Sete Dives mantém o tema da identidade abordado no conto


Crítica publicada no Jornal do Brasil
por Carlos Augusto Nazareth – Rio de Janeiro – 20.11.2004

 

 

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Quando tudo funciona bem

Conto do Leste europeu, Sete Dives chega ao palco com competência

Sete Dives é o novo espetáculo do Grupo de Teatro Comprimido, que promove uma ruptura de limites entre as diversas linguagens teatrais para contar esta história originária do Leste europeu, em cartaz no Teatro do Jockey. Fernan­do Sant’Anna é um bonequeiro que ampliou esta classificação limitadora. Ator, manipulador e diretor da montagem, ele é um criador que confecciona bonecos juntamente com Toninho Lobo. Em cena toca-se, canta-se, contam-se histórias, manipulam-se bonecos, faz-se teatro de sombras, enfim, faz-se teatro da melhor qualidade.

O excelente texto de Mário Piragibe é uma adaptação de A menina que era irmã de Sete Dives, conto da tradição sufi que possivelmente deu origem aos sete anões da história da Branca de Neve. Trata-se de uma recriação absoluta­mente fiel que mantém as questões relativas à existência do homem, presentes em todo conto de origem sufi, numa impecável transposição da linguagem narrativa para a teatral.

Os dives são seres mágicos e ferozes que detestam o ser humano. No entanto, um grupo de sete irmãos dives adota uma menina que é encontrada sozinha numa floresta. A criança é criada como se fosse um dive, mas, aos 17 anos, ela co­meça a perceber que não é igual aos irmãos. Ao conhecer um outro humano, por quem se apaixona, resolve fugir com ele para, o país dos homens.

O texto remete à construção da identidade, ao ri­to de passagem para a ida­de adulta, ao processo de individuação e a seu reconhecimento no outro. Trabalha com conceitos de normalidade – em seu mundo, os dives são os normais; os humanos, não. Enfim, trabalha com inteligência questões instigantes que sensibilizam a criança por meio dos mui­tos canais de comunicação abertos pelo espetáculo.

Fernando Sant’Anna e Mário Piragibe acreditam que esta história deve ser ouvida “com a escuta da al­ma, pois essa é a missão das histórias”, conforme diz Clarissa Pinkola Estés no livro “Mulheres que correm com os lobos”. Sem dúvida, esta é uma questão central na dramaturgia atual, pois as adaptações têm deixado de lado os principais questionamentos embutidos na história original para levar à cena apenas a trama. Sete Dives mantém o enredo, mas preserva as questões centrais discutidas pelo conto popular. Este é um dos grandes méritos do espetáculo.

Fernando Sant’Anna rompe, criativamente, com as regras de manipulação e revela a construção e a desconstrução da cena, o fazer teatral, provocando um distanciamento que permite que se explique que os dives comem humanos. As crianças “saboreiam” es­sas informações como em qualquer conto de fadas, sabendo que tudo aquilo é ficção, é teatro.

Numa tentativa de focar a atenção do público para a história dos Sete Dives, o início do espetáculo não funciona como pretendido, precisando talvez de alguns ajustes, pois a ideia em si é boa. No elenco, eficiente e homogêneo, destaca-se Márcio Nascimento, que faz às vezes do contador – e não narrador – com uma naturalidade e força que prendem a atenção do público.

Os figurinos de Kika de Medina conseguem mesclar a neutralidade necessária ao ator/ manipulador com referências ao universo oriental a que remete a história. A luz, assinada pelo próprio grupo, atende às necessidades específicas das técnicas utilizadas em cena. A música e os músicos amparam toda a encenação, reforçam as origens da história e, criativamente, participam de forma ativa da encenação.