Conclusão, ou Uma Tentativa sobre o Abstrato

La Comédie, gravura de Lafant de Metz, e publicado por Goupil0, em 1862 (Instituto de Teatro dos Países Baixos)

Para fechar essa série de textos, decidi fazer algo que buscasse escapar o mais possível da rigidez e hortodoxia dos trabalhos acadêmicos, o que pode ser percebido por algumas particularidades que ora tenho a pachorra de listar:

1. Não serão encontradas notas ao longo do texto; concedo-me a ousadia de lançar de forma irresponsável informações e referências, conferindo ao leitor certa saudável dúvida a respeito das minhas fontes;

2. Tenciono – ao menos por enquanto – escrever a menor de todas as partes, não apenas pelo teor conclusivo do texto, mas também pela minha firme determinação de desenvolver uma escrita menos árida.

Bem, portanto vamos adiante, mesmo sob o risco de suscitar reservas por parte dos mais afeitos às metodologias de pesquisa. Ao longo de todos esses meses o meu esforço se concentrava em comparar, por vezes frontalmente, recursos de linguagem cênica existentes nos trabalhos de encenadores ditos pós-modernos (tendo no Gerald Thomas nosso principal ponto de análise), e o trabalho de Ilo Krugli, sobretudo no que diz respeito ao uso do que convencionamos chamar de teatro de formas animadas. Descobrimos que (ou, recolocando, eu tentei convencê-los de que) ambos os teatros estudados, por mais que sejam diferentes em suas intenções, valem-se de recursos estruturais comuns, construindo, por fim, cenas muito semelhantes entre si. Como resumo, transcrevo a enumeração dos recursos comuns levantados ao longo da pesquisa, da forma exata como este se encontra em minha dissertação. E lá vou eu descumprir as promessas feitas no início da matéria:

“Na verdade, esta monografia termina por sugerir que as experiências contemporâneas em teatro identificadas como pós-modernas trabalham questões presentes no âmbito do teatro de animação, e que o trabalho de Krugli, mesmo estando baseado em buscas que de forma alguma se afinam com o pós-moderno, vai apresentar semelhanças com o teatro de Robert Wilson e Gerald Thomas no que se refere a procedimentos criativos e buscas de linguagem, não apenas pelo fato de Ilo fazer uso da forma animada como um recurso a mais em seus espetáculos, mas sobretudo pelo fato de seu teatro possuir identidade profunda com o teatro de animação. Identidade essa que pode ser observada a princípio pela sua forma de se aproximar do texto escrito, e a importância que este tem dentro do resultado final da peça. Foi percebido que as peças de Krugli são construídas, ao menos nos casos dos espetáculos citados pelo trabalho, sobre experimentos feitos com o uso de determinados materiais e com a exploração das possibilidades expressivas do movimento das mãos. O que se constrói dessa forma é um texto de encenação cujo ponto de partida não é mais o registro escrito, e sim o que se inscreve – ou escreve – no espaço

Peter Brook, Paris. A Conferência dos Pássaros, 1979. Pulchinella; desenhos: Lele Luzzati. Fonte:Revista Puck nº. 5, p.28

Pode-se dessa maneira dizer que ambos trabalham em seus espetáculos o conceito exposto por Roman Paska e Henryk Jurkowski de escritura feita no espaço, onde o gesto funciona como elemento detonador da dramaturgia. Pode-se também apontar como característica de radical modernidade no trabalho de Ilo Krugli uma tendência à narrativização do discurso da peça, num processo de quebra da ilusão teatral que finda por revelar a artificialidade da obra, pondo à mostra pelo menos dois planos enunciativos: o da personagem inserida em uma trama, e o do ator encarregado de transmitir esse discurso. Esse recurso de evidenciar o contexto de enunciação faz chegar ao público em parte o processo criativo do grupo no que se refere ao uso dos materiais como motifs dramatúrgicos, uma vez que se ficcionaliza, se encena o processo de construção das personagens (no sentido literal, no ato de se pintar murais, de construir figuras, de vestir figurinos).

Outro momento em que o caráter bonequeiro de Krugli faz seu teatro se aproximar dos experimentos pós-modernos está na interferência do objeto sobre o corpo do ator, terminando por criar um novo corpo diferente do humano que personifica os caracteres da peça. Esse movimento de refuncionalização do corpo em cena está ligado diretamente à função do ator-animador, que divide com o boneco a carga da personagem, ainda que em um teatro de bonecos mais tradicional a ocultação do corpo do animador venha a favorecer a afirmação do boneco-objeto como forma paradigmática da personagem. No teatro de Ilo o ator-manipulador não apenas está aparente como também divide com o boneco a forma da personagem de diversas formas: por meio de interferência com expressão facial, pelo fato de deixar aparente o foco de onde sai a voz atribuída ao personagem-objeto (e mesmo no teatro de bonecos mais tradicional a voz da personagem não emana da figura que a personifica), pelo fato de o objeto constituir-se por vezes em uma forma incompleta (bastão, lenço) que necessita do ator para dar-lhe acabamento formal, e mesmo por meio de interferências de trilha sonora e luz. Com isso se constrói um personagem facetado, permitindo uma ampliação nas possibilidades de sua compreensão, apesar de esse personagem se encontrar “espalhado” ao longo da cena.

Essa forma de “espalhar” o personagem pela cena indica uma outra prática comum a Ilo: a fragmentação como definidora de uma linguagem. Nesse caso, pode-se perceber nas peças de Ilo a construção de uma cena fragmentada Krugli, o que pode ser percebido não apenas pelo seu caráter de rusticidade, (elementos com aparência propositadamente gasta, material usado geralmente com finalidades diversas à sua original), mas também pela forma fragmentada como situação e personagem são apresentadas (personagens espalhados e situação que mescla constantemente elementos de narração direta à representação, com muitos comentários feitos sob a forma de música). O tipo de leitura que esses elementos evocam podem ser entendidos à luz da apropriação que Helga Finter faz da terminologia ótica para indicar a relação que o público estabelece com determinado tipo de espetáculo teatral – no caso do artigo de Helga Finter, dos espetáculos dos diretores americanos Robert Wilson e Richard Foreman. O emprego do fragmentado, do desconstruído, do inacabado acaba, segundo Finter, a impelir o espectador a produzir sua imagem particular, resultado do atrito entre o espetáculo e a individualidade e capacidade de percepção do espectador, criando assim uma construção definitiva e imaginária por meio de um processo de dióptrica.

Pulchinella; desenhos: Lele Luzzati. Fonte: Revista Puck nº 10, p.39

Bonecos construídos por Mestre Saúba e animados por Waldek Garanhuns. São Paulo. Fonte: Programa do Festival Internacional de Teatro de Animação, p.31, 1996.

Tanto no que toca a utilização do texto, a colocação do corpo em cena e o recurso da fragmentação, o que se percebe é que a identidade encontrada no teatro de Ilo Krugli com as experiências verificadas no teatro praticado contemporaneamente, se dão na razão direta da utilização das linguagens de animação em seu teatro. As semelhanças encontradas em uma prática teatral como a de Krugli com buscas artísticas que de forma alguma se afinam com as do diretor do Ventoforte parecem mesmo querer afirmar que na verdade o que ocorre é uma relação cada vez mais intensa entre os teatros de investigação artística e a animação de formas. O que parece se afirmar a partir desse trabalho é o quanto o boneco permanece símbolo de um novo teatro que se busca, calcado em pressupostos de refuncionalização dos seus elementos constitutivos e ampliação de suas possibilidades expressivas.”

Passo então a usar uma forma menos consequente de exposição, e não pretendo me justificar mais por tal escolha.

Gostaria de pensar um pouquinho a respeito do teatro para crianças feito atualmente no Brasil. Reconhecemos que as formas animadas se encontram mais evidentemente presentes nessa modalidade de espetáculo teatral, e para tanto pode-se cogitar à vontade: o Ilo mesmo cita a identificação que a criança tem no boneco; pode-se falar do elemento fantasioso existente bem mais no teatro para criança do que no teatro para adultos, permitindo o uso do recurso da animação; pode-se mencionar o impulso criativo da criança expresso tanto nos jogos miméticos, como na reprodução da realidade por meio de desenhos e objetos, fazendo do boneco um companheiro constante em suas “reinações”; o fato de elementos semelhantes serem usados durante o processo de aprendizagem dos pequenos, e uma infinidade de outros mais. Lembro-me agora, inclusive de o quanto o teatro de bonecos brasileiro foi influenciado pelos formatos populares de brincadeira europeia com luvas, que sempre agradaram bastante aos pequenos, sobretudo por sua temático específica, como seja: violência, corrupção, sexo… opa!

Evocando-se o teatro como uma experiência sobretudo sensorial, uma arte que apesar de sua profunda humanidade contém uma carga sígnica da qual não se consegue, mesmo que se queira muito, escapar; pensando-se no quanto o teatro de bonecos é pródigo em sínteses, em formalizações de sutilezas; e do quanto esses processos se dão no ato da representação, pela simples disposição dos elementos e movimentação das personagens, é possível imaginar que a identificação de determinado público com certa forma de espetáculo se dê em um âmbito anterior – ou posterior, depende do ponto-de-vista – às intenções ou ideologias que norteiam esta ou aquela práticas teatrais.

Robert Wilson, The Civil Wars, 1983. Pulchinella. Desenhos: Lele Luzzati. Fonte: Revista Puck, nº 4, p.23

Encontramos no teatro de bonecos, não apenas uma arte de forte apelo visual, mas sobretudo uma arte que torna essenciais a imagem, o gesto, o movimento, abrindo mão da verbalização na maior parte das vezes em favor do entendimento. É o teatro da limitação física que tem sua capacidade de significação ampliada.

Os resultados comuns encontrados nos teatros estudados revela, antes de tudo, uma maior preocupação em se estabelecer uma comunicação sutil, propondo ao espectador um prazer que não o intelectual, de junção de elos lógicos, mas um prazer de redescoberta, de reordenação do mundo, de reconstrução constante. Aqui reside, ao meu ver, a questão central acerca do encontro da criança com o boneco dentro do espaço e do tempo do teatro. O contato com o intangível através de sua própria imaginação transformadora, a aceitação de um mundo que se reconstrói constantemente e que muda suas regras de funcionamento de um momento para outro, para mais adiante assumir nova forma. Mudando sempre.

Ilo afirma com sua obra de importância inestimável ao teatro em âmbito planetário a sua contemporaneidade que é também essencialidade. Ao se afinar nos seus modos de cena com pensadores e realizadores situados à vanguarda do pensamento humano aplicado ao teatro, vitaliza a ideia sábia de que se deve “olhar para o mundo com os olhos de uma criança”.

Grupo XPTO, São Paulo, O Pequeno Mago, 1996. Autor e diretor: Oswaldo Gabrieli. Fonte: Revista Puck, nº 10, p.33

Teatro Gioco Vita, Itália. La Boîte a Joujoux, 1986. Músicas de Claude Debussy, marionetes desenhadas por Lele Luzzati. Fonte: Revista Puck nº 10, p.39

In Concert, National Marionette Theatre, Vermont -USA. Animador: Peter A. Syrotiac. fonte: Programa do Festival Internacional de Teatro de Animação, p.36, 1996