Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Macksen Luiz – Rio de Janeiro – 09.03.1990
Mascarada molieriana
Teatro é aparência, simulacro da realidade. No palco, o patético, a tragédia e aventura humanas só adquirem o contorno de realidade porque se sabe que tudo não passa de representação de mentiras. A convenção, portanto, determina as regras do jogo do teatro. Em Senhor do Porqueiral, a comédia de Molière que o grupo Tapa apresenta no Teatro Nelson Rodrigues, a convenção teatral é levada aos limites da linguagem da caricatura e da carnavalização. A peça de Molière não se desvia daqueles ingredientes – análise mordaz da vaidade que sucumbe à esperteza dos malandros – que fizeram imperecível a sua dramaturgia. O diretor Eduardo Tolentino experimentou esgarçar a convenção até o ponto de sua quase destruição. Tolentino não se inibe em fazer a caricatura da própria caricatura. A trama expõe o ingênuo senhor do Porqueiral ao ridículo de seu desejo de viver pela aparência. Matuto enriquecido do interior vai à corte para se casar com uma jovem que lhe foi prometida pelo pai, um velho usurário. A jovem, no entanto, está apaixonada por um rapaz. A união dos dois jovens só será possível se, armando um grande teatro cheio de quiproquós e de pistas falsas, consigam afastar o tolo Porqueiral.
Na descida ao inferno do interiorano, várias instituições são duramente criticadas. A medicina e a justiça são demolidas. Mas Senhor do Porqueiral, em que pese a presença das melhores qualidades de Molière, não está no mesmo plano de seus melhores textos: Tartufo, O Avarento, O Doente Imaginário. A estrutura da peça alonga demais algumas situações e tem um final dramaticamente insatisfatório. Tolentino demonstra compreender essas limitações, e por isso ressalta o espírito da obra, tanto sob a perspectiva da trama, quanto da linguagem. O diretor aposta numa mascarada molierana. Tudo se amplia drasticamente para não deixar dúvidas que o exagero é intrínseco à patuscada. O teatro serve de inspiração para que se arme todas as falcatruas contra Porqueiral. A representação é levada, assim, ao seu paroxismo.
O espetáculo começa como um quadro setecentista francês. Sob as velas de candelabros e a suave canção de letra provocante, os atores simulam uma introdução que sugere tratamento europeu à peça. Com o desenrolar da ação, a cena se transforma em jogos dramáticos explícitos, nos quais o diretor circula pela extravagância da chanchada e pelo rigor da farsa. Nesse vale-tudo calculado, Tolentino dá um rendimento cênico a Senhor do Porqueiral que faz com que atinja uma boa comunicabilidade com a plateia. Mesmo quando a exploração dessa linha parece se esgotar pelo prolongamento das cenas (como a da consulta médica) ou por excessos mal aparados (a dificuldade em harmonizar a luz sensível de Wagner Freire, mas um tanto sombria, com a opção interpretativa do elenco). O elenco se entrega com bastante aplicação ao tom de jogo teatral do espetáculo. Guilherme Sant´Anna alcança bons momentos com o grotesco Porqueiral. Christina Couto demonstra uma habilidade corporal que transmuda a ingênua em mulher. Zé Carlos Machado é um Sbrigani entre o Sganarello e o malandro brasileiro. Ernani Moraes, com sua voz poderosa e presença cômica impositiva, faz com que a plateia o aplauda em cena. Denise Weinberg revela outros aspectos de sua personalidade densa de atriz: o temperamento cômico e malicioso. Jarbas Toledo, Brian Penido, Paulo Arapuan, Cássio Scapin, Walnice Vieira Bolla e o músico Gustavo Kurlat se integram ao espírito da montagem.
Senhor do Porqueiral é uma homenagem ao teatro através de autor para quem a reinvenção da realidade se filtra pelo humor. A carnavalização da cena final, de impacto infalível junto à plateia, mas que relativiza por demais uma comparação com a vida nacional, acaba, de qualquer forma, por fechar a opção de estilo de Tolentino. Senhor do Porqueiral cativa pelo seu saudável espírito iconoclasta.
Cotação: Duas estrelas