IV.1 – Introdução: O Corpo do Ator

Peter and Wendy, 1997. Direção Lee Brauer, The New Victory Theater, New York. Fonte: Revista Puch, nº11, p56. Foto: Richard Termine.

“O teatro de atores e o teatro de animação possuem tradições e códigos por vezes opostos. Para os marionetistas, a exatidão técnica é primordial bem como a exatidão da manipulação e do gestual do corpo. Não pretendo dizer que o trabalho do ator não seja exato, mas o caminho que se percorre não é o mesmo. No que concerne ao gestual, os marionetistas-atores praticam a mímica, onde aprendem de forma imediata como caminham um tímido ou um rico. O trabalho do ator em contrapartida, é resultado de um longo processo interior, complicado e secreto.”
Johanna Enckel 

A coloca ção em cena do ator e da personagem por parte do Ventoforte acontece de forma diferente do que se percebe nos tradicionais teatros de bonecos e de atores. O corpo do homem, da mesma maneira como a configuração corporal da personagem, tem seus moldes clássicos questionados, uma vez que se observa interação entre manipulador e figura, e divisão da forma da personagem entre homem e objeto, com manipulador aparente. Todos esses aspectos do teatro de Ilo Krugli podem ser pensados a partir da exposição de determinados pontos sobre a função do ator no teatro de bonecos de modo mais geral e, particularmente, de alguns de seus desdobramentos contemporâneos.

IV. 2 – Ator, Boneco, Personagem

Ana Maria Amaral, a respeito da distinção entre boneco e ator cita Émile Copferman, e o diretor do grupo L’arc en terre, Massimo Schuster. De acordo com Copferman:

“O ator ‘é’; sua essência é ser.
O boneco, ao contrário, ‘não é’, sua essência é o não-ser.
Mas ele não interpreta um papel, ele é o personagem o tempo todo.
Um ator imóvel na cena é um corpo, um boneco imóvel na cena é apenas um objeto.” (I)

A citação a Schuster é a seguinte:

“A força do boneco está em seus próprios limites, na sua incapacidade de poder fazer qualquer coisa que não seja estritamente aquilo para o qual foi feito. E, paralelamente, a fraqueza do ator reside exatamente nas suas enormes possibilidades, pois podendo fazer mil personagens diferentes, ele não é nenhum deles” (II)

Ambos os trechos citados celebram a figura do boneco como sendo um elemento de significação circunscrito à realidade representada em cena, uma vez que não possui a duplicidade de significação, que seria, segundo Patrice Pavis, um signo característico do homem que desempenha a função de ator. (III) O termo ator, no caso, não pode ser empregado à função cênica desempenhada pelo boneco, uma vez que, ainda citando Pavis, o ator é a presença física que interpreta um determinado Papel. O que se pode perceber da função do boneco, pelo menos a partir das declarações de Copferman e Schuster (e ratificadas por Ana Maria Amaral), é que o boneco, ao atualizar uma forma referente exclusivamente à peça em que se insere, está fazendo parte exclusivamente da realidade ficcional, relativa à fábula. O boneco não é outro que não o personagem, uma vez que lhe é impossível a condição de autonomia ontológica exterior ao contexto espetacular.(IV) Sua existência passa a ser obrigatoriamente circunscrita aos limites da cena, e tem seu repertório de movimentos limitado por sua estrutura, que quase sempre o contempla com um número bastante limitado de articulações e gestos possíveis. Como exemplo podemos observar o boneco de luva, manipulado geralmente por três dedos do manipulador, que seriam na maioria dos casos: o indicador para a cabeça do boneco, e os dedos polegar e maior para cada um de seus braços/mãos. Todos os movimentos possíveis dos bonecos advém das combinações de articulação desses três dedos, sempre em conformação com o que logicamente seria admissível aos movimentos de um ser humano.

O público geralmente atribui vida a um boneco em cena sobretudo por seus movimentos.(V) Um boneco parado ou movendo-se de forma inadequada à realidade proposta pela cena tende fatalmente a retornar à condição de objeto inanimado, perdendo assim função cênica. O elemento capaz de conferir ao boneco sua condição de existência por meio do movimento é o manipulador, um homem que manuseia suas articulações com a finalidade de conferir ao boneco uma qualidade de movimento capaz de produzir no público a impressão de vida. O manipulador, dessa forma, doa parte de sua própria vida ao boneco, por conferir-lhe movimento, assumindo dessa forma a duplicidade mencionada por Pavis (presente no binômio homem-personagem) como inerente à condição de ator.

Teatro de Animação do SESC São Paulo, 1996.

Simone Franco, Romeu e Julieta, Cia de Bufões, RJ. Programa do 1º Festival Internacional de Teatro de Animação do SESC SP, 1996

De fato, o que ocorre no teatro de bonecos, mesmo quando se encontra oculto, o ator é o homem manipulador, que apresenta o boneco diante de uma platéia dividindo-se entre ele mesmo, e a parte de um personagem, cujo corpo se encontra além dos limites do corpo do ator. Isso é diferente do que ocorre no tradicional teatro de atores, onde um personagem possui o mesmo corpo do ator que o apresenta.

Outro termo que designa a fun ção do ator que movimenta o boneco, conferindo-lhe vida em cena, é “animador”. Esse termo é preferido por muitos profissionais da área de animação, sendo inclusive utilizado pela titeriteira e estudiosa Magda Modesto como o termo mais correto. Para Modesto, o termo “animar” (que possui significação oriunda do grego, “dar alma”), não contemplando a dimensão artística e mesmo mística do ato de jogar com o boneco. Animar é um termo preferido por muitos, em detrimento a manipular, que teria um caráter mais impessoal, remetendo ao manuseio de um objeto, sem contemplar suas dimensões mais subjetivas de significação.

Ana Maria Amaral usa o verbo servir para falar da relação existente entre ator-manipulador e boneco.(VI) Esta colocação precisa ser mesmo esclarecida em termos lingüísticos, uma vez que não se trata de uma relação de servidão do ator ao boneco (o ator, segundo Ana Maria, não serve ao boneco, e sim o boneco), sendo algo mais próximo à função do garçon. Servir aparece em um sentido que se assemelha a apresentar, deixando entender que não apenas o boneco possui um potencial expressivo próprio, mas também que a maneira como o público acolhe e entende a função cênica do boneco vai determinar fortemente sua condição de existência enquanto personagem.

IV.3 – O Animador Fundido à Forma Animada

O tipo de ator que encontramos nos espetáculos de Ilo Krugli está adiante da relação tradicional entre o ator-manipulador e o personagem-boneco, uma vez que a separação entre essas duas entidades se dá de forma um pouco mais problemática. Primeiramente pelo fato de a animação nas peças do Ventoforte ocorrer com o uso do manipulador aparente. Isto eqüivale a dizer que o homem que anima as formas apresentadas não se esconde por detrás de uma empanada – como se pode observar em teatros tradicionais de bonecos de luva, cujos melhores exemplos seriam as peças inglesas que apresentam a personagem Mr. Punch, um parente próximo do Pulchinella da comédia italiana; como também o teatro de bonecos pernambucano de Mamulengo -, nem assume uma indumentária ou postura buscando neutralidade para que a figura do boneco possa ganhar quase uma exclusividade na cena – cujo melhor exemplo é o teatro japonês de bunraku, onde os manipuladores se vestem inteiramente de preto e treinam seus gestos de modo a obscurecerem sua presença. O teatro de Ilo Krugli segue uma tendência comum ao teatro de bonecos contemporâneo, que retirou da obscuridade a figura humana, revelando ao público a fonte de onde o boneco-personagem retira sua energia vital.

Mais que simplesmente mostrar o animador, o Ventoforte busca a instauração de uma relação entre forma e animador. Isto pode ser explicado em parte pela força cênica que um ator vivo possui devido à sua condição de existência autônoma, o que pode obscurecer a presença do boneco. O uso do animador aparente constitui-se assim num perigo de que a atenção que um homem vivo consegue angariar em cena possa apagar por completo a presença de um boneco que representa um personagem. Desse modo, parece importante que o ator consiga criar com o boneco uma relação, mesmo que esta não se dê no nível fabular, da história que a peça está contando, mas dentro de um contexto distanciado, que revela ao público a dimensão espetacular da situação. O ator passa a poder jogar com o boneco sob a forma de personagem da fábula ou como o manipulador mesmo, deixando clara à audiência a condição de dependência por parte do boneco, ou ainda tensionando mais essa relação, ao sugerir diante do público que o boneco possua certa autonomia, usando de recursos que sugeririam a existência de um movimento de insurreição do boneco para com seu manipulador.

O tipo de relação entre animador e boneco que o grupo Ventoforte pratica em seus espetáculos parte de um trabalho de interação entre forma animada e ator-manipulador. Tanto a configuração física como a condição de existência do personagem se encontram na forma e no animador ao mesmo tempo. A começar pelo fato de o grupo usar formas incompletas, e sem referência imediata à figura do homem ou de animais, referência que, como foi explicado anteriormente, diz respeito ao significado do termo boneco. O protagonista de A História do Barquinho é o barco Pingo Primeiro, que parte em busca de sua amada flor, de nome Irupê. O barco é feito por um pequeno bastão com bandeiras triangulares e fitas na ponta segurado por um ator, ao passo que a flor é um lenço colorido que uma atriz segura enquanto realiza movimentos de dança. Não se consegue nesses exemplos perceber a separação entre boneco e manipulador. O personagem é fisicamente representado pela junção das formas do objeto e do ator. Há momentos, como por exemplo o diálogo entre Pingo Primeiro e a Aranha, em que ambos os personagens são servidos pelo mesmo ator: em uma mão Ilo Krugli segura o mastro da barquinho, e na outra, pintada com listras de tinta marrom, interpreta a Aranha.(VII) A voz de ambos os personagens é feita pelo mesmo ator que os anima, e o público vai distinguir os personagens por um somatório de elementos que os caracterizam tais como: discurso verbal, código gestual, e função na trama. Tanto no Barquinho como em História de Lenços e Ventos, personagem não é ator nem boneco separadamente, e sim a forma criada a partir da conjunção de ambos. Uma personagem como Azulzinha tem como imagem sintética o lenço, mas apenas adquire vida em cena quando é adicionada ao corpo, à voz, ao movimento da atriz que a interpreta, da mesma maneira que a atriz sem o lenço nas mãos deixas de ser parte de Azulzinha para figurar o coro de atores que apresenta a peça, ou mesmo ser parte do grande dragão que ao final de História de Lenços e Ventos derrota os guardas do Rei Metalmau.

Yael Inbar e a boneca Gertrude. Gertrude Show, grupo The Minuteman (Israel). Programa do I Festival Internacional de Teatro de Animação do SESC São Paulo, 1996

O uso de objetos por parte do Ventoforte em seus espet áculos traz novas indagações a respeito do conceito de ator de Patrice Pavis anteriormente apresentado. Ao empregar um objeto incompleto, ou não especializado (ou seja, não construído com intuito cênico, mas usado em cena), como é o caso do jornal, do guarda-chuvas, dos lenços, Ilo Krugli nos põe diante de uma nova situação de duplicidade. Esse objeto escapa mesmo às condições expostas por Massimo Schuster e Émile Copferman, uma vez que não são apenas personagens: são guarda-chuva, jornal, lenço, que possuem funções objetivas anteriores às funções cênicas. Entretanto não seria o caso absolutamente dizer que tais objetos interpretam personagens, não apenas pela circunstância simbiótica em que são apresentados, como também pela inescapável ausência de vida autônoma do objeto, que depende do movimento do manipulador para exercer sua função em cena. No teatro de Ilo Krugli os objetos dependem de tal forma da relação com o ator que não lhes é dada possibilidade de autonomia de significação em cena.

Dois excelentes exemplos de interação física entre forma e ator são o trabalho do grupo italiano Hugo e Ines, que em seu espetáculo Ginocchio, no qual os intérpretes-manipuladores criam formas a partir de adereços colocados sobre diferentes partes de seus corpos, de modo a configurar os personagens; e o espetáculo Gertrude Show, da companhia israelense The Minutemen, onde em dado momento o tronco de um boneco representando uma figura feminina feita em látex é posto sobre a cintura da atriz sentada, transformando então as penas da atriz em pernas do boneco, mesmo sem que haja qualquer ocultamento do corpo da atriz para a platéia. Tal qual nos recursos empregados pelo teatro Ventoforte, os limites corporais entre ator e forma não se apresentam claramente.

IV.4 – Corpos Partidos 

Tomando como ponto de partida o teatro tradicional de bonecos, em que o corpo do animador se encontra oculto, no qual se pode entender o boneco como um corpo exterior ao do seu animador, poder íamos definir o trabalho do ator-manipulador como sendo o de produzir a impressão de vida em um corpo que se encontra além dos limites de seu próprio. No caso do teatro de Krugli, o que podemos perceber é que o personagem se encontra como que espalhado por diversos pontos da cena, dividido entre objeto, ator, e mesmo outros elementos constitutivos da cena como cenário, luz, música, discurso verbal e jogos vocais. O personagem resultaria assim do trabalho de animação de diversos elementos, dos quais o corpo do ator é parte fundamental, mas que ainda assim não consegue dar conta sozinho de sua totalidade. Alíás, essa totalidade acaba por inexistir, á que não se encontra em nenhum dos elementos. Trata-se antes de uma “disjunção”, mais do que de uma “totalização”.

Mestre Koryû Nishikawa IV, durante seu workshop ministrado em 1989, no Institut International de la Marionnette. Revista Puck nº.7, p.95

O que se pode perceber dessa composição múltipla de personagem é, ao mesmo tempo que um movimento de integração entre diversos elementos constitutivos da cena, também uma construção fragmentária da personagem, que não se consegue resumir numa forma indivisível. Tendo como base esse caráter, que pode ser observado também em outros trabalhos de teatro de animação, a professora alemã Helga Finter compara esse tipo de teatro com o trabalho pós-moderno de encenação dos diretores americanos Robert Wilson e Richard Foreman (VIII), em trecho no qual ela se refere à separação entre corpo, voz e discurso como sendo o maior ponto de contato entre esses dois teatros. Com efeito, se levarmos em conta os métodos mais simples de teatro de bonecos, podemos observar que a voz sempre parte de um ponto que não o corpo o boneco. Pode ser a voz do “animador”, escondido ou não, ou pode ser como no caso do “bunraku”, em que todas as vozes são feitas por um narrador que se coloca em um palco separado de onde se desenvolvem as ações dos bonecos, bem à vista do público. Esses procedimentos podem perfeitamente ser comparados com recursos da encenação do teatro de atores contemporâneo, como o uso da voz gravada em intervenções em off. Helga Finter percebe nos teatros de Wilson e Foreman a existência, além da divisão de elementos mencionada, de um código gestual rígido a ser obedecido pelos atores, que se assemelharia a um movimento maquinal, por sua impessoalidade e precisão. Dessa forma essas linguagens de encenação se estariam aproximando do ideal de Kleist, que sugere ao ator buscar a impassibilidade da marionete, para que, ao alcançar um estado de ausência de consciência autônoma, possa alcançar uma consciência suprema, próxima à de Deus.(IX)

Um outro ensaio, intitulado A Imaginação Monológica, e escrito por Flora Süssekind (X), vai atribuir essas mesmas características de disjunção das partes do personagem ao teatro de Gerald Thomas, identificando nesse procedimento um movimento de desmembramento da personagem (o termo usado por Flora é disjunção). Uma das peças usadas como exemplo éThe Flash and Crash Days (XI). Nessa peça, o exemplo mais claro da referida disjunção está na personagem Ela, que está presente na performance das duas atrizes que a interpretam, Fernanda Montenegro e Fernanda Torres. Mas também pode-se ver esse movimento desmembrador no mordomo de Luís Damasceno, cuja cabeça é a de um manequim fixada sobre a do próprio ator, projetando o corpo da personagem até alguns centímetros além do corpo do ator. Essas duas personagens – Ela e mordomo – extrapolam os limites corporais do ator, apresentando uma proposta de corporalidade comparável ao conjunto ator/objeto apresentado por Ilo Krugli nos dois espetáculos seminais do grupo Ventoforte.

Süssekind, assim como Helga Finter identifica a divisão entre voz e corpo como sendo um recurso marcante de descentralização da personagem nos trabalhos dos encenadores estudados. No caso de Thomas, esse elemento estaria presente sobretudo no uso da voz em off. Flash and Crash se inicia com a voz gravada de um Eu aprisionado, que aos poucos vai revelando haver sofrido metamorfoses. Primeiro em um manequim que aparece ao fundo da cena, e posteriormente em Ela – as duas figuras femininas que duelam ao longo do espetáculo. Nesse caso a multicorporalidade (XII) do enunciador se define não apenas pela divisão da personagem em mais de um corpo, mas também pela separação entre voz e corpo mencionada, que é notável com clareza na dupla voz/manequim. O primeiro dos termos do binômio seria formado puramente por consciência e memória, desprovido de físico, ao passo que o segundo seria uma forma humana concreta, desprovida de consciência. Mas a compreensão dessa estrutura partida de personagem não encontra tempo de sedimentação para o espectador. Logo essa forma será esquecida para ser substituída por outra proposta, para ser ou não retomada em um outro momento qualquer do espetáculo. Este é outro recurso empregado por Thomas, e que será esmiuçado por Sílvia Fernandes no capítulo sobre o corpo em cena na obra de Gerald Thomas (XIII), que diz respeito a justaposição de imagens a respeito da personagem, com a finalidade de “criar novas perspectivas de visão de um mesmo mito”(XIV) (no caso o de Carmen, ou o da mulher fatal, em versões bastante variadas)

No capítulo sobre dramaturgia deste trabalho foi comentado o fato de o teatro de Ilo Krugli possuir, tal qual o teatro de Thomas, uma tendência à narrativização, pelo fato de o discurso da peça transitar por dois contextos diferentes (o fabular e o contexto de enunciação, ou seja, o contexto do ator-animador que interage com o boneco). O elemento épico permanece claro dentro da prática de Krugli ao determinar um personagem que é composto, formado por partes do corpo do ator, ou por elementos associados a este. Revela-se assim aos olhos do público não apenas a instância da ação dramática, como também a do elemento forjador dessa ação. Outra peça de Thomas, O Império das Meias Verdades, 1993 (XV) começa com uma grande mesa ao centro do palco, onde um homem sentado à direita, fuma, e outro, sentado à esquerda, se delicia com um pernil servido ao centro da mesa. O curioso é que o pernil possui uma cabeça humana viva, que reage à sua própria fatiação, e que em dado momento da peça, explode em uma repreensão irritada aos dois homens. A maneira de combinação dos elemento formadores desse personagem pode ser encontrada não apenas no teatro do Ventoforte, com também em diversas outras práticas em teatro de animação. O corpo humano em sua totalidade ou apenas parte dele (no caso citado, apenas a cabeça) é associado a uma estrutura inanimada (o pernil) para a criação de uma nova estrutura física diferente do homem e associada ao objeto/boneco. Nesse caso a animação não se dá por meio de manipulação de partes articuláveis com o intuito de forjar vida em cena através do movimento. O que determina a animação da personagem é o movimento do rosto da atriz – mais especificamente seus olhos -, uma vez que o objeto que forma o corpo – o pernil – é estático. Ainda assim, o que se pode entender da forma mencionada é a existência de um corpo ao qual parte do corpo humano se associa para completá-lo, e cuja vida cênica é insuflada por meio do movimento conferido pelo ator.

O corpo do ator, tanto nas peças citadas de Gerald Thomas, como nas de Ilo Krugli, perde sua configuração original para a formação de novas formas que se constituirão nas personagens. Esses processos se dão tanto na subtração de partes do corpo do ator, como na expansão do corpo para além de seus limites por meio de recursos que variam desde objetos manipulados até partição de personagens por dois ou mais atores ou separação entre corpo e voz, se valendo da intervenção em off.

IV.5 – O Ator Menos Humano

A atriz Floriana Frassetto, do grupo alemão Mümmenschanz. Revista Puck nº.4, p.20

Se recorrermos às teorias de Kleist, Craig e Meyerhold que buscam aproximar o ator de seu tempo à marionete, perceberemos que se prega certo rigor gestual e impessoalidade expressiva, em busca de uma cena que lide com signos em estado mais puro.

“A mecanização do ator, reflexo das teorias maquinistas do homem, serve a princípio à deserotização de um corpo, em que as possibilidades de atração estarão submetidas à mensagem que ele pretende personificar. […] O gesto e o movimento, maquinais ou expressivos, tornam-se utilitários, tributários de um trabalho ou de uma comunicação.” (XVI)

Helga Finter reconhece a influência da gestualidade da marionete sobre as idéias a respeito do ator professadas por algumas das chamadas vanguardas históricas, bem como o quanto os trabalhos de encenação de Robert Wilson e Richard Foreman são tributários diretos dessa relação entre teatro de bonecos e teatro moderno, no que concerne à busca de um comportamento maquinal e deserotizado, do ator.

Gerald Thomas por vezes constrói com grande rigor os comportamentos físicos de seus atores. Sílvia Fernandes apresenta declarações de atores dirigidos por Thomas, em que é abordada uma parte de seu processo de construção milimétrica dos comportamentos corporais (XVII). Segue como ilustração uma declaração de Thomas usada pela própria Sílvia Fernandes no mesmo capítulo:

“Eu pego pelo braço, marco todos os movimentos, dou a musicologia do texto que ainda não veio, mexo na cara, na sobrancelha, ensino a tensionar o corpo para aquele momento específico. O ator aprende aquilo e aprende a se sentir orgânico dentro disso, dia após dia.” (XVIII)

Aqui podemos perceber um encenador trabalhando com seu ator tal qual um marionetista com seu boneco. Os movimentos são determinados, sem que haja a possibilidade de uma construção formal arbitrária por parte do ator, no qual há uma preocupação com a forma do movimento e sua capacidade expressiva anterior à incorporação de uma informação de origem dramatúrgica. A mecanização do ator no teatro de Thomas se dá também com o emprego da voz gravada em tom impessoal, o que Flora Süssekind chama de “comentarista mecânico” (XIX), ou também por meio da substituição do homem pelo objeto (manequim emFlash and Crash Days), ou pelo uso bem-humorado da idéia de mecano (XX), como é o caso da primeira cena de Graal, Retrato de um Fausto Quando Jovem, onde uma floresta é construída com inúmeros ventiladores funcionando.

Curiosamente, o teatro de Ilo Krugli investe muito mais na força de significação do objeto em sua relação com o homem do que no rigor formal de construção de movimentos. Embora certos personagens possuam estruturas físicas características (o mastro do barquinho não pode ser derreado), percebe-se a partir da observação do espetáculo a inexistência de um código rígido de movimentos que seja repetido com precisão estrita a cada apresentação. Identifica-se aqui um ponto fundamental de distanciamento entre Thomas e Ilo: enquanto o diretor de Flash and Crash Days se vale de recursos de dispersão do corpo do ator no sentido de alcançar um teatro maquinal, o líder do Ventoforte o faz buscando maior humanização dos meios e dos motivos de se fazer teatro.

Notas Bibliográficas

(I) COPFERMAN, Émile “Singuliére ethnie”, Théâtre Public, sept. 1980, p.4; citado em: AMARAL, Ana Maria. Teatro de Formas Animadas (Texto & Arte; 2). São Paulo: Edusp, 1993. p.73.
(II) SCHUSTER, Massimo, “Lettre au théâtre”, Marionnettes, no 12. p.19. citado em: AMARAL, Ana Maria. Teatro de Formas Animadas.
(III) PAVIS, Patrice. Dicionario del teatro. Barcelona: Paidós Iberica, 1998. verbete: actor pp.33 – 4
(IV) O termo ontologia aparece em concordância à forma como foi empregado por Anatol Rosenfeld em: ROSENFELD, Anatol. “Literatura e personagem” In: CANDIDO, Antonio & outros. A personagem de ficção (debates; 1; 9ª edição). São Paulo: Perspectiva, 1995 pp. 9 – 49.
(V) Outras duas propriedades importantes para atribuição de vida cênica a um boneco por parte da audiência são o eixo e o foco (segundo o que me foi possível observar não apenas empiricamente no decurso de processos de ensaios de espetáculos dos quais participei como ator-manipulador, e também assistindo palestras e debates ocorridos em festivais de teatro e teatro de bonecos e conversas particulares com bonequeiros). A primeira propriedade diz respeito à estrutura postural e de movimentação do boneco, que deve possuir certa coerência de acordo com a forma do boneco (um boneco que reproduz um homem deve observar a posição do que seria sua coluna, um animal se mover de uma maneira que obedeça à sua morfologia, e assim por diante); a propriedade do foco diz respeito à maneira como o boneco projeta a intenção de sua ação (essa propriedade é normalmente exemplificada com a capacidade que o boneco tem de simular o sentido da visão, direcionando seus olhos ao lugar ou objeto para onde pretende se deslocar ou alcançar).
(VI) “No teatro de bonecos, a imagem do personagem já vem pronta e o ator apenas serve o boneco.” In: AMARAL, Ana Maria: Teatro de Formas Animadas. p.73.
(VII) Performance assistida a 02/05/99, na Casa do Ventoforte/SP. O espetáculo e chamava O Rio que Vem de Longe, como se explica na Introdução deste trabalho, p. 25.
(VIII) FINTER, Helga. Dioptrique de corps: pour que le regard entende. Charleville-Mézières: Revista PUCK, no 4, 1994, pp. 25-30.
(IX) A teoria de H. von Kleist é citada também na introdução deste trabalho. pp. 6 – 7.
(X) SÜSSEKIND, Flora. “A imaginação monológica” In: VVAA. Um encenador de si mesmo: Gerald Thomas. organizado por Sílvia Fernandes e Jacó Guinsburg. São Paulo, Perspectiva, 1996. pp.281-295.
(X|) O espetáculo estreou no Rio de Janeiro no ano de 1992, com temporada no Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil. Uma cópia em vídeo do espetáculo, bem como declarações de artistas e público a seu respeito se encontra no acervo do CCBB.
(XII) Termo usado por Flora Süssekind no artigo citado.
(XIII) FERNANDES, Sílvia. Memória e invenção: Gerald Thomas em cena (coleção estudos). São Paulo: Perspectiva, 1996. pp. 97 – 143.
(XIV) Idem. pp. 107.
(XV)Acervo de vídeo do Centro Cultural Banco do Brasil.
(XVI) FINTER, Helga. Dioptrique de corps: pour que le regard entende. Charleville-Mézières: Revista PUCK, no 4, 1994, pp. 29. Tradução própria do trecho: “La mécanization de l’acteur, reflet des théories machiniques de l ‘homme, sert d’abord à la deserotization d’un corps dont les pouvoirs d’attraction seront à mettre au profit du message qu’il veut incarner. […] Le geste et le mouvement, maquiniques ou expressifs, deviennent utilitaires, tributaires d’un travail ou d’une comunication.”
(XVII) FERNANDES, Sílvia. Memória e invenção: Gerald Thomas em cena (coleção estudos). São Paulo: Perspectiva, 1996. pp. 100 – 1, nota 6.
(XVIII) Transcrição de trecho de carta de Gerald Thomas ao crítico Marco Veloso datada de 14/12/1989 em: FERNANDES, Sílvia. Memória e invenção: Gerald Thomas em cena. p. 100.
(XIX) SÜSSEKIND, Flora. A imaginação monológica. p. 283.
(XX) O mecano é um tipo de boneco que apresenta movimentos repetitivos e impessoais, acionado por dispositivos mecânicos. Podem ser bonecos únicos ou cenas inteiras, como os presépios maquinais e casas de farinha, que ainda hoje se encontram entre peças artesanais no nordeste do Brasil.