. Esse simulacro de feitio propositalmente delimitador resulta em uma ambiência perturbadora, que consegue ser tão sufocante quanto lúdica (pela aproximação com a linguagem visual das HQs). Aliás, pelo material de divulgação do espetáculo, somos informados de que, entre as inspirações da peça, estão as seguintes graphic novelsJimmy Corrigan – O Menino Mais Esperto do Mundo, de Chris Ware, Cicatrizes, de  David Small, Retalhos, de Craig Thompson, e Fun Home, de Alison Bechdel. Não é pouco.

Space Invaders garante, sem sombra de dúvida, seu lugar de honra na galeria dos grandes espetáculos recentes. Cia. do Fubá e Fernanda Gama entraram pela porta da frente e escancararam ao público adolescente a matéria ímpar de que o teatro é constituído quando praticado com todo esse talento. Que essa estreia na dramaturgia para jovens inspire mais e mais pérolas no currículo futuro da companhia, para nosso deleite e desfrute.

Serviço

Local: Teatro do Núcleo Experimental
Endereço: Rua Barra Funda, 637 – Barra Funda, São Paulo
Telefone: (11) 3259-0898
Capacidade: 65 lugares
Quando: Sábados e domingos, às 19h
Duração: 75 minutos
Classificação etária: 12 anos
Ingressos: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia)
Temporada: De 24 de fevereiro a 18 de março de 2018