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Ao observar a programação do Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau, edição de 2015, é possível constatar a presença de espetáculos que trabalham com Teatro de Animação. Isso não constitui uma novidade na programação, uma rápida retrospectiva sobre edições anteriores do Festival, possibilita constatar que desde a sua criação, no ano de 1997, a presença de espetáculos que utilizam as diferentes linguagens do Teatro de Animação é recorrente. Em muitos trabalhos predomina a presença de bonecos em suas diversas formas de confecção e de animação, ou manipulação, noutros o uso de máscaras e o Teatro de Sombras. Isso resulta, principalmente, da qualidade técnica e artística de grande parte dos espetáculos de Teatro de animação, que tem se transformado de modo significativo nas últimas décadas no Brasil.

Inúmeros fatores colaboraram e continuam influenciando estas mudanças, como: o aumento na quantidade de grupos que se dedicam a essa arte; as experimentações efetuadas pelos grupos nas diferentes etapas de criação de seus espetáculos; a troca de experiências entre grupos nacionais e do exterior, principalmente durante a participação em festivais; o oferecimento de oficinas, cursos, ou a realização de residências artísticas por grupos de teatro; o ensino ministrado nos Cursos de Artes Cênicas em Universidades brasileiras; a publicação de artigos e textos sobre esta arte em revistas ou como capítulos de livros. Com isso, a compreensão sobre o ato de animar a forma inanimada e sobre o trabalho do ator que atua neste campo de expressão se ampliou.

A concepção de teatro de bonecos como teatro contemporâneo, como linguagem, com leis e códigos, com um vocabulário, como um teatro reconhecidamente importante e inserido no universo das artes, vem sendo construído há anos e resulta do esforço, do trabalho conjunto, de iniciativas e de ações realizadas por profissionais, instituições e coletivos artísticos que reconhecem o papel social e as contribuições dessa arte para o país.

No entanto, ainda perdura, entre algumas pessoas, a ideia equivocada de que o bonequeiro não é ator, que seu trabalho se restringe a manipular, e sua formação profissional consiste em adquirir, pela experiência, as técnicas adequadas para utilizar bonecos. Certamente isso se deve a resquícios de uma equivocada concepção de que o Teatro de Animação é arte menor e, todavia, não superou a visão de cronistas, historiadores e viajantes pelo interior do País que, no século XVIII, viam o teatro de bonecos popular como uma ingênua diversão do povo. (Borba Filho, 1987, p.56.)

Essas transformações se tornaram mais visíveis para o grande público quando os bonequeiros, a partir dos anos de 1970, abandonaram a empanada, as tapadeiras e passaram a atuar à vista dos espectadores.

Os espetáculos recorreram ao uso de novos materiais, formas e objetos o que determinou a busca por novas dramaturgias e isso provocou mudanças no modo de praticá-lo.

As relações do teatro de bonecos com outras artes, notadamente as artes visuais, a dança, o cinema, o circo, modificaram o modo de pensar essa arte e assim temos hoje um teatro de bonecos que deixa de ser preponderantemente homogêneo para se tornar heterogêneo e híbrido. O teatro heterogêneo “é aquele no qual o boneco deixa de ser o elemento dominante. Ele não é mais do que um componente entre outros, como o ator animador à vista, o ator mascarado, os objetos e os acessórios de todos os gêneros. (Jurkowski, 2010, p.08). Já teatro de bonecos homogêneo é definido como “um teatro de bonecos não contaminado por outros meios de expressão”. (Jurkowski, 2010, p.64).

Ao observar a atual produção de espetáculos a expressão teatro híbrido talvez seja a mais adequada porque rompe com as fronteiras, atenua e relativiza os códigos e registros que tornaram o teatro de bonecos conhecido do grande público.

Este texto pretende discutir alguns aspectos do trabalho do ator no Teatro de Animação e contribuir para ampliar a compreensão sobre este ofício.

O ator no Teatro de Animação-Teatro de Animação é uma manifestação cênica que se caracteriza pela presença da forma animada. Ela pode ser o boneco com traços antropomorfos ou zoomorfos, forma abstrata, imagem, silhueta, sombra, máscara, objeto de uso cotidiano manipulado/animado pelo bonequeiro, pelo ator-animador que atua de modo oculto ou visível na cena. Um dos principais desafios do ator é justamente criar, junto ao público, a impressão de vida no boneco ou objeto. A forma animada é o foco das atenções pelo menos em parte do espetáculo teatral.

Dentre as transformações ocorridas no Teatro de Animação no século XX a ruptura do espaço atuação do bonequeiro foi, sem dúvida, uma das mais marcantes. Ao abandonar o uso das tapadeiras, ou outras formas de ocultação do ator animador em cena foram criadas novas exigências para o seu trabalho e para a encenação. Isso exigiu novos conhecimentos, outro tipo de preparação e de habilidades para atuar, diferente das que ele estava acostumado. Ao atuar escondido o bonequeiro não necessitava preocupar-se com movimentos, ações e até mesmo como portar-se, uma vez que estava oculto. Nesta nova proposta, o público que antes via somente os bonecos e objetos em movimento passa a ver, além disso, o complexo trabalho deste artista. Seus gestos, recursos técnicos e maneiras de animar o boneco são, muitas vezes, propositadamente mostrados acreditando que isso também compõe a cena. Ao estar em cena visto pelo público o ator animador se obrigou a redefinir a maneira de atuar, o seu próprio modo de se ver e estar em cena. Foi necessário repensar o seu figurino, modo de pegar e soltar os bonecos e objetos que anima, como portar-se mesmo enquanto não atua. Seu corpo em cena passou a exigir a consciência de que está sendo visto, observado e que sua presença no espaço da representação também é discurso, integra o espetáculo.

É verdade que muitos atores animadores passaram a trabalhar vestidos de preto, com algum adereço encobrindo o rosto, com o objetivo de diminuir o foco de atenção para si. Surgem as discussões sobre a neutralidade do ator animador em cena, buscando evidenciar a presença do boneco. Criam-se recursos e procedimentos para que o ator trabalhe com princípios de economia de meios, sobretudo a redução de expressões faciais, a contensão de movimentos, o uso de gestos precisos e limpos. É inegável que a sua presença visível no espaço modificou substancialmente o modo de criação de espetáculos e de atuação. Pierre Blaise, ao refletir sobre este tema afirma: nós passamos de um teatro de marionetes para um teatro de marionetistas (in Guidicelli; Carole e Plassard, Didier, 2015, p.10). Ou seja, Blaise evidencia que tão importante quanto o boneco/objeto é a presença do ator animador no espaço e os procedimentos que ele utiliza na animação. Este teatro já não é só de bonecos, a presença visível do ator animador, com sua atuação, com seus gestos, imagens, voz, movimentos, ações, é parte imprescindível desta arte hoje.

No entanto, a característica fundamental do teatro de animação ainda é a presença da forma animada. O que transforma o boneco em elemento teatral é a sua ação, ou a sua atuação diante do público. Animar é transformar o objeto inerte em personagem. O que torna peculiar o teatro de animação não é apenas a presença do boneco em cena, tampouco seu desenho, forma, peso, volume e o material de que é construído, embora esses elementos sejam determinantes na sua animação e para a encenação do espetáculo. É a animação que torna o boneco vivo e faz com que ele exista diante do espectador.

A qualidade da animação está relacionada com a simulação da vida. Por isso, o movimento do boneco não é aleatório, indica alguma intenção, cria a impressão de que ele pensa, que ele possui certo nível de consciência.

A animação que dá qualidade a essa arte não pode ser confundida com a realização de qualquer movimento em cena. Um arco realizando um movimento mecânico, contínuo, ininterrupto, ou mesmo passando na cena, não é o movimento imbuído da intenção que caracteriza a prática do Teatro de Animação. Da mesma maneira, a qualidade da animação não tem obrigatoriamente relação com quantidade e intensidade de movimentos. O movimento sutil, mínimo, bem como o ampliado, brusco, pode fazer parte da animação, desde que imbuído de intenção. A ausência de ação e de movimento também pode caracterizar, em certos momentos, o comportamento da personagem. E aí se apresenta outro desafio ao ator: demonstrar que o boneco respira porque isso dá a impressão de ele estar vivo. O ator animador define e ordena a sequência de gestos e ações que qualificam a presença do boneco, a personagem. O desafio é fazer com que a matéria, essa forma aparentemente morta, inerte, se expresse.

A complexidade do trabalho do ator animador consiste em produzir a impressão de vida num corpo que se encontra fora do seu próprio corpo. E para dar qualidade a essa atuação ele seleciona movimentos, gestos, ações, tendo em vista a conduta da personagem – boneco, forma, objeto, silhueta, em sua relação com o espetáculo. Ele elabora a partitura de gestos e ações da personagem boneco; escolhe o que o boneco faz; destaca atitudes específicas, que transparecem significados, a concepção de mundo, o modo de ser e agir do boneco. Por isso, a professora italiana, Brunella Eruli, 1943-2012, afirmava: dificilmente alguém pode ser um bom bonequeiro se não for bom ator. (Eruli, 1994, p.85).

Todas essas questões acima arroladas, que se inscrevem principalmente no âmbito mais técnico do trabalho do ator animador, são indispensáveis, mas não são suficientes para a realização plena de seu trabalho. O ator animador é um artista que se desafia a dialogar com a expressividade dos materiais e das formas; aguça sua sensibilidade para ouvir o que diz a matéria; escuta o boneco; espreita suas possibilidades expressivas; acede as suas exigências e aos seus limites técnicos. Outro aspecto fundamental do seu trabalho consiste em estabelecer e manter o pacto ficcional com o espectador, o jogo no qual as funções de cada um são exercidas. Para a diretora francesa Claire Heggen: nem o ator nem o espectador são ingênuos. Quando um boneco se anima, todos sabem que ele é manipulado, à vista do público, ou não. Creio que o próprio prazer do espectador vem da dupla visão, duplo conhecimento, do jogo de ida e volta entre o que é mostrado e o que é oculto. (Heggen, 2006, p.61).

Nesta perspectiva, o boneco é mais que uma forma a ser manipulada em cena, cabe ao ator animador provocar a imaginação do espectador, reavivar lembranças, transformar o boneco em metáfora, em símbolo, em imagens, em síntese de sonhos e utopia.

O trabalho do ator no Teatro de Animação certamente pode ser visto sob diversas perspectivas. Magda Modesto, 1926-2011, importante pesquisadora do Teatro de Animação no Brasil, gostava de ouvir atentamente as considerações sobre o tema e sabiamente sintetizava: na realidade, o que é o teatro de títeres? É a realização de duas pessoas: aquele que tapeia, o titeriteiro, e aquele que acredita, o espectador. Apenas isso (Modesto, 2011, p.238). A afirmação, aparentemente simples, aponta para o jogo revelar e esconder, aspecto do Teatro de Animação que se reveste de complexidade e ainda merece estudos e reflexões.

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Bibliografia

BORBA FILHO, Hermilo. Fisionomia e Espírito do Mamulengo. Rio de Janeiro: INACEN, 1987.

HEGGEN, Claire. Sujeito – objeto: entrevistas e negociações. In Móin-Móin – Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas, N.6. Jaraguá do Sul: SCAR/UDESC, 2009.

ERULI, Brunella. 1994. Le dernier pas dépend du premier. In PUCK. La Marionnette et les Autres Arts. No 7. Charleville-Mézières: Institut International de la Marionnette, 1994.

GUIDICELLI, Carole e PLASSARD, Didier. La marionette sur toutes les scènes. In Artpress 2. Paris, 2015.

JURKOWSKI, Henryk. Métamorphofeses – La Marionnette au XX Siécle. Montpellier: L’Entretemps et Institut International de la Marionnette, 2010.

KOUDELA, Ingrid. Brecht: um jogo de aprendizagem. São Paulo: Perspectiva, 1991.

MODESTO, Magda. Entrevista. In Móin-Móin – Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas, N.8. Jaraguá do Sul: SCAR/UDESC, 2011.

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 19º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2015)