Crítica publicada no Jornal do Brasil – Caderno B
Por Eliana Yunes – Rio de Janeiro – 24.10.1987
O Ponto de Vista da Infância
Como é difícil para o adulto alcançar o ponto de vista da infância sobre o mundo. Justamente porque não se trata de reduzir-se, mas de abarcar o olhar destituído de preconceito e ante racionalista de que a criança dispõe, se ainda não foi domada pelas exigências de se enquadrar no comportamento esperado pelos adultos.
Estão nos palcos do Rio – Teatro Ipanema e no Cacilda Becker – duas peças que merecem atenção: Sonhe com os Ratinhos, de Ricardo Maurício, e Telefone sem Fio, da dupla Beto e Denise Crispun. A primeira já foi montada em 1981 com algumas indicações para o Mambembe e a outra é um texto inédito. Em ambas, a questão que se coloca é a do ponto de vista da criança sobre a realidade que nos circunda a todos e à qual ela reage de forma diversa. As visões adultas, em geral paternalistas ou nostálgicas, cedem aqui lugar ao tratamento lúdico de temas como a morte em Telefone sem fio e da higiene em Sonhe com os ratinhos.
Embora à saída de cada espetáculo o chão da plateia frequentemente pareça um tapete de lixo, em casa as famílias costumam zelar para que as crianças não cheguem a uma relação amistosa com ratos e baratas. Estre quando muito aparecem no Casamento de D. Ratinha, mas ninguém recomenda que se sonhe com eles. Como o espaço do sonho permite tudo, já se viu com Freud neste caso, ele apresenta uma nova versão das relações com os bichanos que coloca em pauta o ridículo da histeria adulta com suas noções de nojo, sujeira e feiura. O tema, aliás não é novo, desde a Bela e a Fera e até Clarice Lispector o retoma para uma revisão.
A direção ágil do próprio autor e a boa solução dos cenários de Analu Cunha dão ao espetáculo o ritmo desejável do
sonho e desestruturação da lógica do real que convêm a uma história destas. Um único senão a registrar – deste ângulo, menos gritos dos atores/crianças e bichos, acentuariam mais ainda a diferença, além de permitir melhor acompanhamento da sequência pelos menores.
Já no caso da peça dos Crispun, os muitos pequenos, apesar de soluções cênicas divertidas, não estão contemplados pelo ponto nevrálgico do texto. A morte de uma tia querida, mais companheira que a mãe, para o menino, é desenvolvida no imaginário em uma série de etapas que vão lhe permitir a assimilação da perda. Vista com os olhos do menino, lidando com sua linguagem e os impasses de seus sentimentos, o Telefone sem fio é metáfora de sua ligação com o interior e o sentimento, a exemplo do que se vê com o Corda Bamba, de Ligia Bojunga, também em cartaz, ao tratar do mesmo tema.
Aqui a direção imprimiu de fato um caráter mais lúdico e menos metafórico ao texto, o que permite boas risadas, além das curiosas disposições encontradas para o tipo de palco de arena.
Nesta como na outra peça, o importante a registrar é o deslocamento do foco para o da percepção infantil que reelabora o real numa linguagem surpreendente e inovadora capaz de desmitificar o tempo inocente e fantasioso da infância
como sendo de alienação. Aqui mais que o olhar, aparece uma visão crítica da criança sobre o cotidiano.