Crítica publicada em O Globo
Por Clovis Levi – Rio de Janeiro – 18.09.1980

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O rei é bom, belo e cheira bem: viva o rei

A dificuldade de serem encontrados bons textos continua sendo o principal entrave ao desenvolvimento do nosso teatro infantil. Isso fica mais uma vez evidente quando se assiste a Rosalice, Duquesa de Coisa Nenhuma, em cartaz na Aliança Francesa do Méier. O texto de Márcio Luiz procura misturar – conscientemente ou não – os três marinheiros de Pluft, de Maria Clara Machado (os três espinhos) com a trajetória de Alice, de Lewis Carrol, vivendo sua aventura maluca depois que espeta seu dedo num espinho e cai no poço. A partir daí, as semelhanças com Alice começam a se multiplicar sem que o autor, entretanto, tenha um domínio de non-sense e um domínio do fantástico como tinha Lewis Carrol. Plágio ou não, o que importa é que Rosalice, Duquesa de Coisa Nenhuma é uma cópia mal feita. Desde o nome da personagem principal – Rosalice – que já traz Alice, até o encontro final com a Rainha (que não é de Copas, mas é de Rosas) tudo caminha sem graça, sem charme, com um texto mostrando um único objetivo: ser o veículo mais óbvio para o desenvolvimento da imensa trama. Bastante longa, Rosalice, Duquesa de Coisa Nenhuma fica ainda mais equivocada quando chega ao seu final. Além de dedicar às crianças “o momento pedagógico”, com ensinamentos de como se deve viver, há a incrível cena com a eleição da Rainha. Só um autor muito desinformado do que se passa a sua volta, em todo o mundo, poderia escrever uma cena daquelas. O autor coloca em cena um personagem que dia o seguinte da “Rosa”: “Rosa é uma governante ótima, que usa bem o dinheiro do povo e aceita críticas”. Até aí, leitor, tudo bem. Mas veja como o pensamento se completa: “Por isso ela é reeleita sempre”. E isso é dito quando um outro personagem – “Margarete-Margarida” – coloca o seu descontentamento por vir sendo constantemente marginalizada por todos que só pensam na Rosa quando falam na “Rainha das Flores”. E o autor tinha aí um bom veículo para debater a dificuldade das minorias de ter acesso ao poder (dentro de uma linguagem infantil, é claro); poderia discutir que só se vota em quem se conhece e só se conhece quem tem a propaganda nas mãos. Mas, quando o autor pega esse personagem que também quer ter um lugar ao sol (“Margarete”) e o transforma suas aspirações legítimas em aspirações ilegítimas, em mero sentimento de inveja e de briga, aí Márcio Luiz mantém-se absolutamente conservador: o poder deve ficar com a mais bela que, por uma estranha coincidência, também é a mais simpática, é a que tem melhor perfume. E quem está fora do poder é porque não merece mesmo! Voltamos à longínqua Grécia, onde, dentro de outro contexto político-social, o herói era belo, forte, corajoso, bom, inteligente. Enfim: detinha todas as qualidades e por isso estava no poder. Mas na Grécia, pelo menos, o destino ainda prejudicava a vida dos “bons”. Na Alice, de Márcio Luiz, o mundo é absolutamente imutável, tudo deve continuar como está e devemos continuar sempre dando muitas batatas ao vencedor. Que será sempre o mesmo.

No programa consta que Rosalice é um musical infantil, mas o que há de música e de dança é tão pobre que é melhor até esquecer este detalhe. A direção de Fernando Fernandes é frouxa, apesar de começar dando um bom pique para o espetáculo. Esse interesse vai se esvaziando progressivamente e o que nos mantém ligados é apenas saber como, afinal de contas, vai acabar a história – o que é muito pouco. O grande trunfo da direção foi o de fazer o espetáculo ao ar livre porque, num teatro fechado, essa montagem seria bem menos suportável. De parabéns o ator que faz o “papa-bicho” e o “Cravo Maluco”: apesar de se repetir um pouco é ele o responsável pela vida em cena, pelo humor, pela energia. O resto do elenco funciona quase na apatia.