1.1 – Introdução

“Teatro de animação” é um termo mais amplo e pomposo utilizado para designar o que usualmente chamamos de “teatrinho” de bonecos. Na verdade essa expressão se refere a uma gama maior de práticas e linguagens em teatro, uma vez que o boneco tal qual o concebemos – um objeto inanimado que representa uma figura humana ou de animal – é apenas uma das diversas formas que podem ser dramaticamente animadas. Se decidíssemos penetrar bem a fundo no que o termo significa, terminaríamos por perceber que a animação pode estar presente mesmo em trabalhos de forte cunho realista, em que o manuseio de determinados objetos possa remeter a reminiscências, simbolizar certo personagem ausente, ou representar estados de espírito, por exemplo. Mas parece mais interessante deixar os rodeios de lado e apresentar de vez a razão porque escrevo.

Boneco de luva, livro “Puppets and Automata”

Nós que somos tão acostumados a ver “bonecos” no teatro para crianças, e a não ver formas animadas no teatro feito para os adultos, sequer pensamos em questionar qual a relação entre o boneco e a criança, e porque esse laço é tão forte a ponto de excluir a animação dos demais teatros. Ainda mais raro do que questionar a relação entre os bonecos e a criança seria indagar a razão pela qual a linguagem da animação se encontra banida do teatro para adultos. Vamos tentar levantar algumas questões que podem nos levar a redimensionar tanto a maneira como encaramos usualmente o teatro dito “infantil”, bem como a animação de formas.

Ao ser indagado sobre a integração existente entre teatro para crianças e teatro de formas animadas, Ilo Krugli respondeu de maneira curta e direta: “a criança possui grande identificação com o boneco”. Essa identificação pode ser motivada pelo fato de que a boneca já é uma velha companheira da criança, e pela constância com que elas elaboram dramatizações com boneco ou objetos quaisquer. O tamanho quase sempre reduzido dos bonecos faz com que a criança o identifique como elemento integrante do seu mundo, em contraposição ao mundo dos adultos, das coisas grandes.

Outras coisas ainda podem ser ditas de forma a aproximar o teatro para crianças da animação de formas, sobretudo no que diz respeito à tradição ocidental de bonecos de feira, constituída por peças engraçadas com personagens carismáticos, famosos e constantes (tais como Mr. Punch, Guignol, Kasperle e Pulchinella). Essas representações sempre agradaram muito às audiências mais jovens, que tal como a quase totalidade da literatura feita para crianças européias, trazia forte tendência moralizante, bem como a ausência de pudores em apresentar cenas recheadas de violência e desfechos trágicos. Com os bonecos de feira não era diferente: suas peças vinham recheadas pancadaria e mutilações, para deleite das platéias de todas as idades.

A figura do boneco como personagem de representações tradicionais e populares vai ser alvo de um processo de resgate e identificação com as inquietações de muitos dos elaboradores do teatro moderno. Desde finais do século XIX o boneco tem servido de imagem ideal para aquilo que os modernos teóricos e encenadores imaginavam como sendo o trabalho do ator do novo teatro que sonhavam. impulsionados pelo ensaio de Heinrich von Kleist (1777 -1811), louvando a qualidade dos movimentos do teatro popular feito com bonecos de fio em um ensaio de 1810 denominado “Teatro de Marionetes”, onde afirmava que seus reflexos frágeis e impassibilidade de expressão, decorrentes da ausência de consciência autônoma, sugerem paradoxalmente uma suprema consciência, semelhante à de Deus, e que os atores e bailarinos de seu tempo se deveriam desvencilhar de suas consciências “limitadamente autônomas” para poderem criar arte em cena.

Na verdade a teoria que Kleist desenvolve a partir do texto pode ser lida em maior profundidade, envolvendo fatores tais como a reprodutibilidade do gesto e a diferença existente entre o movimento mecânico do boneco e o gesto humano, irremediavelmente associado a uma motivação única e impossível de ser plenamente repetido.

Bonecos para espetáculo na linha Bauhaus, livro “Puppets and Automata”

Inspirado em parte por esse ensaio, mas tamb ém apoiado em considerações de artistas e escritores como Maurice Mäeterlink, Edward Gordon Craig elabora em 1907 a sua teoria voltada para o ator moderno a respeito da Supermarionete (Übermarionette), em que o desarmamento das estruturas da consciência humana mencionado por Kleist poderia conduzir o ator à criação de formas novas, permitindo que o elemento simbólico defendido por Mäeterlink pudesse emergir (“Nos nossos dias, o ator aplica-se a personificar um caráter e a interpretá-lo; amanhã, tentará representá-lo e interpretá-lo; um dia, criará ele próprio. Assim renascerá o estilo”). Francesco Bartoli consegue expor em síntese bastante esclarecedora o foco central da proposição de Craig a respeito da Supermarionete em artigo publicado pela revista PUCK

“Como é sabido, E. G. Craig está no ponto de partida de um movimento que,sobre a base da Übermarionnette, pretendeu reteatralizar a cena, instaurando o monopólio da figura do diretor. Em apoio a seu empenho, o teórico inglês invocou uma figura sublime, hiperdinâmica e dançante, dotada de poderes muito superiores aos excessivamente humanos do ator do século passado.”

Posso citar ainda um ensaio de Vsevolod Meyerhold intitulado Teatro de Feira, no qual exorta os atores a assumirem no palco uma postura criativa semelhante à do boneco que, não busca imitar o homem em todos os seus trejeitos, e sim criar um código gestual próprio de acordo com suas limitações físicas e com o contexto espetacular em que está inserido.

“Deve [o ator] substituir o boneco e prosseguir seu papel auxiliar, que lhe nega toda liberdade de criação pessoal, ou deve criar um teatro análogo ao que o boneco supõe conquistar, negando submeter-se à vontade do diretor de mudar sua natureza? O boneco não queria identificar-se totalmente com o homem, porque o mundo que ele representa é o mundo maravilhoso da ficção, porque o homem que representa é um homem inventado, porque o palco onde se move é a tábua da harmonia onde se encontram as chaves de sua arte.”

O boneco foi para grande parte dos pensadores e encenadores do início do século uma imagem escolhida para incorporar de maneira ideal as transformações que o novo teatro impunha ao ator. Um teatro que daquele momento em diante incorporaria em caráter definitivo o trabalho da encenação, que não apenas funciona como um parâmetro de harmonização entre os elementos constitutivos da cena, mas também como uma força que, por meio do conceito, tornaria o teatro num grande ampliador de questões, revelaria seus harmônicos escondidos ou insuspeitados. Uma analogia clara da integração existente entre o trabalho da encenação e a animação de formas seria aquela em que se compara a função do encenador – segundo as proposições de Craig, Meyerhold e tantos outros – a um mestre marionetista, que comandaria os fios da cena, subordinando à sua visão do espetáculo tanto os movimentos dos atores, como qualquer outro elemento constitutivo da cena (cenário, figurinos, luz, sons).

1.2 – Do Moderno ao Contemporâneo

Forma animada a partir de Picasso para apresentação de espetáculo, “Revista Puck”

Analisando-se o retrospecto, pode-se verificar que teatro de animação influenciou e continua a fazer arte das experiências mais radicais dentro da modernidade teatral, sendo uma linguagem fundamental para se compreender as alterações sofridas pelo teatro nos últimos cem, cento e cinqüenta anos. Apenas como exemplo, podemos verificar o quanto a animação contribuiu para que se pudesse realizar em cena experiências fundamentadas no uso da forma abstrata, tentada anteriormente nas artes plásticas.

Mesmo o teatro de animação propriamente foi profundamente afetado pelas transformações do século XX, incorporando o uso crescente da forma abstrata, o questionamento da figura do ator através do binômio forma/animador, o manuseio de objetos não construídos para fins teatrais e no uso de materiais alternativos, não como reflexo da pobreza habitual dos bonequeiros, mas também com claras intenções conceituais, de maneira a resgatar a forma animada, não como o divertido boneco de feira, mas como a figura simbolicamente forte fundamental em diversas tradições artísticas (sobretudo orientais) e também religiosas.

O que se pode concluir, então, a respeito da participação da animação dentro da cena destinada à jovens audiências? Se consideramos, a partir da afeição de alguns reformadores da modernidade teatral histórica pelo boneco, e do crescimento estupendo das possibilidades abertas ao teatro de animação dentro do contexto contemporâneo nas artes cênicas, que o boneco alça a experimentação da linguagem teatral à radicalidade, seria imediata a conclusão de que, o teatro feito para crianças se encontraria posicionado mais “à frente” do que o teatro convencional, feito para adultos. Essa suposição cai por terra facilmente quando lembramos que o teatro e boneco tem um pé solidamente fincado na tradição, e que se o boneco sempre foi foco central de diversas representações de cunho religioso – sobretudo no oriente, torna-se extremamente delicado do ponto de vista cultural e ético romper com o modo secular de confecção e jogo.

Se considerarmos a tradição bonequeira ocidental, encontramos o boneco fortemente relacionado ao teatro de rua, popular por excelência, tradicionalmente transmitido por gerações de artistas que trabalham materiais quase sempre rústicos, desenvolvendo seus trabalhos longe do ambiente intelectual, de onde surgem as teorias da transformação, que se inspiram na arte popular, mas não conseguem inspirar suas fontes. Em miúdos: se Meyerhold – como exemplo – se encantou com o titeriteiro da feira, o mesmo, provavelmente, não pode ser dito em via inversa. Provavelmente os netos da fonte inspiradora do encenador russo continuam a jogar com seus marionetes da mesma maneira há gerações e não reconhecem influência de seu ofício nas experimentações do construtivismo, ou de qualquer outra corrente de vanguarda que porventura tenha se inspirado nos movimentos de seus bonecos.

O teatro de bonecos é plural, tal qual o teatro propriamente dito. Podemos dentro do panorama do teatro brasileiro encontrar manifestações de raiz, como é o caso do Mamulengo pernambucano, experimentações dentro de uma linguagem moderna, como o Sobrevento, que monta espetáculos de modernidade reconhecida, como o Ubu do Jarry, ou Beckett, mas também dialoga com a tradição, misturando referências de maneira pós-moderna, como se deu em espetáculos como: Cadê meu herói, onde conviveram o trabalho de artesão de um mestre pernambucano ligado ao mamulengo, (mestre Saúba foi o responsável pelas esculturas dos bonecos), com a técnica de manipulação da luva chinesa, ensinada pelo mestre Yang Feng, somando-se a isso referências à televisão e Internet, criando um espetáculo de múltiplos pontos de apoio. Entretanto o que se observa em muitas montagens de teatro para crianças com bonecos, o uso da forma raramente vai além da mera decoração, e sua manipulação é desconectada de qualquer tradição, experimentação ou noção de adequação cênica. Nessa contagem estupenda de casos, tanto a modernidade quanto a tradição ficam de fora, cedendo espaço a equívocos e desconhecimento das imensas possibilidades da linguagem do teatro de animação.

Boneco de luva feito pelo próprio Alfred Jarry para a personagem Ubu, Revista Puck

Mas o que dizer do público? Como o público jovem recebe o evento teatral, e de que maneira difere da recepção adulta?

Essa série de textos não tem por objetivo analisar em profundidade a recepção teatral das crianças (o que seria um tema fabuloso para pesquisa acadêmica), mas apenas levantar algumas “lebres”, questões que podem ser confirmadas ao cabo de alguns minutos de observação desinteressada. Não pretendo escorregar pelo equívoco de, formulando algumas afirmativas, soar como quem ensina “o caminho das pedras” (até porque esse negócio não existe). O que se pretende é apresentar algumas indagações que podem conduzir a uma consideração um pouco mais profunda a respeito do teatro feito para crianças e do teatro de bonecos. Quem sabe algumas perguntas não podem ser mais férteis que respostas definitivas?

Ou então, que tal passear um pouco pela obra de um grande encenador e titeriteiro argentino radicado brasileiro há trinta anos, influência de quase tudo (quase tudo, mesmo!), que de bom tem sido feito em matéria de teatro para crianças desde o início dos anos 70. Analisar a obra de Ilo Krugli pode ser bastante esclarecedor para os que fazem indagações semelhantes às expostas até agora, pelo fato de que em sua prática teatral estão contidas explorações radicais das possibilidades do uso da animação; pela existência de um olhar especial sobre o teatro feito para crianças em que a arte é colocada ao lado da educação, auxiliando na construção do pensamento autônomo, da conquista do espaço, entre outras coisas; e também pela maneira como Krugli faz conviver, como marionetista, a tradição e a experimentação; o rústico no emprego do material e o sofisticado no potencial simbólico de suas formas

O grupo de textos inaugurado por este, irá brincar com a maneira com que Ilo Krugli, em alguns de seus espetáculos, relaciona teatro de bonecos com encenação experimental, buscando a afirmação de que, com efeito, a moderna encenação ainda deve muito à evolução do teatro de formas animadas, tentando ao longo do percurso entender porque o teatro para crianças foi o terreno fértil de onde foi possível a gestação de tantas experimentações bem-sucedidas, entender um pouco a força dessa relação, entre teatro de bonecos e para crianças.

Esta introdução foi o primeiro texto de uma série. Os próximos contemplarão a seu tempo:

1) O percurso de Ilo Krugli, desde a Argentina até o Brasil, passando por diversos rincões da América Latina;

2) O grupo Ventoforte, sua criação e premissas fundamentais;

Boneco utilizado para o espetáculo Beckett pelo Grupo Sobrevento

3) O emprego do texto no teatro de bonecos, e suas semelhanças em relação a experiências de encenadores do quilate de Gerald Thomas;

4) A transformação da figura da personagem, que deixa de residir no físico do ator, para repousar algures – formas abstratas, conjuntos de elementos;

5) O emprego da fragmentação como recurso contemporâneo de encenação, no que o teatro e bonecos tem a nos ensinar.

Será um caminho longo, tortuoso e cheio de dúvidas. Fecho esta introdução afirmando que não me coloco na posição do professor que “ensina”, “mostra como é”. Sou bem antes um curioso que tem a cara de pau de tornar públicas suas indagações. Questões, críticas e discordâncias serão bem-vindas. Até as próximas indagações