O Teatro de Ilo Krugli

Ilo Krugli

No ano de 1984 o grupo Ventoforte completou dez anos de exist ência com a reedição de seus principais espetáculos, apresentados em algumas cidades do Brasil, entre elas o Rio de Janeiro, onde o grupo foi fundado, e São Paulo, onde se encontra sediado desde 1980. Dentre os atos comemorativos da data consta a publicação de um programa referente à temporada paulista da retrospectiva do grupo, que traz em seu corpo a transcrição de uma discussão entre os componentes da companhia. Nos diálogos transcritos é feito o levantamento dos objetivos, intenções e estruturas estéticas que caracterizam o trabalho do grupo. Desse diálogo tomou parte o diretor e fundador do grupo, Ilo Krugli, assim como muitos dos integrantes da etapa paulista de formação do Ventoforte. Trata-se de um material rico para análise do trabalho do Ventoforte, não apenas pelas inúmeras questões abordadas por Ilo e seu grupo, mas também por ser um relato feito por aqueles que são os responsáveis mesmo pela identidade do Ventoforte.

Dentre todos os participantes da conversa, avulta a presença e a opinião do diretor, autor e fundador do Ventoforte, Ilo Krugli. Não apenas pela quantidade de informação apresentada por ele com esplêndida clareza, mas também por seu caráter centralizador, de modo a fazer a discussão parecer, na maior parte dos momentos, uma respeitosa entrevista feita a Krugli pelos demais integrantes do grupo. Na verdade não seria exagero afirmar que o Ventoforte deve sua existência às idéias e capacidade aglutinadora de Krugli. Uma breve olhada nas fichas técnicas dos espetáculos apresentados pelo grupo, inclusive remontagens, indica uma grande rotatividade entre seus integrantes, sobretudo em sua etapa paulista, quando Krugli funda sua sede e teatro também como oficina de formação de atores. Para que possamos ter uma idéia mais clara do que aqui se afirma, faz-se necessário antes de mais nada analisar aspectos da trajetória artística de Ilo Krugli, para então apreciarmos os pontos principais que caracterizam a linguagem do grupo Ventoforte.

Argentino, filho de emigrantes operários poloneses, nasceu em dezembro de 1930, sendo batizado Elias Kruglianiski (I). Teve formação autodidata livre, trabalhou em Buenos Aires em oficinas de cerâmica, e em diversos ateliers de desenho e pintura. Das artes plásticas foi conduzido ao teatro, trabalhando com grupos de teatro de bonecos. Com um desses grupos, o Cocuyo, realizou a partir de 1958 viagens a lugares diversos como o norte da Argentina, Bolívia e Peru, apresentando-se em quartéis, centros de mineração e aldeias indígenas. O público preferencial do Cocuyo era infantil, e suas apresentações, de acordo com declarações do próprio Krugli, apresentavam um caráter forte de integração do teatro com a educação.

“Quando eu fazia artes plásticas já havia o envolvimento com o teatro. Desde garoto fazia teatro de bonecos, algo bem mambembe, e foi assim que me desloquei por toda a América Latina apresentando em quartéis no Peru, praças na Bolívia, Chile e daí por diante, sempre em qualquer espaço. Peças que geralmente eram dirigidas às crianças às vezes eram transformadas, apimentadas e mostradas então para soldados e público adulto em geral. Mas veja, desenvolvíamos um trabalho com crianças e adolescentes, e esse trabalho era exatamente uma integração entre teatro, artes plásticas, expressão corporal… de certa forma o teatro já era o núcleo central. Aos poucos, fazendo cenários e objetos para teatro, fui abandonando o trabalho solitário de atelier e essa talvez seja a razão maior de há sete anos me dedicar exclusivamente ao palco, onde estar é sempre uma festa.” (II)

Ilo chegou ao Brasil no ano de 1961 junto com outro integrante do Cocuyo, Pedro Dominguez. Sua intenção era de assistir à Bienal de Arte Moderna de São Paulo, e conhecer o trabalho com arte e educação realizado por Augusto Rodrigues frente à Escolinha de Arte do Brasil, no Rio de Janeiro, em que o trabalho de educação infantil combinava experimentos em diversas áreas de expressão artística como pintura, dança, expressão corporal e teatro de bonecos. O interesse de Ilo por Rodrigues advinha também de suas relações com o bonequeiro venezuelano Javier Villafañe, com quem o diretor da Escolinha chegou mesmo a trabalhar como assistente. O estilo de apresentação de Villafañe com bonecos de luva e prática de teatro de bonecos popular e itinerante tem sido até hoje uma forte influência para os titeriteiros da América do Sul hispânica, em especial da Argentina (III). Krugli trabalha como professor da Escolinha até o ano de 1975, lecionando para crianças e adolescentes disciplinas nas áreas de artes plásticas, teatro e teatro de bonecos. Ao longo da década de 60 realiza inúmeros trabalhos na área de educação, expõe trabalhos como artista plástico, inclusive nas Bienais de Arte Moderna de São Paulo nos anos de 1967 e 1969, e funda o “Teatro de Bonecos Ilo e Pedro”, com o também argentino Pedro Dominguez.

Os trabalhos mais expressivos da dupla são O Retábulo de Maese Pedro, com textos de Lorca, e Cervantes, e Ubu Rei de Alfred Jarry. Ambos os espetáculos foram dirigidos por Gianni Ratto entre os anos de 1968 e 1970.

História de um Barquinho, 1981

No ano de 1972 montou e dirigiu um texto seu escrito em 1963,História do Barquinho, formado no que se poderia chamar de “meio caminho entre o teatro de bonecos e de atores”. Ilo estava interessado em fazer um teatro cuja dinâmica fosse determinada pelos movimentos das mãos dos atores, num caminho diferenciado do teatro de bonecos tradicional. A peça foi bem sucedida, e em 1973 Ilo estava em Santigo do Chile montando a mesma peça com o grupo “Manos”. Nesse momento ocorre o golpe militar Chileno, e o diretor se vê obrigado a retornar ao Brasil em meio a uma grande depressão. “Voltando do Chile, com a sensação do drama vivido, a destruição de sonhos e de vidas, um ator de meu grupo de teatro em Santiago, que se chamava “Manos”, que quer dizer ‘mãos’ e ‘irmãos’, um ator havia morrido e também tinham morrido os sonhos e até um presidente eleito pelo voto direto do povo, um homem que disse para nós, os atores de História do Barquinho; ‘Eu também sou um menino, às vezes brinco como uma criança’. Aqui voltando eu não tinha grupo, não tinha nada, meu trabalho com o grupo que tinha criado uma escola – o NAC – tinha acabado, meu trabalho de bonecos, que era o “Teatro de Ilo e Pedro” tinha acabado, só tinha algumas poucas pessoas em volta que eram alunos, ou companheiros de aventura de vida e vivências, como o Beto Coimbra, o Caíque [Botkay], a Silvia Aderne, e assim em 12 dias nasce explosivamente, para levar a um festival no Paraná, o espetáculo, e nasce o grupo.”(IV)

O espetáculo a que a declaração de Ilo se refere foi História de Lenços e Ventos, e grupo criado a partir da montagem é o “Ventoforte”. A peça foi montada em pouco tempo para ser apresentada no Festival de Teatro Infantil de Curitiba no ano de 1974. Após o regresso do grupo ao Rio iniciou-se uma temporada extremamente bem-sucedida no Museu de Arte Moderna MAM), com a duração de 12 meses.

História de Lenços e Ventos, foto: Valdir Silva, 1974

A montagem de Lenços e Ventos não apenas determinou a fundação do grupo Ventoforte, como consolidou as experiências feitas na época do “Barquinho” relativas ao uso das mãos no espetáculo teatral, definindo uma outra forma de animação diferente da manipulação de bonecos. Uma forma que Ilo acolheu como tendo maiores possibilidades poéticas do que a animação tradicional, ampliando a possibilidade do uso da forma animada.

Faz-se necessário a partir deste momento a clara definição de alguns termos que povoarão este trabalho, e que possuem significados bastante precisos dentro da área por onde circulamos, podendo vir a ter interpretações outras em meios diversos. Para tanto, usaremos como base a terminologia empregada e citada por Ana Maria Amaral em seus livros (V), por se constituírem numa forma que alcança tanto a universalidade dos conceitos recentes de teatro de animação, como consegue identificar elementos da cultura brasileira e expô-los numa dicção própria, no que toca idioma e costumes.

Por forma animada considera-se aquilo que Frank Proschan denomina “performing object” (VI), e que não se limita a ser simplesmente boneco, máscara, objeto cênico ou “coisa animável”. A forma animada é toda estrutura inanimada (sons, objetos, luzes) inserida no contexto de uma apresentação teatral, cujo significado que lhe é conferido por meio do contexto da cena e/ou pela dinâmica do indivíduo que o anima, exerce função cênica. Podem ser antropomórficos, zoomórficos, abstratos, objetos a princípio construídos com outra finalidade (ex.: uma caneta esferográfica pode ser manuseada em cena de forma a causar a impressão de um foguete espacial; uma bola de futebol pode ser um planeta; a lamparina ostentada pelo artesão no último ato do Sonho de uma noite de verão, de Shakespeare, simboliza a lua), elementos constitutivos do espetáculo (figurino, luz, sombra, som), mas serão formas animadas sempre que o objeto revelar um significado que brotar de uma relação dinâmica com o homem, o que eqüivale a dizer que a condição de animação de um objeto está intrinsecamente conectada à figura do homem que o manuseia, denominado animador ou manipulador.

De acordo com congresso realizado pela ABTB (Associação Brasileira de Teatro de Bonecos) na cidade de Ouro Preto/MG no ano de 1979, foi determinado o termo boneco para se referir aos objetos antropomórficos e zoomórficos que são dramaticamente animados diante de um público. O boneco se diferencia da boneca, por esta segunda não possuir função dramática, mas recreativa e decorativa. O boneco usualmente possui, além da aparência que remete à forma humana ou animal, estruturas que se referem diretamente à maneira como estes serão animados durante a função teatral (luva, bastões, pegas, mecanismos de diversas naturezas), e se diferenciam do cinema de animação por sua dinâmica se dar em tempo real, estando o manipulador aparente ou não.(VII)

O modo proposto por Ilo Krugli da utilização das mãos em seu teatro, será analisado de forma mais detida um pouco mais adiante. Entretanto, pode-se sugerir desde já que o procedimento criativo notável em História do Barquinho e História de Lenços e Ventos relaciona-se com o teatro de animação, ou de formas animadas, apesar de fazer uso de elementos que não o boneco.

Lenços e Ventos foi recebido de maneira eufórica pela crítica especializada, o que rendeu ao grupo e a seu diretor diversos prêmios: Recomendação especial, conferido pela Associação de Críticos Cariocas; um dos cinco melhores do ano, pelo INACEN; Molière para Ilo Krugli (1974); Melhor espetáculo segundo o SNT.(1975); e Molière de Melhor Espetáculo (1976).

A peça conta a história de Azulzinha, um lenço azul que resolve sair do quintal onde vive levada pelo Vento da Madrugada. Com o desaparecimento de Azulzinha, surge um outro personagem, o Papel, feito de jornal, que se dispõe a procurar o lencinho para que retorne ao seu quintal. Depois de várias estripulias, Papel encontra Azulzinha prisioneira na Cidade Medieval, dominada pelo Rei Metalmau. Papel tenta entrar na Cidade, mas acaba sendo destruído por um dos soldados do rei, que o queima. Quando a história parece ter acabado de forma trágica, os atores interferem, e se valem da brincadeira do teatro para fazer um novo Papel melhorado: agora ele tem um coração de celofane protegido por um escudo de metal para o defender da brutalidade do povo medieval, e segue acompanhado por um dragão colorido formado por todos os lenços juntos. Chegando à cidade, papel derrota não o Rei Metalmau, mas sua sombra, e o dragão se encarrega dos soldados do Rei. Assim, Papel Coração de Celofane resgata Azulzinha e ambos retornam ao quintal.

A fábula da peça deixa claro o quanto se misturam o âmbito ficcional e o âmbito enunciativo. Os atores que manuseiam os objetos, apresentando ao público os personagens, não se põem em cena de forma passiva e com o único intuito de apresentar a história. Sua interferência determina os rumos do que é contado, como no caso da reconstrução do papel pelos atores após sua imolação, ou como no início da peça, em que os bonecos se fecham dentro deuma mala, deixando aos atores a tarefa de começar uma história a partir de outros elementos. Os contextos da fábula e da enunciação não correm paralelamente, mas contribuem mutuamente para a construção de uma unidade enunciativa. Ainda, a respeito do início do espetáculo, percebemos o uso dos materiais como estopim da trama. Uma história é construída e contada a partir do uso do pano como veículo expressivo, ou da vontade de usar as mãos para determinar fisicamente os personagens. A existência desses dados materiais funcionam assim como motifs dramatúrgicos, uma vez que determinam a ação fabular.

História de Lenços e Ventos, seguem-se outros espetáculos como Da Metade do Caminho ao País do Último Círculo (1975), que foi uma experiência de espetáculo apresentado em duas versões, uma para crianças e outra para adultos. Dessa forma o grupo buscava formalizar a diferenciação de linguagem entre o teatro apresentado para adultos e para crianças. “Trabalhamos […] duas versões, uma para crianças e outra para adultos. A primeira era onírica, opondo conteúdos racionais- dogmáticos, criadora e poética, […] A outra foi bem mais concreta. Neste caso, parti da estrutura infantil para a dos adultos. Mantive o tema central, a maior parte dos diálogos, mas modifiquei os climas. Procurei deixar a linguagem verbal que caracteriza em geral nosso teatro, que é uma revelação da tentativa de infantilizar (no mau sentido) nossa criança.”(VIII)

As Pequenas Histórias de Loca, com Sonia Piccinin, Paulo César Brito, Neuza Navarro, Xuxa Lopes, Ilo Krugli e Ronaldo Mota

Houve ainda espetáculos ganhadores de prêmios como Pequenas Histórias de Lorca – 1976 (IX); O Mistério das Nove Luas– 1978 (X); Sonhos de um Coração Brejeiro Naufragado de Ilusão – 1978 (XI), espetáculo baseado no teatro de Mamulengo, em que o grupo faz uso de bonecos para representação dos personagens. Em 1980, Ilo mudou-se para São Paulo para fundar a Casa do Ventoforte. Alguns dos fundadores do grupo, entretanto, permaneceram no Rio de Janeiro onde foi fundado o grupo Hombu, que passou a montar peças dentro das mesmas idéias de teatro artesanal, pedagógico, e valorizando o trabalho das mãos. O Hombu montou espetáculos memoráveis como: Fala Palhaço, Ou isto ou Aquilo (com poemas de Cecília Meirelles), e mais recentemente A Casa da Madrinha.

Instalado em seu circo-teatro-residência-escola, Ilo remontou em são Paulo suas principais peças, inclusive História do Barquinho, anterior à criação do Ventoforte.

Em Estou Fazendo uma Flor, de 1983, com textos de Javier Villafañe, Tristan Klingsor e do próprio Ilo Krugli, o palco é dividido entre o diretor do Ventoforte e o então iniciante Osvaldo Gabrieli, atualmente diretor do grupo XPTO, de reconhecimento internacional, que trabalha um híbrido situado entre o teatro, a dança e a animação de formas. Alguns de seus espetáculos mais conhecidos são: Babel Boom e Coquetel Clown. Trechos da crítica de Rui Fontana Lopes, d’O Estado de São Paulo relaciona o espetáculo com muito do que foi citado a respeito do teatro de Krugli, além de trazer a curiosidade de mostrar um momento da iniciação de um encenador consagrado.

“Os dois atores se alternam na criação de vários personagens e entidades de enredo de cada uma das estórias, conseguindo emprestar um interessante sentido de unidade e coesão ao espetáculo. A característica mais marcante da peça é a simplicidade: elaborando e recriando a linguagem do teatro de bonecos realmente popular (como nas feiras livres e no circo) e explorando às últimas conseqüências a linguagem do gesto, os atores representam e brincam numa espécie de jogo coletivo com o público, um jogo cujo propósito é encontrar as pétalas que formarão uma flor desconhecida.

O poder e a sedução que bonecos e fantoches exercem sobre o público infanto-juvenil é fantástico e misterioso. E neste espetáculo o contato vivo e próximo que as crianças estabelecem com com estas figuras, ao mesmo tempo mágicas e reais (os atores estão sempre presentes, ao alcance da mão) é extremamente estimulante. Crianças de todas as idades se aproximam dos atores-bonecos para conhecer o material de que são feitos e, talvez, para tentar descobrir o princípio que os anima.” […]

“Osvaldo Gabrieli é ainda um artista em processo de formação e amadurecimento, pelo menos em seu trabalho como ator. Mas suas qualidades garantem que encontrará um estilo e modo de ser mais completo. Ilo, em cena, é um mágico que mantém uma intimidade comovente com as mais pura poesia. Um espetáculo que merece ser visto.” (XII)

História do Barquinho, versão de 1984

As Quatro Chaves, do mesmo ano, é uma mistura de teatro e atividade lúdica com participação direta do público infantil, no qual não apenas a história, mas seus objetos e elementos são moldados por ambos, grupo e crianças. É a história de quatro personagens que possuem desejos que devem ser satisfeitos pelo trabalho criativo de todos, que devem elaborar e construir elementos de acordo com o tipo de desejo de cada um dos personagens. Após os presentes serem construídos e entregues aos bonecos que representam os quatro personagens centrais, há um misterioso furto e desaparecimento dos objetos. Surge então em cena um detetive que guia as crianças por uma série de tarefas que deverão ser cumpridas até que os desejos dos quatro bonecos possa ser novamente satisfeito. Neste espetáculo a posição da criança extrapola a condição de espectador, transformando-a em agente da ação da peça, numa estrutura aparentada da festa e do ritual, onde celebrantes encontram-se em uma posição diversa da de expectação existente no teatro convencional.

O teatro Ventoforte comemora no ano de 1999 vinte e cinco anos de existência, enquanto que Ilo Krugli festeja 40 anos de carreira. Foi planejada uma programação de cursos e espetáculos em comemoração à dupla marca, que se iniciou com uma montagem de História do Barquinho entre os meses de março e maio, com quantidade reduzida de atores em cena – Ilo representou praticamente todos os personagens -, e sob o título de O Rio que vem de Longe. A próxima peça da programação seria O Mistério das Nove Luas, mas as condições financeiras de manutenção da Casa do Ventoforte talvez não viabilizem o prosseguimento destes atos comemorativos.

Pode-se dizer que o teatro de Ilo Krugli desde o Barquinho se encontra apoiado sobre três polos: o artesanato, a educação e o ritual.

Com relação à sua busca de um teatro artesanal, encontramos o jogo das mãos – ponto de partida do artesão -, e o manuseio dos materiais. Ao começar Lenços e Ventos com a fuga dos bonecos para então apresentar sua história a partir do jogo dos atores com os tecidos, Ilo afirma através da encenação a possibilidade de se iniciar uma peça a partir de um dado material, de um pedaço de pano. Uma vez que a história emerge da existência do pano como veículo. Podemos ver com isso o teatro como peça artesanal que surge do atrito das mãos com o material disponível. Refere-se ao artesanato, também, o aspecto rústico de suas montagens (“Parece que tanto os bonecos como as figuras e os cenários, tudo, foi improvisado na hora. E quase era porque foi montado em lugares em que quase tudo devia ser montado na hora, todos aqueles panos pendurados, os bambus amarrados formando um varal.”) – (XIII). A relação entre o rústico e o artesanal deve-se ao ato de transformação in loco de materiais e elementos de cena, forçando o grupo a utilizar elementos disponíveis e passíveis de transformação. A partir dessa lógica não era dado ao grupo fazer uso de objetos prontos, construídos com exclusiva finalidade cênica. Não se encontra na cena do Ventoforte a ideia de elemento “pronto”. Tudo parece estar inacabado ou mesmo gasto, o que sugere assim que os materiais empregados se encontrem em transformação, transitando entre um estado e outro. O que se privilegia com isso é a dinâmica do manuseio das formas como ação determinante de seu significado.

Krugli, além de artista de teatro e de artes plásticas, trabalhou intensamente como educador, e mesmo suas atividades com grupos de teatro estiveram sempre atreladas a centros educacionais, como foi o caso da Escolinha de Artes do Brasil (de 1961 a 1975), a Escolinha de Arte do Aterro (de 1974 a 1975 – onde hoje funciona o Teatro de Marionetes Carlos Wernek, cujo projeto arquitetônico é do próprio Ilo e Pedro Dominguez), Centro de Arte Infanto-Juvenil do Méier (o “Centrinho do Méier”, desde 1975). Krugli declara com firmeza: “Trabalho sobretudo com teatro infantil, e num enfoque de educação.” (XIV) Essa escolha parece ter sido tomada anos antes, quando perambulava pela América Latina com seus teatros de bonecos. A vasta experiência faz de Krugli um educador infantil e pensador da educação infantil com posições bastante definidas. Acredita no teatro como veículo de educação, chamando atenção para os elementos que julga fundamentais:

“Ele [o teatro infantil] dá à criança os caminhos, e é onde o real e a imaginação se misturam. Todo espetáculo tem que ser crítico, tem que levar à percepção da realidade, ainda que o espetáculo não seja realista. […] O espetáculo tem que apresentar um trabalho visual porque as cores têm muita importância. O cuidado é imprescindível. A encenação é viva pelo elemento de sensibilidade. A criança tem que descobrir momento de vida no palco. O ator tem que ser verdadeiro para que o teatro seja verdadeiro e possa passar uma emoção clara e forte. O teatro infantil impõe que sejam apresentadas situações em que a criança se veja, e como ela é sensível às formas novas, há necessidade da busca de linguagem.”

Capa do catálogo com os textos de Lenços e Ventos e História do Barquinho, 1987O teatro para crianças professado por Krugli precisa evidenciar uma relação forte entre o dado poético e a realidade de forma a participar da construção da visão de mundo do jovem espectador. Ao se deparar com circunstâncias reais mostradas por meio do jogo teatral, a criança estaria na situação de formular criativamente suas opiniões e posturas diante da realidade, tendo no teatro não uma voz que determina condutas, mas que formula questões dentro de uma circunstância de jogo. Um bom exemplo da preocupação de Ilo Krugli em mostrar “momento de vida no palco” está nos meios de que Papel se vale para combater o Rei Metalmau. Ele sabe que não pode enfrentar sozinho a cidade Medieval, e que não pode se revelar como é, porque isso significaria sua destruição, e portanto protege seu coração de celofane com um escudo de metal. Sem sua dissimulação diante dos guardas não seria possível sua entrada para resgatar Azulzinha

CARTAZ – Quem é você?

PAPEL – Papel Coração Celo… quase que eu digo; Papel Coração de Metal (FALANDO BAIXINHO PARA O PÚBLICO) Mentira, meu coração é de papel celofane mesmo.”

O combate final de Papel, que é feito com a sombra do Rei Metalmau, e não com o próprio Rei, também se refere ao reconhecimento das limitações do personagem, que deve usar seus próprios recursos para vencer a batalha.

O encontro entre o elemento artesanal e o educacional no teatro de Ilo Krugli se dá no fato de que as informações dispostas em cena precisam ser completadas pelas crianças espectadores. Há nos espetáculos a preocupação de estabelecer o jogo, elemento a partir do qual descobertas são possíveis, fazendo uso de: “elementos imaginativos, de forma desmistificadora, de modo que a criança assista a um espetáculo como um acontecimento criador, no sentido original da palavra.” (XV)

Dessa forma o espetáculo é moldado, trabalhado pelo espectador que se coloca também na posição de artífice da trama. A esse respeito, sobre a peça História de Lenços e Ventos, Krugli coloca:

“Apesar de eu ser contra os debates em palco com as crianças, a participação delas no espetáculo propriamente dito, temos apelado a elas para discutir o enredo dos nossos teatros. Isso é incongruente? Não, porque nas experiências de nossa escolinha de arte, por exemplo, a criança recebe um espaço completamente aberto, livre de qualquer elemento, que ela constitui como seu e o adorna à vontade. Ela o constrói e depois o destrói, se for necessário. [..]

Ora, tentar integrar no espetáculo uma criança é impingir-lhe uma situação dada, e contra isso nos colocamos. Daí porque não debatemos o espetáculo com elas, mas discutimos a maneira mesmo de construí-lo, de resolvê-lo. Por exemplo: como Folha de Jornal Impresso entrará no castelo para salvar a heroína? Pelos fundos? Não, ele entrará pela frente, disfarçando seu coração de papel de celofane com uma camada de latão. Mas a criança vê o disfarce, assume uma posição crítica ante o fato, conscientiza-se de valores básicos da sociedade humana (e não de um sistema determinado, o que seria então perigoso), algo universal, pois.” (XVI)

Reafirma-se com essa declaração a intenção de Ilo Krugli de e valer do teatro como um meio pelo qual a criança constrói sua visão de mundo. Os valores com que o diretor/autor trabalha possuem um caráter ético pontual, desvencilhados de uma contextualidade histórica, evitando assim o perigo citado do enquadramento em uma determinada corrente de pensamento circunscrita a contextos temporais e políticos. Ao evocar “valores básicos da sociedade”, Ilo procura abordar questões basais que possam servir de esteio na formação de uma visão de mundo global.

O teatro de Ilo Krugli sempre terá um caráter educacional. Durante a temporada de 1999 de História do Barquinho, apresentada na Casa do Ventoforte sob o título de O Rio que vem de Longe, o grupo abria o teatro uma hora antes do início da peça, e recebia as crianças para uma “oficina de barquinhos de papel”. Nesta oficina os barcos eram feitos pelas crianças a partir de dobradura, e depois postos a navegar em tanques e piscinas cheias de água espalhadas no gramado interno diante do teatro. Os atores e dinamizadores da oficina perguntavam às crianças “Que tipo de barco é esse?”, “Por que seu barco navega dessa maneira?”, “Qual o nome do seu barco?”. Desta forma buscava-se aproximar a criança da experiência vivida pelo protagonista da peça, permitindo-a criar associações a partir da observação do espetáculo.

A relação entre teatro e educação presente no trabalho do Ventoforte, que se pode verificar existente durante os seus 25 anos de existência, surgiu da experiência com as aulas de artes para crianças em espaços como o “Centrinho do Méier”. As experiências na área de educação vivdas por grande parte do grupo, conduziram a uma construção da cena que solicita a participação do espectador, criando desta forma um duplo envolvimento da criança, que passa a ser não apenas espectador do teatro, mas também participante e elaborador da própria peça. Deixa de ser parte da audiência para ser celebrante do evento teatral. Essa relação lembra bem de perto a que se pode notar nos festejos populares e nos rituais. De fato Krugli foi responsável por diversos eventos ocorridos nos centros de educação em que trabalhou trabalhando com elementos de festa popular. Alguns possuíam nomes sugestivos como: “Festa do Dois”, “Festa do Três”, “Festival dos Ventos”. Pode-se inclusive sugerir que tal estrutura espetacular possui conexão com o jogo infantil, uma vez que a realidade e a ficção são misturados em uma estrutura participativa e dinâmica.

Lúdico e ao mesmo tempo ritual, a transformação do espectador em celebrante se pode ver em manifestações artísticas como o Mamulengo Pernambucano, em que o jogo dos bonecos não é possível sem a participação dos espectadores que dão o tema para o improviso do boneco, ou que servem de interlocutores ativos (ou seja, não apenas ouvem o que lhes diz o boneco, mas respondem a esse, sem que haja qualquer preocupação em seguir um roteiro pré-estabelecido) – (XVII). Dentro de um contexto contemporâneo, mas igualmente brasileiro, há os trabalhos de Amir Haddad, frente ao grupo “Tá na Rua”, apresentando eventos de relevância social; e o de José Celso Martinez Corrêa, como diretor da “Oficina Uzina Ozona”, realizando espetáculos próximos aos rituais bacantes, buscando do espectador uma participação como celebrante próxima ao delírio e ao transe extático.

A participação do público, o elemento artesanal e o uso das mãos dando novos significados a objetos genéricos, evocam elementos míticos, tais como os objetos religiosos de poder que são ungidos com as mãos para ganhar em meio ao ritual um significado transcendente. O espetáculo se pretende comunhão coletiva, trocando o teatro como produto final apresentado a uma audiência passiva, por uma festa popular construída ao mesmo tempo por atores e espectadores. A diferença entre público passivo e celebrante se encontra diluída. A respeito de outro aspecto ligado ao caráter ritual/lúdico da forma de teatro do Ventoforte, segue a transcrição de trechos de críticas a História de Lenços e Ventos:

“Um dos pontos altos do espetáculo é o momento em que um pedaço de papel de jornal, que todos fomos convencidos a aceitar como um personagem chamado Papel, é imolado numa fogueira. Todos nós sofremos no própria carne a morte deste pedacinho de papel magicamente transformado em personagem. Mas a maneira poética pela qual essa morte é cenicamente proposta faz com que o sofrimento não se transforme em desespero: o personagem Papel morreu queimado, mas antes disso já vimos que basta um novo pedacinho qualquer de papel para criar um novo personagem chamado Papel. Tão querido quanto o primeiro Papel. Tão querido quanto o lencinho- personagem chamado Azulzinha.” Yan Michalski; Jornal do Brasil, 1974

“Lenços, atores e crianças – simbolizados por um lindo dragão colorido a que se dá vida em cena num inesquecível momento de dança e música – enfrentam e derrotam os soldados da tirania. ‘Azulzinha’ é resgatada: triunfam a justiça, a liberdade e o amor. Todos podem voltar aos quintais e o jogo está pronto para recomeçar.” Rui Fontana Lopes, O Estado de São Paulo, 1981 (XVIII)

A partir dos fragmentos de críticas acima, pode-se supor uma questão que relaciona espetáculo, ritual e jogo para além do duplo envolvimento do público entre espectador e celebrante. Portanto vejamos: uma imagem recorrente tanto a festejos populares como a rituais religiosos é a do círculo, que representa o caráter cíclico da verdade mitológica, sempre tornando a acontecer no momento do rito. Celebrações religiosas e jogos de folguedos partem igualmente do círculo, usando-o como representação do mundo e idéia de retorno constante. Dessa mesmo forma o espetáculo sugere uma realidade ficcional e cíclica (uma vez que é apresentado mais de uma vez), sendo que no caso de “História de Lenços e Ventos”, há a evidenciação de questões como a da recriação da vida dentro de um contexto fabular (o personagem é revivido pela própria constituição poética da peça).

ATORES – E agora? Queimaram o Papel. A Azulzinha ficou lá na cidade. E o quintal     ficou sem cores, sem lenços.

(Um dos atores fala com a mala de bonecos)

– Estão vendo? Tudo por culpa de vocês. Se não fossem vocês nós teríamos aqueles espetáculos bonitos e fizemos esta história triste. Tudo podia ser mais alegre

– Você acha que é tão triste?

– É sim, porque o Papel foi destruído e não sabemos como vai ser o final.

– Eu acho que a história acabou (ao público) podem ir embora. Assim desse jeito acabou. E não é a primeira vez que uma história acaba desse jeito.

– Mas quem é que está inventando esta história? Não somos nós?

– Quem foi que fez o papel? Não foi a gente?

– É, eu dobrei o Papel.

– Eu pintei os olhos e a boca.

– Então traz os jornais e vamos fazer um papel muito melhor, muito mais forte.

Um dos espetáculos que mais solicita a participação do espectador como celebrante talvez seja As Quatro Chaves, que era uma peça-evento onde as crianças fabricavam presentes para quatro personagens, e depois tinham a tarefa de recuperá-los após serem surrupiados por um ladrão. Sobre a recepção desse espetáculo por parte do público, comenta a atriz Selma Bustamante:

“…tinham crianças que se perguntavam, estou fazendo teatro? Estou no teatro? O teatro já começou? Até que ponto estou fazendo ou assistindo?” (XIX)

O trabalho artesanal no caso desse espetáculo assume uma importância muito grande, pois é o veículo da brincadeira, a magia ritual em que objetos e bonecos ganham vida e novas significações.

O que se depreende do que se apresentou é que os três pilares do trabalho de Ilo Krugli junto ao Ventoforte se encontram fortemente imbricados uns nos outros, e que poderiam mesmo em termos genéricos serem reduzido a apenas um: o aspecto artesanal. O artesanato cria um espaço em construção propício para o teatro ligado à educação nos moldes professados por Krugli, e apresentam o jogo com os objetos em sua dimensão ritual.

Notas Bibliográficas

(I) Fonte: FUNARTE
(II) “Ilo Krugli; Histórias de fogo, paixão e ódio” Jornal de Brasília (DF), 15/03/81. Entrevista dada a Geraldinho Vieira
(III) Sobre isso ver em: AMARAL: Ana Maria. “Teatro de bonecos no brasil”. São Paulo: COM-ARTE, 1994. ps.27-47
(IV) Programa do evento 10 anos de Ventoforte (p. 34)
(V) AMARAL, Ana Maria. O teatro de formas animadas, São Paulo: Edusp, 1993 (Texto & Arte; 2) e AMARAL, Ana Maria. Teatro de animação. São Paulo: Ateliê Editorial, 1997.
(VI) PROSCHAN, Frank. The Semiotic Study of Puppets, Masks and Performing Objects. Semiotica, Vol.47, 1983.
(VII) Poder-se-ia trocar o termo “em tempo real” por “ao vivo”, mas a intenção é deixar o mais claro possível a diferença entre teatro de bonecos e cinema ou vídeo de animação, e não desconsiderar animação de bonecos quando ocorre a partir do cinema ou do vídeo como veículos da performance.
(VIII) CORREIO DO POVO; Porto Alegre, RS. “Para Ilo Krugli, teatro infantil é mais que infantilizar a criança” por Antônio Hohlfeldt, 23/09/75
(IX) Eleito por dois anos seguidos (1976 e 1977) como “Um dos cinco melhores do ano” pelo S.N.T., prêmio da Imprensa de Porto Alegre (1976), e quatro indicações ao Mambembe no Rio e em São Paulo nas categorias: direção, figurinos, música, direção e produção.
(X) “Um dos cinco melhores do ano de 1977”, pelo S.N.T., prêmio Mambembe/RJ (1978) nas categorias: direção, cenário, figurino, iluminação, prêmio Mambembe/SP de personalidade do ano para Ilo Krugli, e “Melhor espetáculo Infantil do ano de 1979, conferido pela Associação Paulista de Críticos de Arte.
(XI) Prêmios “Títere de Ouro”, do 1º Festival Internacional de Bonecos de Artigas, Uruguai, 1979 e prêmio Mambembe/RJ (1979) nas categorias música e figurino.
(XII) “Intimidade comovente com a poesia”, crítica de Rui Fontana Lopes publicada n’O Estado de São Paulo
(XIII) Programa comemorativo dos 10 anos do Ventoforte, p.3
(XIV) Para Ilo Krugli, teatro infantil é mais que infantilizar as crianças. Correio do Povo, Porto Alegre (RS), 23/09/75; por Antônio Honfeldt.
(XV) Mesmo que nota 4.
(XVI) Idem.
(XVII) O que eu sei sobre o Mamulengo vem preferencialmente da minha relação com o mestre Zé de Vina, a quem acompanhei em apresentações aqui no Rio em 1998, mas pode-se citar o Hermilo Borba Filho, que possui dois livros publicados sobre o mamulengo, abordando questões semelhantes à que exponho.
(XVIII) Fragmentos publicados no Programa de 10 anos do Ventoforte.
(XIX) Programa de 10 anos do Ventoforte, p.22.