Guilherme Sant´Anna (à esquerda), ao lado de Christiane Couto e Cássio Scapin, integram o elenco de alto nível

Crítica publicada em O Globo
Por Lionel Fisher – Rio de Janeiro – 09.03.1990

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Molière ataca novamente

Escrita às pressas para atender a uma premente necessidade de diversão de Luís XIV (1638-1715), Monsieur de Porceaugnac foi representada pela primeira vez em Chambord, em setembro de 1669, apenas para o Rei e sua corte. Dois meses depois, estreava em Paris, no Teatro do Palais-Royal, encenada pelo Grupo do Rei. Agora, com um atraso de mais de três séculos e rebatizada de Senhor de Porqueiral, a peça chega ao Rio numa montagem do Grupo Tapa e fica em cartaz por apenas duas semanas no Teatro Nelson Rodrigues, retornando em seguida para São Paulo, onde dará prosseguimento a uma bem sucedida carreira de nove meses.

Embora inferior a algumas de suas peças mais famosas, como O avarentoDon Juan e Tartufo, entre outras, nem por isso Senhor de Porqueiral se revela desinteressante, na medida em que Molière, por um lado, não renuncia ao seu tema básico – o confronto entre aparência e essência -, assim como em momento algum deixa de exercitar seu humor ferino e sua crítica exacerbada ao saber e ao poder oficiais. Tampouco se abstém de ridicularizar, tanto os novos ricos que pretendem se tornar aristocratas, quanto a burguesia endinheirada, que procura ocultar sua índole cumulativa. Utilizando-se de uma trama simples – um burguês caipira tenta conquistar a nobreza através de um casamento vantajoso na corte –, Molière criou uma comédia truculenta que, se não chega a ser uma obra-prima, nem por isso deixa de encantar a plateia.

Seria injusto, entretanto, atribuir esse encanto apenas a Molière, pois são inúmeros os exemplos de bons textos que acabam desfigurados por encenações catastróficas. Não é o que ocorre com o Tapa: Eduardo Tolentino, diretor do espetáculo, realizou um trabalho primoroso, tanto no que diz respeito à dinâmica cênica – as marcações são precisas, criativas, o ritmo sempre eletrizante – quanto à sua atuação junto aos intérpretes, cuja eficiência é de tal ordem que chega a ser difícil imaginar outros capazes de substituí-los. Existem, inclusive, desempenhos que, certamente, o público carioca jamais esquecerá, como os de Zé Carlos Machado, no papel de Sbrigani – personagem que poderia facilmente cair na caricatura, se o ator não tivesse conseguido convertê-lo num verdadeiro símbolo de uma mentalidade tão em voga e cuja máxima é capitalizar em benefício próprio as desgraças alheias; Ernani Moraes, como o médico ensandecido, para quem, mais importante que curar um paciente, é respeitar as manuais de medicina, e, sobretudo, Guilherme Sant´Anna, no papel-título, que evidencia um preparo vocal e corporal notáveis. Com relação à equipe técnica, cabe um destaque especial para os figurinos de Lola Tolentino e para a direção musical de Gustavo Kurlat, cuja competência pode ser avaliada principalmente nos arranjos feitos para várias vozes.