III.1 – O Uso das Mãos

Desenho: Fernando Sant’Anna

“O boneco, tanto hoje como naquela época, era um elemento muito forte. Aliás, esta é uma das minhas raízes, determinando muito a linguagem cênica que uso atualmente. Não faço teatro de bonecos.”
Ilo Krugli

“O pão não se corta. Os homens partem o pão com as mãos.”
Federico Garcia Lorca 

A peça História de Lenços e Ventos começa com bonecos que se rebelam, recusando-se a tomar parte na peça. Escondem-se todos dentro de uma mala e vão embora. Não adianta os atores insistirem, terão que fazer a peça com outra coisa. “Com o que faremos a peça?”, perguntam-se. Aos poucos encontram pedaços de papel e de pano que passam aparentemente de maneira forçosa a serem os protagonistas da história. Os atores não têm mais bonecos para fazerem o espetáculo, têm aqueles objetos “encontrados” e têm suas mãos. A declaração de ilo Krugli de que não faz teatro de bonecos chama atenção para o uso de outros elementos que não têm formas reconhecíveis, chamando atenção para a dinâmica das mãos do animador, que conferem a esses objetos uma significação dentro da cena. Em muitos momentos, inclusive, vemos a mão nua, desvestida do boneco, que a partir desse dado a princípio limitador, amplia seu leque de possibilidades, conquistando mesmo uma maneira particular de se fazer entender. Esse fato amplia as possibilidades cênicas dos espetáculos do Ventoforte, além de conectá-los ao que poderíamos chamar de raiz do teatro de bonecos: a força expressiva do uso das mãos.

O animador de bonecos usa sua mão como o canal através do qual a vida de um personagens será forjada. Quase todas as diferentes linguagens existentes em teatro de formas animadas possuem uma estrutura de manuseio do boneco/objeto feita com as mãos. Pode-se dizer mesmo que são raras as experiências em teatro de animação onde a mão não se constitui no ponto do corpo humano que atua a animação – os grandes bonecos de vestir do grupo paulista XPTO, e algumas das formas trabalhadas pelo Mummenchanz (1) são contraexemplos notáveis – que parece mais rico citar as diversas formas com que a mão é usada em diferentes correntes e estruturas.

O boneco de luva ajusta-se perfeitamente à mão do animador, sendo que o boneco pode ser considerado a própria mão vestida com o personagem, diferentemente do boneco de fios, em que a mão do animador controla o avião – ou cruz – normalmente protegido dos olhos do espectador. Apesar das diferentes distâncias existentes entre as mãos e os bonecos nos dois casos, parece correto afirmar que esta parte da anatomia humana é o que conduz o movimento de ambos os bonecos. Ainda sobre o boneco de luva, podemos citar a arte da luva chinesa, que requer extrema habilidade manual de seus praticantes. O treinamento é bastante rígido e requer um cuidado ritual com as mãos. Conhecemos este trabalho sobretudo pelas apresentações e cursos ministrados pelo mestre bonequeiro Yang Feng (o mais recente deseus cursos foi ministrado durante o segundo semestre de 1998, no Centro Cultural Banco do Brasil), em suas passagens pelo Brasil (2). Temos também o boneco de marote, com boca articulada. Esse boneco falante – cujos exemplos mais famosos seriam os muppets, do americano Jim Henson – concentra em sua boca móvel a maior porção de sua capacidade expressiva, e é manipulado pela inserção da mão do animador dentro das frestas superior e inferior de sua boca. Os mecanismo de animação de vara constituem-se na movimentação de varas rígidas presas às partes do corpo do boneco que se deseja movimentar. São invariavelmente acionadas pelas mãos, seja no caso de pequenos bonecos, como vistos em alguns programas infantis de televisão, como nos enormes bonecos “de vestir” utilizados pelo grupo nova-iorquino Bread and Puppet.

Desenho: Fernando Sant’Anna

Falar do uso das mão no teatro de bonecos implica referência obrigatória na técnica japonesa Bunraku, uma forma de teatro nascida no século XIX que trata de temas de ordem ética e de comportamento humano, diferentemente das formas tradicionais de teatro de bonecos oriental, que geralmente aborda temas mitológicos e religiosos. Nesta modalidade os bonecos são manuseados por três animadores simultâneos, que os manuseiam praticamente sem qualquer anteparo entre suas mãos e o corpo do personagem. Sua estrutura de animação é a seguinte: Os bonecos reproduzem figuras humanas de aproximadamente 50 centímetro de altura, ricamente vestidas e realisticamente esculpidas. Um dos animadores (ashizukai) se encarrega dos pés do boneco, podendo pegá-lo por varas ou diretamente com suas mãos sem qualquer outra mediação; o segundo (hidanzukai) anima exclusivamente o braço esquerdo do boneco através de um vara fina, e por fim, o terceiro animador (omozukai) que tem a seu encargo a animação do braço restante – também por meio da vara – e da cabeça, cuja delicadeza e força expressiva exige um contato direto com a mão do animador, que às vezes pode escondê-la por trás dos tecidos que compõem o figurino da personagem. O bunraku também impõe aos seus animadores um longo e árdua período de treinamento.

“Uma pessoa se inicia estudando a arte do ashizukai por aproximadamente 10 anos. Então se estuda o hidanzukai, o que toma mais 10 anos de treinamento. Para se alcançar a maestria do omozukai é necessária toda uma vida.” (3)

Exemplos da importância do uso das mãos no teatro de animação são infinitos, e ainda que alguns experimentos contemporâneos venham a atenuar sua presença no ato da animação por meio de outros procedimentos, esta prossegue como imagem paradigmática da transmissão do élan vital do homem para o boneco. A mão faz dessa maneira as vezes de canal por onde flui a energia expressiva do ator, transmitindo-a inteira para o boneco, um corpo inanimado exterior ao corpo humano, que é insuflado de vida, animado (dotado de alma) por um ser que precisa se anular para fazer surgir outra forma de vida.

Essa imagem, apesar de bela, nem sempre corresponde à verdade. Os japoneses do Bunraku levam bastante a sério a necessidade de obscurecimento do corpo do homem, de tal forma que seus animadores vestem roupas pretas com capuzes, sendo permitido apenas aos poucos grandes mestres o uso de roupa branca sem capuz.

Diferentemente do exemplo oriental, pode-se notar uma tendência inversa nos trabalhos de alguns grupos e espetáculos de animação mais recentes, que optam por promover uma interação do homem com o ser animado. Temos como exemplo o teatro L’arc en terre, do diretor Massimo Schuster, que usa a mesa como superfície de apresentação, atrás da qual se posta com a cabeça descoberta e adiciona à dinâmica dos objetos que anima a sua própria eloquência de ator como veículo da história que está contando; há também a companhia paulista Truks, que faz uso de uma estrutura de boneco de manipulação direta – um boneco inteiro com um único aparo na altura da cabeça, possibilitando contato direto dos três manipuladores com o corpo do boneco. Seus espetáculos A Bruxinha e Uma História do Mundo estão cheios de momentos em que os animadores saem de seu estado de neutralidade para contracenarem com os bonecos. Esse recurso em particular encontra grande aceitação por parte do público infantil. De qualquer forma, tanto com o animador aparente como obscurecido, a doação da força expressiva do homem para o objeto constitui-se numa característica forte e definidora do trabalho de animação. Trata-se de um processo no qual algo inexistente ganha forma e consciência, mesmo que doadas por alguns instantes – os da cena – por alguém que pode ou não perder suas características individuais aos olhos do público. Francesco Bartoli em seu artigo à revista PUCK sobre a idéia de “supermarionete” de Edward Gordon Craig (4) faz a seguinte citação do semiólogo francês Roland Barthes: “o espetáculo apaga a antinomia entre o interior e o exterior, o espírito e a matéria, fazendo totalmente visível, sem desvios a outro terreno, a tessitura dos signos.” (5)

Bartoli situa essa citação como sendo parte de um comentário maior de Barthes a respeito da arte do bunraku. O que se depreende desse comentário é o quanto a animação – ao menos no caso mencionado – trabalha com o signo em estado puro, mesmo apresentando diante dos olhos do espectador uma estrutura dual formada por manipulador e boneco, em que o primeiro representa a objetividade do mundo material, e o segundo a sutileza do plano sígnico. Pode-se dessa forma imaginar a mão como sendo o ponto de contato entre essas duas realidades, a ponte entre os dois planos, ou a síntese dessa relação.

O trabalho de Ilo Krugli com o grupo Ventoforte é marcado, segundo o próprio Ilo, pelo “trabalho com as mãos”. Na História do Barquinho, por exemplo, há uma galeria de personagens que valem a pena serem descritos para análise. Pingo Primeiro, o protagonista é um barquinho caracterizado por um pequeno mastro com bandeirolas e fitas na mão do animador que lhe dá voz e movimento; a flor Irupê, amiga de Pingo, é representada por pedaços de tulhe coloridos, nas mãos de uma bailarina que à dinâmica de animação dos tecidos, adiciona seus próprios movimentos de dança, transferindo parte da estrutura corporal da personagem para o seu corpo; a Aranha é a mão do ator-narrador pintada com riscos em marrom, que se movimenta pouco mas deve parte considerável de sua forma à rotina vocal empregada que repete frases curtas de forma lacônica (“Aranha não faz favores”; “presentes eu gosto, presentes eu gosto”); e o último personagem a entrar, o Marinheiro, é feito por um boneco com rosto em forma humana, embora seja manuseado sem quaisquer recursos ilusionistas, de modo que se vê claramente a mão do ator em torno do boneco.

O que isso possui de diferente do que se convenciona chamar de teatro de bonecos, também pode encontrar relação com o elemento basal de todo o teatro de animação. Se o boneco nem sempre está presente em sua forma que imita o homem ou o animal, seu veículo principal permanece presente, embora não esteja a serviço da animação direta de uma forma (“A mão é nua… por isso que ela é bonita, ela não usa disfarce… ela não se veste, a gente só pinta ela… para ser o BARQUINHO.” (6). A dinâmica das mão em cena, o uso de objetos que são personagens ou parte de personagens, e a transferência da capacidade expressiva e de identidade de um personagem de um ator para um objeto classifica essa prática como o mais claro e indiscutível teatro de animação.

Junto ao uso das mãos, reconhecemos no trabalho de Ilo Krugli uma forte tendência artesanal, que se expressa sobretudo na construção e destruição dos objetos formadores do espetáculo diante dos olhos do espectador (o sol que é pintado na hora em O Barquinho, o papel que é molhado e queimado, em Lenços e Ventos). Se entendemos o artesanato como o trabalho do homem com as mãos visando a produção de um objeto exterior a ele, mas que carrega parte de sua força, de sua energia, então nos convencemos de que estamos próximos da compreensão de um dos centros temáticos do trabalho do Ventoforte, bem como da idéia que Krugli tem da arte do teatro como matéria moldada em conjunto visando um resultado que contém a humanidade em essência.

Desenho: Fernando Sant’Anna

A vasta experiência de Krugli com teatro de bonecos possibilitou a percepção do poder cênico da mão sozinha, cujas possibilidades se ampliam quando libertas da fisionomia definida e estática do boneco construído, e o quanto esse jogo enriquece o trabalho do ator (“para alguns os atores poderiam ser apenas classificados de manipuladores… mas eu acho que são artistas da mão, são bailarinos, atores. É a tua mão, a tua vibração que vai dar os significados de uma linguagem totalmente projetiva, sensorial, para fora. Não é uma técnica, é sensibilidade.”(7)). A revelação da mão e o uso de formas incompletas para personagens (mastro com bandeirolas, pedaços de tecido) o permitiria apresentar ao espectador um universo em aberto, a ser preenchido pela disposição de quem assiste. Desta forma, o teatro de Ilo se aproxima de uma das correntes mais recentes do teatro de animação, denominada teatro de objetos ou “Micro Macro Teatro”. Grupos representativos desse movimento seriam o Velô Théâtre, o Théâtre Cuisine, L’Arc-en-terre, e o Teatro delle Briciole. Esses grupos trabalham desde a década de 80 com animação de objetos de uso quotidiano em uma dinâmica semelhante ao jogo, rejeitando a representação. O que se valoriza nesse tipo de espetáculo é o tipo de relação que se estabelece entre o ator e o objeto. O nome “Micro-macro” advém justamente na diferença de dimensão entre o objeto e o homem que o manuseia (8).

Dessa mesma forma, Ilo Krugli se vale da din âmica da animação e da fábula para completar o significado de uma forma (objetos criados sem intenção cênica usados para representar outras coisas e personagens). Esta tendência se exacerba quando os personagens a que os objetos se referem passam a ser completados pela movimentação corporal dos atores que o animam, criando assim uma forma incorpórea ou por outro lado, “multicorpórea”, espalhando a personagem por mais de um canto do palco simultaneamente. O trabalho com as mãos para o Ventoforte também possui um significado mágico, ritual. Para Ilo, “a mão é um ponto de concentração. Para um ritual acontecer, para existir energia, você tem que ter um forte ponto de concentração”  (9). O uso das mãos nesse caso surge como forte elemento catalisador do espetáculo teatral para o grupo, que surge como festa, como meio de religação. Para Ilo Krugli a mão resgata estruturas míticas que dimensionam o espetáculo como ritual. “…a mão é o artista, delicadamente, agitadamente. A verdade é que a mão é o artífice, e o artista é o lenço azul, é um pedaço de papel jornal que se transforma no seu desespero e impotência e se destrói em cena. […] é uma projeção em cima do material.”(10)

III.2 – O Teatro de Feira

Imaginemos dois teatros de bonecos. O diretor do primeiro quer que seu boneco seja similar ao homem, dotado de todas as caracter ísticas cotidianas, e peculiaridades. Da mesma maneira que o pagão exigia de seu ídolo que este movesse a cabeça, o dono da representação exigia que seus bonecos emitissem sons parecidos com a voz humana. Em seu desejo de reproduzir a realidade “tal como ela é”, nosso diretor aperfeiçoa sem cessar seu boneco e o retoca até que lhe ocorra a solução mais sensata a este complicado problema: a substituição da marionete pelo homem.

O segundo diretor constata que, em seu teatro, o que mais diverte o público não são as entremezes cheias de graça que seus bonecos representam, senão também (e talvez seja o essencial) o fato de que os movimentos e situações dos bonecos, apesar de sua intenção de reproduzir a vida em cena, não têm absolutamente nada que ver com o que o público vê na vida real.

Quando vejo trabalharem os atores de hoje em dia, tenho sempre a impressão de ter ante meus olhos o teatro de bonecos aperfeiçoado do nosso primeiro diretor, ou seja, um teatro no qual o homem substituiu o boneco. Neste caso o homem não fica atrás da aspiração do boneco de imitar a vida. Se o homem foi chamado a substituir o boneco, é por ser ele o único que, na reprodução da realidade, pode chegar a algo que está fora do alcance da marionete: identificar-se com a vida o mais fielmente possível.

O segundo diretor, que também tentou que o boneco imitasse o homem vivo, não tardou a se dar conta de que o aperfeiçoamento do mecanismo faz com que o boneco perca parte de seu encanto. Chegou mesmo a acreditar que o próprio boneco se recusava com todo o seu ser a essa cruel modificação. Este diretor se redimiu a tempo, quando percebeu que nas alterações havia limites que não deviam ser ultrapassados, sob a pena de recair em uma inevitável substituição do boneco pelo homem.

Mas pode aceitar sua separação do boneco, quando este conseguiu criar em seu teatro um mundo tão encantador, com gestos tão expressivos e com uma técnica particular e mágica, com uma rigidez convertida em traço visual, com movimentos tão próprios?

Escrevi assim sobre o teatro de bonecos para fazer refletir o ator: Deve substituir o boneco e prosseguir seu papel auxiliar, que lhe nega toda liberdade de criação pessoal, ou deve criar um teatro análogo ao que o boneco supõe conquistar, negando submeter-se à vontade do diretor de mudar sua natureza? O boneco não queria identificar-se totalmente com o homem, porque o mundo que ele representa é o mundo maravilhoso da ficção, porque o homem que representa é um homem inventado, porque o palco onde se move é a tábua da harmonia onde se encontram as chaves de sua arte. Nestes termos isto é assim e não de outro modo, não devido às leis da natureza, mas por vontade própria e porque o que deseja não é copiar, e sim criar.

Quando o boneco chora, sua mão sustenta um lenço que não toca seus olhos; quando o boneco mata, golpeia tão delicadamente seu adversário que a ponta da espada não alcança seu peito; quando o boneco dá uma bofetada, a face da vítima não muda de cor; e nos abraços dos bonecos enamorados há tal circunspecção, que o espectador, ao admirar suas carícias delicadas e respeitosas, sequer se atreva a perguntar ao vizinho em quê podem terminar esses abraços. Quando o homem aparece em cena, por quê está tão cegamente submetido a seu diretor, que quis transformar o ator em uma marionete da escola naturalista? O homem não quis criar sobre o palco uma arte humana.
                                                                                     Vsevolod Meyerhold – tradução Mário Piragibe

III.3 – A Respeito do Texto

Muito pode ser dito. Tanto que começar dá até vertigem. Prefiro então começar essa reflexão com algo que nunca esteve presente na minha pesquisa, e que então passa a ser colocado como mera divagação. Grandes autores escreveram peças que poderiam ser – e são – apresentadas até hoje a platéias infantis. É verdade, muitos desses autores (Shakespeare, Moliére, Lorca) escreveram para tipos de teatro que não distinguiam idades e tamanhos em suas platéias. Indo um pouco mais longe, identificamos nos três autores citados forte influência do teatro popular, de rua, de feira, feito ao ar livre em praças, pátios ou frentes de estalagens. O jogo dos atores, as situações cômicas e hiperbólicas, a poesia cheia de vida, a música e a graça das licenciosidades atraía jovens e velhos, que se deleitavam de igual forma com os espetáculos apresentados, espetáculos dos quais jamais se sentiriam fartos, e para os quais seriam eternamente um público fiel a seus chapéus de coleta.

Por ser fruto de uma divagação e não de uma pesquisa – na qual entraremos em mais algumas linhas – abstenho-me de afirmar, mas me dou ao luxo de sugerir que o primeiro movimento de separação entre teatro para adultos e teatro para crianças se deu a partir da popularização das salas fechadas de espetáculo, onde se assistem ainda hoje peças escritas por grandes autores, que discutem questões intrincadas, e que aos poucos fizeram com que o jogo físico fosse substituído pelo embate filosófico, cada vez mais imóvel e quotidiano. A imagem não tem um pingo de suporte histórico mas é bonita assim mesmo: os adultos endinheirados entram no edifício teatral para assistir os dramas das classes menos favorecidas, deixando na praça um grupo de indigentes e crianças, ainda hipnotizados, diante de uma pequena empanada onde se vê um animado, violento e licencioso espetáculo com bonecos de luva. Progressivamente ouve-se mais e mais alto o gargalhar animados das crianças, cujas vozes não competem mais com as vozes dos adultos… Bonecos de luva, sim. Muitos dos quais adaptados diretamente de personagens egressos da então extinta Commedia Dell’Arte. Que outro teatro de atores poderia melhor abrigar uma versão “comprimida” do que a Commedia Dell’Arte, com seus personagens-tipo marcantes, seu jogo improvisado, sua musicalidade e fisicalidade?

Boneco de luva representando um Arlecchino, Região da Emilia, Itália, séc XIX

Talvez o mais famoso dos personagens Dell’Arte a virar boneco tenha sido Pulchinella, ainda que volta e meia nos deparemos com um ou outro Arlecchino. Seus desdobramentos Europa afora provocaram o surgimentos de alguns tipos nacionais, como é o caso do Guignol na França, e na Inglaterra o Punch (perceba só a semelhança fonética com o nome Pulchinella). Muito mais a esse respeito nos pode ser contado pela Ana Maria Amaral em seu livro “Teatro de formas animadas”. Quem se interessa pelo tema precisa conhecer esse livro.

Ainda dentro de nossa enorme (e caótica) digressão formula-se a pergunta: existe um tipo de dramaturgia própria para crianças diferente da que é feita para adultos? Desde já respondo que mesmo o ensaio dessa resposta é tarefa demasiado complicada para mim, que tento aqui falar de teatro de bonecos. O que é possível verificar do meu ponto de vista é que existe, sim, um procedimento genérico no ato de se escrever para teatro de bonecos em relação ao teatro de atores, e cutucar a onça com vara curta, sugerindo que ambos, teatro para crianças e teatro de bonecos têm no teatro popular de rua seu ponto gerador.

O que vocês vão ler deste ponto em diante é a parte em que abordo a questão do texto na minha pesquisa sobre a relação entre teatro de formas animadas e encenação contemporânea, tendo como base de análise o teatro praticado pelo Ilo Krugli. Nela o teatro para crianças é menos abordado do que eu gostaria, embora, ao apresentar bases idiomáticas para o que seria a dramaturgia do teatro de animação, espero estar abrindo o caminho para uma reflexão mais aprofundada da natureza e forma do teatro feito para crianças.

A escritura feita no espaço

Tanto A História do Barquinho como História de Lenços e Ventos apresentam uma relação com o texto que se assemelha em diversos pontos ao que é praticado por encenadores mais radicais em sua contemporaneidade tais como Gerald Thomas, tanto nas montagens de textos escritos por outros autores (S. Beckett, Haroldo de Campos), como quando o texto escrito é da própria lavra do diretor. Nem Thomas ou mesmo Ilo Krugli conferem ao texto escrito a posição de primazia hierárquica ditada pelo modelo clássico, ou tampouco trabalham a partir do que Peter Szondi denomina como drama clássico: uma estrutura absoluta, de exposição primária (sem comentários sobre a forma; apresentando um único nível de enunciação), que se estrutura em torno de um enredo que apresenta certa unidade, cuja ação é apresentada exclusivamente no âmbito da ficção, ou seja, da realidade imaginada que se apresenta.

Na verdade, quando se fala de texto dramático nas práticas teatrais de Krugli e Thomas, deve-se entender que o significado do termo texto se encontra expandido ao limite, de modo que algumas questões e conceitos precisam ser comentados ao longo da análise.

Eugênio Barba, no capítulo sobre dramaturgia de seu “dicionário de antropologia teatral”, evoca a origem dos termos drama (do grego: ação) e texto (tecendo junto), para definir dramaturgia como um entrelaçamento de ações. Desta forma a nossa compreensão de texto deixa de ser apenas o registro escrito de determinada obra teatral – como se tende a pensar – para ser um composto formado por cada ação – dos atores, do cenário, da luz – desenvolvida em cena de modo a formar uma partitura mais complexa e diferente do registro escrito da peça. De qualquer forma a tensão existente entre registro gráfico e escritura de encenação persiste e ainda é uma questão fundamental para a compreensão do teatro moderno. Dessa forma parece eficiente adotar o termo empregado por Sílvia Fernandes para determinar o registro escrito de enunciação de um espetáculo teatral: texto cênico – que é uma escritura composta por todos os elementos constitutivos do espetáculo teatral – em oposição a texto dramático.

O teatro de bonecos, em sua raiz popular, sempre lidou com o improviso e com livres adaptações de histórias conhecidas, de fundo mítico-religioso, ou mesmo romances famosos e peças do teatro de gente. Segundo Henryk Jurkowski:

“Os artistas de marionetes dentro do contexto de uma apresentação têm à sua disposição centenas de novelas, de romances, de histórias para crianças, e isso faz parecer que eles não têm necessidade de um autor-escritor. […] Eles têm à sua disposição o conjunto do repertório dramático, que eles podem adaptar livremente.”

Essa circunstância revela que o teatro feito com bonecos se encontra menos subordinado historicamente ao texto dramático do que o teatro de atores, de modo que lhe é permitido também trabalhar com formas de discursos motivadas por elementos que não o escrito, permitindo ao bonequeiro inscrever seu texto não sobre uma folha de papel, mas diretamente sobre o espaço da cena.

Peça: Poèmes Visuels, do diretor Jordi Bertran

Sobre esta mesma quest ão, podemos citar o diretor e criador de teatro de bonecos americano Roman Paska, que define o trabalho dramatúrgico nas artes de animação como sendo um trabalho de assemblage, ou seja, superposição de elementos oriundos de fontes diversas. O diretor descreve seu trabalho:

“Não escrevemos para o teatro de bonecos, nós escrevemos o teatro de bonecos. Como na história da raça humana no paraíso, todas as nossas peças de teatro de bonecos começam com a argila”.

A analogia com a criação do homem a partir da argila do Velho Testamento, traz a exata dimensão do trabalho criador do marionetista que cria os moldes dos bonecos a serem construídos a partir de materiais moldáveis dos quais a argila é o mais empregado. Desse mesmo modo, suas peças serão criadas a partir das dinâmicas que surgirão como resultado das observações das possibilidades de movimentos dos bonecos construídos. Paska constrói com a sua companhia a trama no espaço. Segundo o próprio Paska: “É uma escritura de movimentos, gestos, cores e formas. Uma escritura dentro do espaço… Uma escritura que não pode ser lida apartada do jogo”. A idéia de escritura feita no espaço pode ser verificada no trabalho de Ilo Krugli com certa clareza.

Seus textos dramáticos são formas extremamente sintéticas, limitando-se à algumas das frases proferidas ao longo da representação. O dramaturgo-marionetista não leva em consideração a definição dos comportamentos das personagens, e não deixa claro por meio do texto a seqüência de ações que compõe o enredo da peça, de modo que por vezes o leitor é levado a lugares e situações sem que se perceba um movimento de transição relacionado ao momento anterior. Além disso o texto escrito confunde a fábula contada com o âmbito de enunciação, no qual se percebe o jogo empregado pelos atores e pelo encenador para contá-la. A simples leitura do texto de História do barquinho, dá ao leitor a impressão de estar diante de um conto onde a ação se encontra muito mal desenhada e pouco clara; os personagens não têm traços de definição que se estendam além de seus nomes. No texto de A história do barquinho pode-se ler o seguinte trecho:

NARRADOR – História do barquinho. Era uma vez um barco pequenino que se chamava Pingo Primeiro. (se vê o barquinho com uma corda amarrada)

NARRADOR – Pingo Primeiro estava a beira do rio, desde que foi construído. Nunca havia navegado… e estava só e aborrecido.

PINGO – (bocejando) Não sei o que estou fazendo aqui. Todos os barcos navegam e eu preso sem poder me mexer.

BARQUINHO – (outro que entra) Eh! amigo, vamos passear um pouco?

PINGO – Não posso; essa corda que me amarraram não me deixa…

BARQUINHO – Ah, coitadinho!! Está ancorado.

PINGO – Ancorado? Será que fala dessa corda?

NARRADOR – Pingo estava ancorado, as ondas balançavam suavemente. Quase dormia. Nisso viu chegar uma formosa flor sobre as águas e olhou o barquinho.

IRUPÊ – Barquinho! Barquinho! Barquinho! Como vai você???

PINGO – Oh! Que bonita! Como é que você se chama?

IRUPÊ – Meu nome é Irupê. E o seu?

PINGO – Eu me chamo Pingo Primeiro. Fica comigo. Não tenho com quem falar.

IRUPÊ – Não posso, não posso. As ondas me levam.

PINGO – Espera, Irupê. Vou com você.

NARRADOR – Mas por mais que o barquinho se afastasse da corda não podia sair dali. Nesse momento chegou outra personagem simpática e muito bonita também.

BORBOLETA – Lá, lá, lá, ri, lá, rá, lá, lá, ri, lá, ra.

PINGO – Olha outra Irupê.

BORBOLETA – Não sou Irupê, sou uma borboleta.

PINGO – Você quer ficar comigo? Estou sozinho e não tenho com quem falar.

BORBOLETA – Não posso, a vida é tão curta!! Só se vive um dia e tenho tanta coisa para fazer. A vida é curta. (e lá se foi a borboleta)

PINGO – A vida é curta, termina com o dia… Então preciso fazer alguma coisa. Já sei!!! Voltar a ver Irupê.

A História do Barquinho, 1981, Teatro Ventoforte. Na foto, os personagens Aranha e Pingo Primeiro.

Ao assistir o espetáculo O Rio que Vem de Longe, uma versão mais recente de encenação da História do Barquinho apresentada no primeiro semestre de 1999, com Krugli desempenhando a quase totalidade dos personagens, percebe-se o quanto a dinâmica da peça depende da cena para existir, e o quanto o registro escrito é insuficiente para dar conta até mesmo da ação dramática e da definição dos personagens. O trabalho dos atores, a trilha sonora e o uso dos objetos são bem mais que elementos pontuadores de uma ação determinada por uma peça escrita. Eles são a própria peça, que se desenvolve e apresenta sua história a partir dos jogos de animação e possibilidades expressivas conseguidas a partir do uso das mãos. Não seria exagero dizer a animação é o que determina a própria fábula.

Como exemplo pode-se citar o momento em que Pingo e Irupê se encontram. O texto escrito não parece deixar suficientemente clara a importância desse momento para o personagem principal, a ponto de Pingo determinar o reencontro com a flor Irupê como meta fundamental de sua existência, trabalhado na peça pelo autor e encenador como metáfora da liberdade. Dentro do contexto do espetáculo esse momento é devidamente trabalhado com música e dinâmica próprias de forma a só assim deixar clara a importância desse momento para o desenvolvimento da trama, fazendo despertar no personagem do barquinho um sentimento suficientemente forte para despertar nele um desejo de libertação.

É claro que todo texto teatral possui em si uma incompletude, que só será resolvida com a sua atualização em cena. O que se coloca a respeito da dramaturgia de Ilo Krugli é que essa incompletude se encontra ampliada pelo fato de inúmeros elementos fundamentais para a compreensão da história contada apenas existirem em cena, sem possuírem indicação ou similar dentro do texto escrito, mesmo porque, como será observado mais adiante, o espetáculo do Ventoforte não se constrói a partir do texto.

Um dos principais jogos propostos por Krugli nesta peça diz respeito ao desfile de personagens que são construídos e desconstruídos diante do público. Como exemplos, pode-se citar a personagem aranha, que é a mão do ator e diretor pintada com faixas de tinta marrom, o que é feito no exato momento em que a personagem é chamada. Toma-se o tempo suficiente para que a caracterização se complete, e nem sempre o tempo consumido nesse processo é preenchido por qualquer distração criada pela música ou pelo elenco. Outro bom exemplo é o sol, personagem que é formado pelo rosto do ator, aparecendo no rasgo circular de um folha de Papel em torno da qual se desenha o sol (em tinta azul).

Pode-se dizer que a linguagem da peça é definida pelo desfile de personagens, centrado no jogo com as mãos feito pelos intérpretes. A impressão que se tem, com bastante clareza, é a de que tanto a peça como a história do personagem Pingo Primeiro surgiu das tentativas de composição e transformação de personagens a partir do uso das mãos. O que se percebe a partir da observação do espetáculo em comparação com o registro escrito de seu texto dramático é que o que é encenado é uma outra história que contém a fábula central. Essa idéia de história dentro da história pode ser percebida com bastante clareza também em História de Lenços e Ventos, que apresenta a história de Papel e Azulzinha, mas que também conta a história da fuga dos bonecos, forçando os atores a contar uma nova história (exatamente a de Papel e Azulzinha) a partir do uso dos panos. O enredo central surge então como conseqüência da história periférica (do contexto de enunciação), e o espetáculo contém essas duas histórias, da mesma forma que pode comportar tantas outras.

Na época de sua primeira temporada, foi escrito que “o Barquinho só existe no palco”, e também que “existe […] em forma de pesquisa pura e simples da utilização dos gestos com as mãos”. Encontramos neste espetáculo, mesmo tendo em vista as inúmeras apresentações que fez ao longo de 27 anos, um claro exemplo de escritura feita no espaço, uma vez que surge a partir de uma idéia de ação e desenvolve sua história de acordo com os resultados apresentados pela pesquisa gestual. O que se lê não é capaz de antecipar em nada a experiência da vivência do espetáculo. Segundo o próprio Ilo:

“Às vezes, o que se propõe sobretudo é haver maior forma na dosagem do espetáculo do que do texto literário, porque realmente o que estamos propondo é teatro e não literatura. E isso tem se acentuado em mim, porque no fundo a forma da linguagem é o verdadeiro conteúdo do espetáculo, e eu não consigo escrever, a estas alturas um texto sem imaginar automaticamente a sua encenação, o que muitas vezes me cria problemas incríveis.”

O diretor do Ventoforte relaciona na declaração acima os conceitos de forma e conteúdo no espetáculo teatral, que poderiam ser entendidos, se tomarmos como referência os conceitos expostos por Ligia Chiappini M. Leite e Jean-Pierre Ryngaert a respeito do discurso, como focos de enunciação, instâncias dentro do contexto da obra portadoras cada uma de um discurso específico. O conteúdo se referiria ao contexto fabular, à história preexistente à sua representação (tanto teatral como literária, sendo que esta segunda é justamente o ponto abordado por Ligia C. Moraes Leite), e a forma estaria referida ao discurso que emerge da maneira como os artistas se aproximam da fábula e a transmitem ao público. A verdade é que não se pode perceber no trabalho de Krugli uma fronteira definida entre essas duas instâncias. A começar pelo fato de que tanto o texto da encenação das duas peças citadas, como também a filosofia de trabalho do Ventoforte (que parte de pressupostos artesanais para a criação de seu teatro), sugerem que a fábula não seja um dado anterior à encenação, e sim posterior a ela. Os atores, os materiais e demais recursos de encenação deixam de ser um veículo de atualização de uma fábula, para serem o esteio de onde emerge aquela. O emprego do texto dramático como ponto de partida obrigatório para a construção do espetáculo teatral é posto em questão, e no caso de Krugli as plataforma inicial passa a ser a que é fornecida pelos personagens criados com as mãos (no Barquinho), bem como pela busca da expressividade por meio do uso de tecido (como acontece em Lenços e Ventos).

Vamos encontrar também no teatro de Gerald Thomas questões semelhantes com relação ao emprego do texto: destituição da primazia do texto dramático, valorização do texto da encenação, evidenciação do contexto de enunciação no espetáculo, etc. Sílvia Fernandes analisa alguns espetáculos do repertório de Thomas, como Carmen com Filtro 2 e Eletra com Creta, e percebe nesses espetáculos a existência de fontes de enunciação partindo de elementos constitutivos da encenação como os espaços criados pela cenografia (os corredores de Eletra com Creta), luz, som, objetos, atores, dispostos em forma de superposição de elementos, apresentando um discurso anárquico, “acasos reunidos”, onde não se percebe qualquer condução da trama dentro de uma estrutura causal e diacrônica.

A metalinguagem referida por Pavis como característica nevrálgica do pós-modernismo é trabalhada com ironia cortante por Thomas em um espetáculo apresentado no teatro Carlos Gomes em 1998, com alunos formandos do curso de interpretação da CAL (Casa das Artes de Laranjeiras) e velhos companheiros do encenador (Luis Damasceno e Bete Coelho). A peça era trabalhada a partir de um texto: Graal, Retrato de um Fausto quando Jovem, de Haroldo de Campos. Apesar de o texto dramático por si só já possuir características de contemporaneidade radical (como privilégio da fonética à significação das palavras), Thomas se permite interromper a peça, primeiro com constantes intervenções de um grupo de atores que personificam a figura do encenador furioso, punindo com tabefes os demais atores quando estes não se comportavam de acordo com o esperado, e também com uma cena hilária de teste para a escolha do ator que interpretará o personagem Mefistófeles. assim também procede Krugli – embora de forma bem menos corrosiva -, com o boneco que faz “expressão corporal” para se preparar para apresentar a peça (História de Lenços e Ventos); com o ator que resolve abandonar a peça, quando o Marinheiro propõe a Pingo Primeiro que use uma âncora, dizendo: “Assim eu não brinco mais”.

Flora Süssekind se refere, em A imaginação monológica, a uma tendência à narrativização do discurso na obra de Thomas, o que o distancia da forma dramática determinada por Peter Szondi. Essa narrativização estaria evidenciada através da separação entre corpo, voz e discurso, duplicação e fragmentação de personagens. Da mesma forma, o espetáculo A história do barquinho apresenta uma estrutura discursiva que mescla os princípios dramático e épico, sobretudo sua versão mais recente em que um mesmo ator representa quase todos os personagens, determinando dessa forma a instância demiúrgica de onde emerge a situação exposta. O ator no teatro de Ilo Krugli é, em tal nível, o criador de sua história que se permite ressuscitar um personagem assassinado (Papel, em História de Lenços e Ventos).

Desenho: Fernando Sant’Anna

Há experiências ainda mais complexas do ponto de vista dramatúrgico na obra de Ilo Krugli, como é o caso do espetáculo As Quatro Chaves, que é ao mesmo tempo uma peça de teatro e uma atividade lúdica com participação direta do público infantil. São apresentados ao público quatro personagens: Joana, O Gigante, O Desconhecido, e Seu Zé. São bonecos que têm desejos de pronto revelados ao público.

Passa-se então à tarefa de realizar os desejos dos personagens com a ajuda das crianças, que preparam os filhos que Joana quer ter, o coração que falta ao Gigante, os pães que Seu Zé precisa para alimentar a prole de Joana, e conseguir uma “conhecida” para O Desconhecido. Todos os objetos são feitos e entregues aos personagens que os acolhem. Ao fim deste percurso, descobre-se que todos os presentes foram roubados e escondidos em lugares que só serão abertos com quatro chaves especiais que deverão ser encontradas e utilizadas. O público se envolve então com a tarefa de encontrar os objetos perdidos e restituí-los a seus donos. A peça é definida pelo próprio grupo Ventoforte como sendo “uma brincadeira maravilhosa”.

Neste ponto torna-se inevitável a analogia com o Mamulengo pernambucano, cuja apresentação leva o nome de brincadeira, e é marcado não apenas pelo improviso dos brincantes que desfiam loas inventadas por horas a fio, como também pela intervenção do público, que participa e interfere na brincadeira de modo a eliminar a distância entre o plano da representação e o plano real do espectador, criando um plano único e comum, que é o da brincadeira, da festa. As quatro chaves tem sua história determinada pelo público, tendo seu desenvolvimento modificado a cada apresentação, pois possui grandes lacunas que deverão ser preenchidas por crianças desconhecidas que contam essa história de infinitas maneiras.

Retornemos ao verbete do Dicionário de antropologia teatral de Eugenio Barba citado no início deste capítulo, para examinar o que o diretor italiano determina como sendo duas diferentes dimensões da trama. Barba indica a existência na trama dramática dos pólos de concatenação e simultaneidade, sendo o primeiro referente à sequência causal e linear do enredo, e o segundo referente às significações e ações concomitantes que preenchem a dramaturgia tal como a sobreposição de fios perpendiculares forma uma trama de tecido. O foco de concatenação diria respeito ao encadeamento de acontecimentos, que permitiria ao espectador perceber a evolução de uma determinada trama dentro do tempo e do espaço, ao passo que o pólo de simultaneidade diz respeito às diferentes leituras possíveis de um mesmo elemento, da complexidade de um signo colocado em cena.

Se nos detivermos sobre as obras de Ilo Krugli e Gerald Thomas, analisando-as à luz do funcionamento dos dois pólos mencionados por Barba, no que toca a seus trabalhos de dramaturgia (como o próprio Barba define: “o trabalho das ações”), o que se percebe é enfim a existência de forte simultaneidade existente em ambos os trabalhos. Em Krugli podemos notar maior proeminência de concatenação, uma vez que este se empenha em contar histórias claramente codificáveis pelo público através de suas peças, mesmo que essas fábulas não sejam narrativas anteriores à representação, de acordo com o que foi definido por Jean-Pierre Ryngaert com sendo a fabula latina. Ainda assim, encontramos na dramaturgia de Ilo Krugli uma gama vasta de elementos sobrepostos, permitindo multiplicidade de leituras. O uso do boneco, do objeto, do código gestual, já é em si uma forma de expandir interpretações, uma vez que os objetos carregam pelo menos duas identidades (o jornal é o veículo de informações, e também o herói de História de Lenços e Ventos; tiras de tecido são também a vegetação ribeirinha em A história do barquinho), podemos a isso juntar também duas das principais características do trabalho do grupo Ventoforte: a rusticidade e o cruzamento de referências culturais. A rusticidade é um canal que força o uso de material alternativo, o que acaba por fazer conviver formas construídas a partir de referências diversas, o que termina por misturar diferentes estilos e formatos, possibilitando leituras inesperadas da mise-en-scène.

O cruzamento de referências culturais é outro recurso que funciona de forma ampliadora da leitura que o espectador tem do espetáculo, uma vez que o força a criar relações entre os personagens pertencentes a contextos culturais diferentes, identificando-os dentro da trama, e percebendo suas funções. Na História do Barquinho Ilo se vale da figura de Iemanjá para caracterizar a chegada de Pingo Primeiro ao mar, seguida imediatamente por uma cena em que o barco protagonista se encontra com uma embarcação oriental, acompanhada por música característica.

Como encenador contemporâneo, Ilo Krugli busca lidar com a dramaturgia da maneira mais ampla possível, inscrevendo-a no espaço, e ampliando suas leituras. Desta forma acaba por criar um espetáculo complexo em vista da profusão de referências, embora possua clareza de comunicação e empatia direta com o público.

A gente não faz uma linguagem para ser melhor compreendido. É claro que buscamos uma clareza de comunicação, mas não uma clareza racional. O que pretendemos é criar uma possibilidade para o público acolher o recado, a imagem ou a descrição de um conflito através de uma forma poética, menos ligada a uma concepção do real muito determinada. No teatro, a realidade e os conflitos do cotidiano aparecem através do jogo poético. Não é um jornal que informa, mas um espaço que enfoca os dramas do homem.

Notas de Rodapé

(1) Uma recente retrospectiva do trabalho do grupo alemão Mümenchanz mostrado pelo canal de TV por assinatura “Bravo Brasil”, apresenta alguns sketches do trabalho do grupo, entre os quais os encontros e desencontros de dois amantes contruídos a partir dos corpos de dois atores vestidos em preto, mas cujas cabeças são ocultas, para em seus lugares se colocarem duas “birutas” cujos sacos formavam uma expressão. O movimento do ar quando do deslocamento dos atores em qualquer direção fazia com que a biruta mostrasse o rosto em direção oposta à que o ator se dirigia. Dessa forma era criada uma situação de desencontro, uma vez que sempre que os amamntes se dirigiam um em direção ao outro, seus rostos apontavam o lado contrário, fazendo com que se perdessem de vista um do outro.
(2) O comentário que segue sobre a destreza manual de Feng é atribuída ao semanário americano Seattle Weekly na home page do America Festival of the Millenium, realizado no ano de 1999, onde foi apresentado o espetáculo “The West Gate”, com Feng e sua filha Yang Xie Zheng: “A mão humana é composta por 27 ossos e 19 músculos. A destreza manual do marionetista Chinês Yang Feng é tanta, que nos dá a impressão de que ele controla cada uma dessas partes. Indepentendemente.
(3) Fonte: Bunraku home page (http://w3.one.net/~voyager/bunraku.html)
(4) Para maiores informações a esse respeito, consultar: CRAIG, E. Gordon. “On the art of the theatre”. Londres: Mercury books, 1962.
(5) Fragmento atribuído em sua íntegra a um comentário de Roland Barthes sobre o teatro Bunraku. em BARTOLI, Francesco. “La supermarioneta de Craig; préambulo del teatro abstracto”. Revista Puck no. 1. Charleville-Mézières: Institut International de la Marionnette, 1988. (p.16)
(6) Programa do evento 10 anos de Ventoforte (p.32)
(7) Idem
(8) De acordo com o exposto em AMARAL, Ana Maria. O teatro de formas animadas, São Paulo: Edusp, 1993 (Texto & Arte; 2) p. 211-30
(9) Idem (p. 31/2)
(10) Idem (p.32)

Barra de Divisão - 45 cm

Notas Bibliográficas

SZONDI, Peter. Teoria del drama moderno (1880-1850). Tentativa sobre lo trágico (Ensayos/Destino). Barcelona: Ediciones Destino, 1994. pp. 17 – 22.
BARBA, Eugenio & SAVARESE, Nicola. A Arte Secreta do Ator. Campinas: Hucitec, 1995. p. 68
FERNANDES, Sílvia. Memória e Invenção: Gerald Thomas em cena (coleção estudos; 149). São Paulo: Perspectiva, 1996. pp. 269 – 84.
JURKOWSKI, Henryk. Une ou deux visions? Écrivains et metteurs en scène. Charleville Mézières: Revista PUCK no. 08, 1995, pp. 27. pp. 269 – 84.
Roman Paska é norte americano e diretor do grupo Marionetteatern, de Estocolmo. Desde 1998 trabalha como diretor do Centro Internacional da Marionete, em Charleville-Mézières, substituindo a titeriteira romena Margareta Nicolescu.
“Considerando a associação tradicional das artes dramáticas com a palavra, temos estado pouco dispostos a qualificar nossos espetáculos após a Antigüidade como escritos. Antes, fabricados. Criados, talvez. Compostos, ainda. Pessoalmente eu prefiro a expressão, posto junto, que sugere que a escritura, para os autores de teatro de marionetes, é uma arte de assemblage.” In: PASKA, Roman. Pensée-marionnette, esprit-marionnete; un art d’assemblage” Revista Puck no. 8. Charleville-Mézières: Institut International de la Marionnette, 1995. p. 63 (tradução própria).
Idem.
Idem.
Em História do Barquinho, a brincadeira de um dos atores que abandona a peça por “não querer mais brincar” é citada no próprio texto escrito; e em História de Lenços e Ventos essa mistura ocorre de forma pouco mais complexa, durante as seqüências em que os atores buscam novos materiais após serem “abandonados” pelos bonecos, e quando estes interferem na trama, após o momento em que Papel é queimado e trazido de volta à vida.
KRUGLI, Ilo. História do Barquinho. Rio de Janeiro: Banco de peças da Biblioteca da FUNARTE.
Um argentino conquista as crianças cariocas. jornal O Globo, Rio de Janeiro, 02/12/72, por Gilberto Tumsutz.
Idem
Para Ilo Krugli, teatro é mais que infantilizar as crianças. Jornal Correio do Povo, Porto Alegre, 23/09/75, por Antônio Honfeldt
MORAES LEITE, Ligia Chiappini. O Foco Narrativo (série Princípios; 4). São Paulo: editora Ática, 1993. (6ª edição). p.90.
RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à Análise do Teatro (leitura e crítica; 1). São Paulo: Martins Fontes, 1996. pp.101-24. A respeito de como a colocação do texto dramático no teatro moderno se dá de forma diferente em relação ao modelo clássico, ver: ROUBINE, Jean-Jacques. A Linguagem da Encenação Teatral (coleção palco e tela). Rio de Janeiro: Zahar, 1982. pp. 43 – 72; e RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à Análise do Teatro. pp. 5 – 35.
Expressão usada por Silvia Fernandes em: FERNANDES, Sílvia. Memória e Invenção: Gerald Thomas em cena. p. 265.
SÜSSEKIND, Flora. A Imaginação Monológica. In: VVAA. Um Encenador de si Mesmo: Gerald Thomas. organizado por Sílvia Fernandes e Jacó Guinsburg. São Paulo, Perspectiva, 1996. pp. 281 – 95. O recurso da disjunção de corpos é mencionado por Flora também como um elemento dramatizador do espetáculo, no sentido em que permite evidenciar tensões existentes no espetáculo através de embates interpessoais, entretanto não se pode negar a tendência à narrativização deste recurso, uma vez que funciona como reveladora da instância mediadora do discurso ao operar arbitrariamente transformações nos elementos do espetáculos de forma a criar estruturas não naturais.
SZONDI, Peter. “Teoria del Drama Moderno (1880-1850). Tentativa sobre lo trágico” (Ensayos/Destino). Barcelona: Ediciones Destino, 1994. pp. 17 – 22.
Bons exemplos do que é exposto podem ser observados no espetáculo Flash and Crash Days, que apresenta um mesma personagem divida entre dois corpos que duelam – as duas atrizes em cena -, e começa com um discurso em off, onde o narrador a princípio se apresenta como um manequim, para logo após se dizer transformado em Ela: a personagem interpretada por Fernanda Montenegro e Fernanda Torres.
Esse espetáculo é analisado também neste trabalho, p.19.
Ver nota no. 2 deste capítulo.
RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à Análise do Teatro. pp. 54 – 5.
Três raras chances para conhecer a arte do grupo Ventoforte. jornal O Estado de Florianópolis, Florianópolis, 26/04/85, por Dinah Lopes.