(INFORMAÇÕES DO PROGRAMA)
(Capa)
Cia. Paidéia de Teatro
apresenta
SANTA MARIA DO EGITO
Concepção e Direção: Amauri Falseti
Texto: Márcia Rodrigues
Estreia dia 11 de Maio as 20h30
Local Espaço Cultural Rudolf Steiner
Rua da Fraternidade 156.
Reservas: Tel.: 5523 0537
(Verso da Capa – Foto do Elenco)
Paidéia Associação Cultural
Fone (11) 50423416
(Página 1)
Cia. Paidéia de Teatro
Santa Maria do Egito
Concepção e Direção: Amauri Falseti
Texto: Márcia Rodrigues
São Paulo
2001
(Página 2)
(Página 3)
Apresentação
Nada acontece por acaso.
Fui tomada por grande surpresa quando o diretor Amauri Falseti me apresentou a sua ideia de montar a história de Maria do Egito e me entregou o Oratório de Santa Maria Egipcíaca, de Cecília Meireles. Eu não conhecia a santa, mas tinha uma vaga lembrança de ter lido a Balada de Santa Maria Egipcíaca, de Manuel Bandeira. Em casa, mais tarde, descobri entre meus livros A Beata Maria do Egito, de Raquel de Queiroz. Li sobre a vida da santa em livros de história de santos e me apaixonei por ela. Dias depois, me veio o Amauri com a concepção da peça, ainda sem texto: me disse ele que haveria canto gregoriano e me pediu para incluir citações do Cântico de Salomão. O tema e a ideia desse diretor me envolveram por completo. Na sua concepção para o teatro, a santa se mostraria, simultaneamente, em três fases da vida: adolescência, juventude e velhice. Então, a cada uma das fases fiz com que assumissem, respectivamente, “Maria do Egito”, “Maria de Jerusalém” e “Maria do Deserto”. Quando as atrizes fizeram a leitura da primeira parte do texto fiquei muito emocionada ao ouvir as falas da Santa Maria do Egito nas vozes de Camila, Marília e Aglaia.
Toda a criação do texto – que de uma surpresa inicial transformou-se em grande descoberta – nos seus diferentes momentos, foi permeada pelo carinho e pelo cuidado do Amauri e da Aglaia que acreditaram na minha vontade de realizar o trabalho: pela grande amizade da Marilia que sempre leu meus textos e conhece bem as minhas, como ela mesma diz, “escrituras”: pela leitura concentrada da Camila, cuja voz inspirou a criação de muitas falas da Maria do Egito adolescente: e pela atenção primorosa da Dra. Gudrun que acompanhou gentilmente a leitura do texto e fez observações pertinentes e bastante esclarecedoras.
Eis aqui: Santa Maria do Egito, trajetória da vida de uma mulher.
Márcia Rodrigues – Outono, 2001
(Página 4)
(Página 5)
Para Cláudia de Carvalho Cavicchia
Santa Maria Egipcíaca despiu O manto, e entregou ao barqueiro. A santidade da sua nudez.
Manuel Bandeira
(Página 6 à Página 23 – Texto Completo da Peça)
Abertura: Canto Gregoriano
(I. Em Alexandria)
Jósimas: Era por volta do ano do Senhor de trezentos e noventa, sob o império de Teodósio, e eu, havendo atravessado o Jordão, buscava encontrar algum sacerdote naquele deserto. De repente vi passar uma criatura de cabelos longos, cujo corpo, queimado do sol, estava inteiramente nu. Tentou fugir quando me viu, porém eu a persegui até alcança-la. Ao me aproximar, tirei o meu manto e a cobri, então ela recitou:
Maria do Deserto: Minha tez está escura: foi o sol que queimos pelos anos todos que tenho vivido no deserto. As minhas roupas se desfizeram com o tempo. Agradeço-lhe o manto, pois ele agora cobre o que meus cabelos já não velam. Diga-me, por que, abade Jósimas, corre no meu encalço? Sou alguém que deve benzer e abençoar; abençoa-me, eu lhe peço.
Jósimas (aos monges): “Bendito seja Deus, redentor de nossas almas”! O meu nome ela sabia e também que sou abade! Eu te conjuro, em nome do senhor, conta a tua história.
Maria do Deserto: Deus sabe da minha trajetória, de minhas andanças pelo deserto, em penitência. Não desconfie, eu sei o que de mim pensa, ainda que no profundo do seu ser saiba diante de quem está.
Jósimas: Ela lia os meus pensamentos; Era uma mulher abençoada, era uma santa, diante dela me ajoelhei, mas ela me fez levantar e ouvir a sua história.
(Maria do Egito (adolescente); Maria do Deserto (Maria do Egito, anciã); Maria de Jerusalém (Maria do Egito, jovem) e o Monges, que citam trechos do “Cântico dos Cânticos”)
Maria do Deserto: Era tão menina para viver sozinha no porto de Alexandria. Que sonhos me rodeavam, que quereres tinha eu?
Monges: “Quem é essa que se eleva com a aurora,
bela como a lua, resplandecente como o sol,
temível como batalhões?
(…)
Como és bela, graciosa,
amada, cheia de encantos!”
Maria do Egito: Os meus pés já estão descalços, os meus cabelos soltos ao vento. Apenas esta túnica cobre meu corpo. Em mim uma chama se acende, preservando o sopro da minha vida… Esse é o meu sentimento do qual faço o dom do meu amor!
Maria do Deserto: Descobria-me através do meu sentimento, deixava-me levar pela vida e pela ideia que dela tinha.
Maria do Egito: O meu amor tem a delícia do vinho, é mais primoroso que o aroma suave dos perfumes, que a delicadeza das pétalas de todas as flores juntas! Ah! Como quero ofertar esse amor!
Maria do Deserto: Eu era Maria do Egito! Nos meus sonhos – os muitos que tinha – um desejo se compunha em vida, se sustentava e me satisfazia.
Maria do Egito: Minha boca avermelhada, desenhada em linhas finas, tem o gosto da água da fonte. Os meus cabelos são como as pontas dos dedos, tocando delicadamente a pele em movimentos suaves e ternos… sinto neles as gotas de orvalho da noite.
Maria do Deserto: Eu era, na juventude tenra, Maria, que habitava o porto de Alexandria.
Monges: “Como és bela, graciosa,
amada, cheia de encanto,
Teu porte se parece com o da palmeira,
de que teus seios são os cachos,”
Maria do Egito: “Meus seios são filhotes gêmeos de gazela, pastando entre lírios…”
Maria do Deserto: Eu recitava, recitava, sem pensar na minha ventura…
Maria de Jerusalém: Recito, recito, e em meus versos humanizo as palavras sacras! Compreendo, já não se abre em flor a poesia das minhas lembranças.
Maria do Egito: Não penso em ventura… O meu coração estremece, quero abrir-me a bem-amados e a eles dirigir o meu desejo, os beijarei a todos, sem desprezar ninguém. Deles não desviarei meu olhar, porque o meu olhar os fascinará; antes que sopre a brisa do dia, antes que fujam as sombras, no porto de Alexandria, terra de mercadores, eles conhecerão o meu corpo sobre o leito que criarei. “O estandarte erguido sobre mim é o amor!”
Monges: “Comecei, amigos, bebei;
inebriai-vos, diletos!”
Maria de Jerusalém: Aqui neste porto de Alexandria me espreitam os efeitos dos prazeres.
Jósimas: Pobre mulher! Dos sonhos encantados, das imagens abrasadas… Recitava os seus sonhos, aqueles que por seus sentimentos a cada dia se construíam.
Maria do Deserto: Eu me buscava a mim… dos meus desejos descortinava o meu dom. Sabia como se definia cada parte do meu corpo, me reconhecia na flor, na brisa do dia, mas desconhecia o fruto de meus gestos.
Maria do Egito: Eu sou a lótus, a flor no meio do nada. Meu colo e meus quadris têm a força da lua quando cheia; minha boca um precioso cálice onde jamais faltará o vinho, meu ventre é ramo de lírios. Darei de beber àquele que o desejar: o vinho e o suco da romã.
Maria do Deserto: A minha palavra se transformaria em gemido triste, sofrido. O meu prazer em sussurrada dor. Iria me desfazer dos encantos da beleza?
Jósimas: Como poderia tu saber, mulher, dos desenganos da vida humana? Os encantos da beleza muitas vezes engrandecem os da vaidade e confundem o ser.
Maria do Deserto: A minha palavra antecedia o meu gesto… Recitava as imagens que me vinham e me rebatiam.
Maria do Egito: A minha palavra é o melhor dos licores… que umedece lábios. Minha fala é primavera, desabrocha sabores, sacia afãs mil… sinto-a parte de tudo que o meu ser quer dar, em brasa ardente, e é elaborada com o mais perfumado dos óleos quando se quer prazerosamente untar um corpo. Tenho pressa de inclinar o meu desejo sobre um outro, em chão recamado de flores, em miríades de ervas… Esse é o meu chamado, que venham estrangeiros, peregrinos, marinheiros…
Maria de Jerusalém: Quem por aqui passa dirige-se à Terra Santa, a fim de adorar a Cruz e sentir no chão as pegadas do Crucificado… é para lá que eles vão.
Maria do Egito: Eu os esperarei…
Maria de Jerusalém: Espero!
Maria do Egito: Porque por mim hão de passar…
Maria de Jerusalém: Passam!
Maria do Egito: Que façam de mim sua morada!
Maria de Jerusalém: Fazem!
Maria do Egito: Quero mostrar-lhes a relva…
Maria de Jerusalém: Eu mostro!
Maria do Egito: Embevecê-los nos meus perfumes…
Maria de Jerusalém: Incendeio-os!
Maria do Egito: Incendiá-los com meu calor, e depois refresca-los nas seivas do meu suor.
Maria do Deserto: Eu os esperei e os envolvi no meu amor.
Monges: “As grandes águas não extinguirão o amor,
nem as torrentes poderão arrastá-lo.
Se alguém oferecesse todos os bens de sua casa
em troca do amor, só mereceria desprezo.”
(II. Ainda em Alexandria)
Jósimas: No porto, ao morrer o sol, ao nascer dos dias, por ali passavam centenas de viajantes, vindos das mais distantes terras. Em Alexandria paravam e lá encontravam Maria.
Maria do Egito: Vem peregrino, vem, vem meu bem-amado! Desçamos aos perfumados canteiros; as flores recamadas em meu leito de ontem que hoje já secara… eu o cobrirei de flores novas, límpidas, e não mais suaves que a minha pele. Sou a que desabrocha em flor a cada dia… Venha comigo, dá-me a tua mão, oferta-me o teu desejo.
Monges: “Entre, meu bem-amado, no meu jardim, e prove-lhes os frutos deliciosos! (…)
Celebraremos teu amor mais que o vinho:
Como é bom amar-te!”
Maria de Jerusalém: Eu, por mim mesma, vejo a efemeridade da flor. Veja que a rosa não dura mais que um dia, já no outro tem ela outra forma; a tessitura de suas pétalas perde a frescura, o vigor… Eu, por mim mesma, corro! Eu, por mim mesma, deixo Alexandria! Eu, por mim mesma, percebo e vejo que a minha vida se contrai.
Monges: “Tu me embriagas o coração
com um só dos teus olhares,
uma só pérola dos teus colares,
Como é belo o teu amor…”
Maria do Egito: Levem-me!
Maria de Jerusalém: Levem-me para Jerusalém. Os tributos para a travessia eu os pago com o meu corpo!
Maria do Egito: Meu peito, aberto em chamas, acolherá quem por ele procurar…
Maria do Deserto: Parti em direção a Jerusalém, junto dos peregrinos todos… Eu os acompanhei, eu os envolvi no meu amor.
Maria de Jerusalém: Sonho na madrugada fria e meu corpo se contrai, enxergo um girassol orvalhado e mais uma vez sorrio.
Monges: “… a tua cabeleira se assemelha à púrpura;
aos teus cachos um rei está cativo…
Como és bela, graciosa,
amada, cheia de encantos.”
(III. A Travessia)
Jósimas: Partiu a jovem mulher do porto de Alexandria. Seguiu viagem junto aos peregrinos. A todos eles ofertou seu peito para que pudessem recostar, seu colo para que deitassem a cabeça e pudessem descansar. Atendeu a sede do corpo e a sede da boca de todos eles. Chamavam-na deusa, a deusa do dom do amor. E ela, tão jovem, tão bela, se deixava levar naquela travessia, e não imaginava o que encontraria em Jerusalém. Assim me contou a mulher do deserto.
Monges: “Eis que inverno passou: cessaram.
desapareceram as chuvas: as flores se mostraram
sobre a terra; o tempo dos gorjetos chegou. Já se
ouve o arrulho da rolinha; e a figueira já forma
seus primeiros frutos; e a vinha em flor exala o
seu perfume. Levanta-te, amada minha,
formosa minha, e vem!”
Maria de Jerusalém: Na proa me deito, tenho o céu como teto, o mar como chão. O barco abre as vagas, sulca as águas e eu, inebriante, vou! Sei que sigo um caminho, sei para onde quero ir… Trago o corpo todo untado com os óleos que carrego, meus cabelos enfeitados com flores de pétalas secas. Percorro com os olhos todos esses homens acostumados com o mar.
Monges: “Eu durmo, mas o meu coração está vigilante.
Meu coração vela…”
Maria do Deserto: O mar era o meu leito e o movimento das águas ninava minha aurora… Ao passar o tempo, descobria que o calor do meu corpo se alterava, sentia que apenas o sol me aquecia…
Maria de Jerusalém: O meu odor se modifica, já não recorro aos meus perfumes e bálsamos. Sei que busco o sumo da fruta doce, suculenta…
Toco as pontas dos meus cabelos para eles me acariciarem as mãos… Vejo todos esses homens, conheço deles o olhar… eu oferto-lhes o dom que o meu corpo dá, mas, quando miro o céu, quando escuto o mar, a minha vista se turva e ouço o som das ondas no barco como um trovão, e o meu coração estremece.
Monges: “Se não o sabes, ó tu, a mais bela das mulheres
segue as pegadas dos rebanhos.”
(IV. Em Jerusalém)
Jósimas: Chegaram a Jerusalém, terra sagrada, cidade dos profetas. Os peregrinos avistaram o lugar que buscavam, com o qual sonhavam desde há muito, desde a sua partida. Esqueceram-se da viagem, da distância que percorreram, das muitas terras pelas quais passaram: queriam sentir o Cristo, e, compenetrados, para a Santa Cruz caminhavam. Para trás deixavam suas lembranças, seu passado. No barco ainda estava Maria.
Maria de Jerusalém: Por todo o trajeto da viagem, por todo o tempo, todo o momento, aos peregrinos-marinheiros entreguei-me… Agora já não sinto meu corpo tão jovem, sedoso, como quando vivia em Alexandria. Os ares são outros, do outro viver distintos. Está mudando o meu desejo… o meu destino… eu sei, mas não consigo compreender.
Maria do Deserto: Manhã do dia seguinte, despertava-me no meu dom de existir.
Maria do Egito: Revirar-me-ei em contornos oscilantes entre dentro e fora de mim. Serão movimentos redondos, abaulados, de dança fêmea. Lá no fundo estará cheio de fragrância de rosa amarela me embriagando os sentidos, fazendo-me perder em sensações.
Monges: “Amparai-me com bolos de uva
reanimai-me com maçãs,
pois estou dente de amor!”
Maria de Jerusalém: Há um desejo, posso vê-lo, porém quando tento alcança-lo, perco-o na fugacidade do instante. Passa como um rio me cortando.
Maria do Egito: Quero espalhar por todos os cantos o dom do meu amor, dar a conhecer o frescor do rio que tem o meu corpo.
Maria do Deserto: Meu corpo soluçava como que querendo reprimir aquilo que ia se transformar em dor.
(Canto gregoriano, representando os hinos cantados pela romaria)
Jósimas: Ao pisarem na terra santa, alguma mudança àqueles homens se deu. Calmos caminhavam, se juntavam à romaria, que entoava um canto sacro. Maria se apercebia daquela gente em cantoria, mas sentia suas pernas inertes, elas não a obedeciam, ela que tivera tanto domínio sobre seu corpo.
Maria de Jerusalém: Ah! Cidade sagrada, por mim ainda desconhecida, por que minhas pernas não me obedecem? Eu sou egípcia, aquela que em perfumes e bálsamos até agora viveu.
Maria de Jerusalém: De sonhos me alimento…
Maria do Deserto: Sanava desejos.
Maria de Jerusalém: Ofereço o mais delicioso dos vinhos.
Maria do Deserto: A mais doce das frutas.
Maria de Jerusalém: Banho-me em óleos perfumados…
Maria do Deserto: Embriagava-me na névoa do incenso.
Maria de Jerusalém: No meu colo abrigo os homens…
Maria do Deserto: Aninhava-os de mim.
Maria de Jerusalém: Sinto a vida pulsando e é esse o meu dom.
Monges: “Levanta-te, amada minha, formosa minha, e vem!”
Jósimas: E não conseguia acompanhar os peregrinos, por ela eles passavam, com o olhar fixo no caminho a seguir, ainda impregnados com o perfume de óleos de Maria.
Monges: “Ó tu que habitas nos jardins. Os companheiros estão a escutar, faze-me ouvir a tua voz.”
Maria de Jerusalém: Meu Deus, que estais representado na Cruz, nesta terra chamada santa. Meu corpo já não domino, desconheço-o. Espanta-me esse povo, em romaria, a cantar todos estes hinos. Queria eu participar e ficar mais próxima da Cruz Sagrada, todavia, sinto-me tomada pela dor que me fez pensar. Dói-me o peito, antes tão arfante, agora parado demais. Que significa isso tudo? Para dentro de mim mesma pareço querer ir. O meu desejo é expressar, verbalmente, esse meu pensamento, mas me vem certo medo de não ser capaz de dizer o que está dentro, bem dentro de mim…
Maria do Egito: Entoarei meu canto ao som mais belo de todas as liras e oboés, a minha canção será como o mel que rega o paladar.
Monges: “… faze-me ouvir a tua voz.”
Maria de Jerusalém: Estou inerte, não ando, tampouco posso cantar. Estes hinos me entorpecem, me convocam… Esta gente em movimento me atrai, porém não consigo acompanha-los.
Jósimas: Sobre o seu colo, Maria trazia um véu, colocou-o cobrindo a sua cabeça e, em gesto de compenetração, contemplou a cruz, pedindo que ela a iluminasse.
Monges: “Faze-me ouvir a tua voz…”
Maria de Jerusalém: Senhor, meu Deus, permita que eu parta para o deserto onde não há nada com que possa me alimentar, nada que possa matar a minha sede… Quero viver penitente, caminhar em terra árida, em solo estéril. A rosa em botão, não a verei mais. Isso, Senhor, me dá medo, mas preciso e devo me habituar. Um dia não serei mais flor, me avisa a consciência. O meu corpo lamenta …meu coração espera.
Monges: “És um jardim fechado, uma fonte selada. (…)
Tua vegetação forma um parque
de romãs e valiosas essências:
nardo e açafrão,
canela e cinamomo,
com todas as árvores de incenso;
mirra e aloés
e toda a espécie de bálsamo.
Fonte dos jardins,
poço de água viva!”
Maria do Egito: Correrei por todos os prados, montes, todo tipo de vegetação, espalharei a minha alegria, derramarei sobre aquele que me procurar todo o rio que há em mim.
Maria de Jerusalém: Sinto firmes os meus pés, meu corpo saciado… O rio que me cortava agora me preenche e com o tempo, aos poucos, o sol irá secá-lo. Minhas pernas me levam ao deserto.
Jósimas: Maria partiu novamente, desta vez em penitência e como todas as outras partidas, esta não era diferente: foi ela quem escolheu! Sem dar as costas à Cruz, se afastou e seguiu em direção ao Deserto. Suas pernas adquiriram força extrema e seu peito todo o ar inspirou. Era um novo sopro que dava à sua vida.
Monges: “Ao vê-la as donzelas a felicitam,
e as rainhas e as concubinas fazem o seu elogio.”
Maria de Jerusalém: O sol é meu calor.
Maria do Deserto: A minha luz.
Maria de Jersualém: A areia, o meu chão.
Maria do Deserto: O meu leito.
Maria de Jerusalém: O vento, que afla forte na madrugada, meu pensamento. Despeço-me de uma mulher que não fica em Alexandria ou em Jerusalém.
Maria do Deserto: “Quem é essa que sobe do deserto,
como colunas de fumaça,
cercada do perfume da mirra e do incenso
e de todos os perfumes importados?”
Jósimas: Lembro-me agora que nas minhas andanças pelo deserto, ninguém encontrei, mas naquele dia, pressentia algo incomum: era o meu encontro com essa mulher. E depois de me contar a sua história me revelou:
Maria do Deserto: Nestas areias infinitas, em que é tão forte o frio da noite, tão seco o ar do dia, caminho sem cessar. Os meus passos engendram meu pensamento. Reflito a minha vida, as minhas buscas e todo o meu dom. Já não mato a sede no vinho, tampouco na água da fonte… nem tenho o que dar de beber. Sou apenas essa mulher que vês nesse deserto.
Maria de Jerusalém: Sou a lótus, a flor no meio do nada.
Maria do Deserto: Eu que tive todos os prazeres, todos os encantos, revivo dos meus pensamentos…
Maria de Jerusalém: …e enxergo a luz que me amanhece todos os dias.
Maria do Deserto: Celebrava amor…
Maria de Jerusalém: …em chão recamando de flores, em miríades de ervas…
Monges e Maria do Egito: “De manhã iremos aos pomares a ver se a vinha brota,
se os seus rebentos se abrem,
e as romãzeiras florescem.
Lá te farei o dom do meu amor.”
Maria do Deserto: Celebrava o amor como o mais puro e singelo dom, fosse no Egito ou no porto de Alexandria. E aqui nesta terra árida reconstituo com as minhas lembranças o que é essência de mim. E é isso que me alimenta e até agora me mantém viva.
Monges e Maria do Egito: “Colho minha mirra e meu bálsamo, eu como meu mel e meu favo bebo o meu vinho e o meu leite.”
Maria do Deserto: Meu corpo já não tem nenhuma força, eu sinto. Não têm os meus cabelos mais que a simples tarefa de me cobrir.
Maria do Egito: Os meu cabelos me acariciam e eles cobrirão quem meu corpo abraçar…
Maria de Jerusalém: …sinto neles as gotas de orvalho da noite!
Maria do Deserto: As linhas que desenham a minha boca são ainda finas, porém turvas, sem cor… Meu peito não abriga seios filhos de gazela e recitar já não sei. A palavra é seca, mas em mim guardou o conteúda da minha poesia…
Maria de Jerusalém: Sinto a minha palavra parte de tudo que o meu ser dá…
Monges e Maria do Egito: “À sua sombra, como desejei, estou sentada
E seu fruto é doce à minha boca.”
Maria do Deserto: Não há pressa. Tenho ainda meu corpo cansado. Quando me vem, o sonho é carregado de pó. E a música que ouço é o silvo do vento. Não lamento. A minha vida se fez por cada dia que vivi, cada passo que dei, cada flor em que me abri. A minha contemplação do céu é a mesma contemplação do mar, do porto, do deserto.
Maria de Jerusalém: “O estandarte erguido sobre mim é o amor!”
Maria do Egito: A minha palavra é licor, minha fala, primavera…
Maria do Deserto: Conheço a força da minha palavra, a clareza dos meus gestos… Meditei nestas areias, guiada por esta luz diurna. À noite, fosse inverno ou primavera, deitada, descansava o meu corpo; não dormia, refletia sobre os meus dias. Ainda não exprimo nesta hora o meu pensamento…
Maria do Egito: …o que está dentro, bem dentro de mim…
Maria do Deserto: Mas ainda tenho um derradeiro desejo que na hora e na vez pedirei.
Jósimas: Naquele primeiro momento, não me revelou a mulher o seu desejo. Andou calmamente, afastando-se de mim. Acompanhei-a com o olhar e ela foi até o rio do qual estávamos próximos. Entrou no Jordão e sobre as águas caminhou. Foi grande o meu espanto, pensei ter sido aquilo uma visão, mas não… No outro dia, a santa voltaria.
Monges e Maria do Egito: “As grandes águas não extinguirão o amor,
nem as torrentes poderão arrastá-lo.”
Maria do Deserto: Neste rio me batizei e, desde então, sobre ele posso caminhar, posso também pressentir quem perto de mim chega, o que sente e o que pensa… contudo, durante esses quarente e poucos anos, pessoa nenhuma encontrei. Falo contigo mesma e encontro-me dentro de mim.
Monges: “Sua palavra é cheia de suavidade,
e toda a sua pessoa um só encanto.”
Maria do Egito: Ouvirei o som do mar, do vento, partirei quando ditar o meu querer, porque desejo que me levem os meus próprios passos.
Maria de Jerusalém: O meu coração se contrai e não me abandono a mim.
Maria do Egito: A minha vida é a sensação que prezo, os sentimentos que irei ofertar. A minha vida é o sol que se comunica com o dia. Não tenho medo da noite, buscarei o que ele haverá de me dar.
Maria de Jerusalém: Agora é o meu coração que sente o meu corpo a se envergar, tenho lembrança da água da fonte, da água do mar, e pressinto na boca uma água escassa, de rio distante, matando a minha sete que é pouca.
Maria do Deserto: Neste chão que me queima, nesta terra deserta, meu corpo descansarei. A minha vida, já a cumpri, o meu ser, já o formei: ele é a essência de cada um dos meus dias, no Egito, em Alexandria, em Jerusalém e aqui neste Deserto. O meu coração estremece, preciso me despedir.
Monges e Maria do Egito:
“Até que refresque o dia
e fujam as sombras;
estarei sobre a montanha da mirra
e a colina do incenso.
(somente os monges)
Toda bela és, ó minha bem-amada,
e não há em ti mancha nenhuma.”
Jósimas: Com a feição severa, mas serena, pediu-me a santa mulher:
Maria do Deserto: Busque pelo leão, ele é o único ser que tenho por aqui encontrado durante a noite e o dia. Ele o ajudará a realizar o meu desejo.
Jósimas: A santa caminhou em direção ao Jordão, molhou os pés, a cintura, o peito – pousou no rio o coração cansado, suado e se ajoelhou, deu graças por um momento; levantou-se e partiu, para no terceiro dia retornar.
Maria do Deserto: Fui Maria do Egito, de Alexandria, de Alexandria, de Jerusalém e hoje vivo nessa terra erma, onde o sol, a cada dia, tenta queimar as minhas lembranças. Eu sempre tive o meu corpo em brasa, mas também um rio em meu interior. Revivo, nesta hora, cada momento…
Maria de Jerusalém: Sacio com meu próprio rio a sede de muitos.
Maria do Deserto: Um dia, ao me deparar comigo mesma, esse rio quase secou. Ouvi cantos, clamores, juras; meus olhos ergui aos céus e minhas pernas caminharam para este tapete de areia. A minha garganta secou; fiquei calada em penitência, vivi e me revi.
Maria do Egito: Eu criarei os meus sonhos e os levarei junto de mim…
Maria de Jerusalém: Reconheço os meus sonhos e carrego o dom que me abriga, me cria e me constitui.
Maria do Deserto: Vou. Sei que a serenidade desenha o meu semblante; sei que a plenitude desta vida preenche o meu ser; que as minhas dores me marcam como o sol desse deserto: sei que um novo rio irriga minhas veias com a água pura.
Maria do Egito: Meu peito ficará tranquilo porque respiro pelo ventre; é meu ventre que respira.
Maria do Deserto: Despeço-me, abade Jósimas, que o leão abra a minha cova, este é o meu desejo e amanhã, ao cair da tarde, nela me deitarei, cerrarei meus olhos e partirei, então.
Jósimas: Saiu caminhando a santa do deserto, como o fez nas outras vezes, no outro dia, retornou.
Monges: “As flores se mostram sobre a terra,
O tempo dos gorjeios chegou.
(…) amada minha, formosa minha, vem!”
Maria do Deserto: Veio-me nesta madrugada fria, um lindo sonho:
Maria de Jerusalém: Á minha frente um campo de lírios brancos, perfumados.
Maria do Deserto: Quando passei por esse jardim, as flores deitaram-se na terra.
Maria de Jerusalém: Formando para mim um agradável leito.
Maria do Egito: Eu o cobrirei de flores novas, límpidas, e não mais suaves que a minha pele. Venha comigo, dá-me a tua mão.
Moges: “Desci ao jardim das nogueiras
para contemplar as flores do vale,
ver se brotava a parreira
e as romãzeiras floresciam.”
Jósimas: Como desejou a santa, o leão abriu para ela uma cova do tamanho exato de seu corpo. O animal ali ficou parado, aguardando-a e, quando pressentiu que a santa se aproximava, erguei a cabeça e contemplou. Assim que o sol começou a morrer, a santa mulher entoou:
Maria do Deserto: Neste meu sonho sorri, como estou sorrindo agora… O céu se abre para a luz que vai me levar, sinto meu corpo leve; minhas marcas…
Maria do Egito: Todo o frescor da minha aurora…
Maria de Jerusalém: Toda a minha razão.
Maria do Egito: O vento as carrega e as espalha na areia deste deserto.
Monges: “Coloca-me como um selo em teu coração, Como um selo sobre o teu braço pois o amor é forte como a morte.”
(Página 24 – Foto de Cena)
(Verso da Última Capa – Fotos de Cena)
Santa Maria do Egito
Aglaia Pusch: Maria do Deserto
Camila Amorim: Maria do Egito
Marilia Felicissimo: Maria de Jerusalém
Carlos Jerônimo: Jósimas
Monges: Rogério Modesto, Cristiano Chiessi, Wesley Campos, Edu Nascimento, Marcelo Filipini, Walter Santana, Jiordano Pasqualini e Rogério Sampaio
Ficha Técnica da 1ª Montagem
Concepção e Direção: Amauri Falseti
Cenário e Figurino: Aby Cohen, Lee Dawkins
Música: Paulo Franco
Trilha Sonora: Luiz Corazza
Iluminação: Lee Dawkins
Operadores som/luz: Alan Caetano, Juninho Martins
Fotos: PC Falseti
Impressão: Ind. Gráfica Ideal de Bariri
Tiragem: 3.000 exemplares
(Última Capa)
Todos nós somos penitentes do deserto, tal qual Maria do Egito, que na impotência perante o divino escolhe dar os passos para a purificação. Assim as três grandes fases da vida estão aqui representadas. A juventude, a meia-idade e a espiritualização depois dos quarenta anos. São dois limiares que atravessamos: na juventude, para dentro da vida; na maturidade, a busca da ressurreição.
Dra. Gudrun Burkhard
A Paidéia Associação Cultural, com esta publicação, busca cumprir sua missão de desenvolver um trabalho cultural, visando atingir as mais diversas áreas das linguagens artísticas e ampliar o número de pessoas interessadas por uma criação desta natureza.
Com o seu texto, Márcia Rodrigues já contribui com esta montagem de nossa Companhia de Teatro e a nossa Associação, com este livro, apresenta uma nova e talentosa escritora, acreditando que a publicação estimula a autora e outros a continuar na lida da escrita, tanto para o Teatro como para a Literatura.