O título do tema que me coube, exige de saída que se definam certos limites. A realidade atual do teatro infantil na Guanabara está aí apenas para situar, em linhas muito gerais, o assunto. Mas é fundamental dizer que não pretendo esgotá-lo (e nem seria possível), de modo algum, nem apresentar indicações ou soluções para os problemas levantados. Mas, apenas, ajudar a colocar dúvidas e perguntas, provocar um debate franco sobre o que vem sendo feito em uma cidade brasileira como o Rio no setor do teatro infantil. E levantar esse problema a partir de uma conversa que é muito mais um depoimento pessoal de observadora, do que qualquer teorização ou testemunho de quem faz esse teatro. Eu não faço teatro, não sou pedagoga, não sou socióloga, não sou psicóloga. Tive uma formação em literatura e linguística e acabei no jornalismo. Minha relação com o teatro é de espectadora. Gosto muito de teatro, sempre me interessei muito por teatro. E me preocupo muito com crianças. Por causa disso, acabei fazendo as críticas dos espetáculos infantis no Jornal do Brasil, uma coluna pequena, com pouco espaço, sempre ameaçada em potencial pela crise do papel, mas, enfim, a única seção de jornal que existe hoje no Rio inteiramente voltada para esse setor. Bom, o que aconteceu foi que por causa disso eu venho fazendo semanalmente, há dois anos, a indicação do que há de melhor em cartaz, com um comentário crítico (e ás vezes um veemente aviso para fugir correndo de determinados espetáculos).
Ou seja, tenho visto peças infantis como ninguém. Possivelmente, no ano passado, eu assisti a mais espetáculos para crianças do que qualquer um de vocês aqui. Sinceramente, não me invejem. Vocês não fazem ideia do que possa ser isso. Basta citar alguns números. Só no ano passado, foram apresentadas na Guanabara 81 peças infantis, contadas pelos anúncios publicados no Jornal do Brasil, sem levar em consideração apresentações em colégios, churascarias, etc. Por si só, o número de 81 peças em 52 fins de semana é eloqüente. Deve atestar a existência de uma grande vitalidade no teatro infantil carioca. Ou então, deve ser o sintoma de graves problemas o que me parece bem mais provável. Ainda mais, se levarmos em consideração que, dessas 81 peças, 18 foram montadas pelo mesmo grupo, e foram de péssima qualidade.
Comprovando a veracidade do levantamento feito, e dando uma ideia, ainda que precária, do tipo de peças que estão compondo o acervo teatral da infância carioca, vale a pena citar os títulos dos espetáculos que se apresentaram em 1974 para as crianças do Rio. A ordem de citação é apenas a ordem em que os anúncios ocorreram, do início ao fim do ano, nas páginas de serviço do JB, e não implicam em nenhuma hierarquia ou critério de valor: A margarida curiosa visita a Floresta Negra. Lili, Beleléu existe mesmo, O boi e o burro no caminho de Belém, Branca de Neve e os sete anõezinhos, Pinóquio, o boneco de pau, As aventuras da patinha Tirintintim, Joãozinho e Maria na casa da bruxa, O soldadinho e a boneca, A Gata Borraleira, As reinações de Monteiro Lobato, Chapeuzinho Vermelho, Expedição ao castelo do Príncipe Amigo, Dois perdidos num dia de sol, Ninguém segura esse rato, Gasparzinho, o fantasminha camarada, Os três porquinhos, Quem quer casar com Dona Baratinha?, A onça e o bode, O sucesso da era do rock, No mundo da Lua, O palhacinho da loja ABC, Mistério no Reino de Catirimpimpim, Senhor Rei, Senhora Rainha, O soldadinho de chumbo, As aventuras de um rei comilão, A salada, O embarque de Noé, O gato o rato e a pantera cor de abóbora, As aventuras de Pernalonga na floresta do Lobo Mau, A onça e o lobo em ritmo de aventura, Dom Gatão sem dom Ratinho, Circo Quiquinha, O pato astronauta, O gato playboy, O corujinha, Três peraltas na praça, Leleco, o coelho sonhador, Histórias de lenços e ventos, As incríveis aventuras dos Três Mosqueteiros, O biombo mágico das maravilhas, Tribobó city, Deixem o coelho em Paz, Nem tique nem taque, Gran Circo Gonzaga, Joãozinho e Maria contra o Pirata da Perna de Pau, Bente que bente o frade, O Jogo da caça ao pássaro. O mágico de Oz, A cigarra e a formiga, O desaparecimento de Pluto, O peixinho dourado. O Mamamúchi, Festival de palhaços, O jardineiro do Rei, Bigorrilho e a Princesa de Ouro, Dorotéia, a bruxinha rebelde, Dois palhaços sem circo, Perlim o mágico, contra o bruxo Malik, O Lobo Mau que virou mingau, Bruxarias de Gregório e Matilde, Roboneta: o planeta dos robôs, Peripécias de Emília, Diabruras do Saci na Transamazônica, Você tem um caleidoscópio?, Um reizinho em perigo, Pluft, o fantasminha, Sabinho no mundo dos objetos falantes, A bruxinha de minissaia, O anel mágico, Brincando de brincar, A casa das bonecas, Borboletinha superstar, O tesouro do rei, Os desastres de BruxoUna, A bruxinha que era boa, Alice no país das maravilhas, Papai Noel e o seu mundo encantado, O burrinho avançado, Apenas um conto de fadas, A história do nascimento do Menino-Paz. A lista inclui três espetáculos que só se apresentaram em Niterói e Nova Iguaçu mas, que de qualquer modo, abrange o Grande Rio. E, se incluísse também montagens esporádicas em pequenos auditórios de colégios, ou em clubes e churrascarias, seria ainda bem mais extensa.
Como se vê, é grande a variedade, além da grande quantidade. E há alguns fenômenos estranhos nessa proliferação de montagens para crianças. Há estreias que são promovidíssimas, com esquema profissional de divulgação em seu lançamento, ficam duas semanas em cartaz, desaparecem misteriosamente, voltam daí a três ou quatro meses em outro teatro – e às vezes até com outro título – levam mais três semanas, saem… Enfim, não deve ser tão tranquila a carreira dessas produções. Ao mesmo tempo, sabe-se que há grupos que montam seus espetáculos exclusivamente para ganhar dinheiro. E ganham. Eu acho que uma das coisas que vamos ter que discutir aqui é justamente isso: o lado comercial disso, como funciona o mecanismo do mercado, um problema fundamental da prática do teatro e que tem que ser considerado. Eu não faço teatro, não conheço isso de dentro, mas creio que o problema tem que ser encarado seriamente e gostaria de vê-lo discutido nos debates após esta conversa.
Dentro do panorama geral dessas 81 peças, tentei fazer uma análise qualitativa. A tendência natural seria supor que essa massa de espetáculos se disporia segundo uma curva de Gauss, com algumas montagens muito boas, uma maioria de razoáveis ou medíocres e algumas muito ruins. Na prática, isso não ocorreu. Houve uns poucos espetáculos excelentes, um pequeno número de medíocres e uma enxurrada de lixo teatral. Mas esse tipo de classificação não basta para dar uma ideia do quadro geral de nosso teatro para crianças. Há nuances e diferenças que agrupam certos subtipos de peças, cuja distinção se faz necessária.
Em primeiro lugar, surge uma categoria muito definida e ilustrada por raros espetáculos – seria mais ou menos o equivalente a um teatro clássico para crianças, encenando de maneira tradicional, mas extremamente séria, trazendo aos palcos textos já consagrados por sua qualidade indiscutível, com inegável nível de teatralidade, em seus menores detalhes. Essa tendência é tipicamente pelas montagens do Tablado. Todos os espetáculos de Maria Clara Machado sempre se caracterizam pelo extremo cuidado, pela feitura teatral de alta qualidade, pela convivência com o texto, que se sente que foi prolongada, profunda… Geralmente se faz a Maria Clara a crítica de não estar se renovando, mas acho que ela cumpre perfeitamente o papel que escolheu para si – apresentar peças infantis de qualidade inegável, a partir de bons textos, com muita seriedade e muito entusiasmo pelo teatro infantil. Realmente, as três peças que ela apresentou no ano passado foram remontagens. Mas não me parece que ela esteja se propondo a novidade e a vanguarda. Esse papel de representar o clássico no nosso teatro infantil, ela vem desempenhando, e muito bem.
Além dessa primeira categoria nítida, há várias outras. E houve também este ano um acontecimento que eu considero excepcional, que foi o trabalho do grupo do Ilo Krugli. A consagração do público e da crítica foi total (ele estava me dizendo outro dia que sua História de lenços e ventos já foi vista por 25.000 pessoas) e o reconhecimento da qualidade do que ele vem fazendo é uma coisa que não admite discussão. Eu confesso que isso me assusta um pouco, pela responsabilidade que joga nos ombros de Ilo e de seu grupo. De certo modo, fica todo mundo esperando que o próximo espetáculo seja tão bom quanto ou melhor ainda, num tipo de expectativa que força comparações e que, ao mesmo tempo que mitifica, muitas vezes se prepara para derrubar o mito na próxima esquina, dando-lhe a obrigação de satisfazer a certas categorias ideais – algo não muito distante do que ocorreu com Maria Clara Machado que, após um reconhecimento unânime, passou a uma pichação generalizada. Não pode é haver dúvidas de que o espetáculo do Ilo foi um marco, apesar de uma ou outra restrição que se possa fazer aqui ou ali. Foi da maior importância ter existido agora, e dessa forma, essa História de lenços e ventos, porque, de repente, fomos todos obrigados a ver que o teatro infantil carioca não é mais apenas Maria Clara Machado. O trabalho do grupo do Ilo se tornou o símbolo vivo disso. Um símbolo muito cheio de vitalidade. Acho muito importante compreender que há diversos caminhos, que cada um procura o seu, a sua maneira própria de se expressar, de pôr para fora uma pressão interna. Se for algo de real qualidade artística, vai ter seu lugar.
Estou insistindo muito nisso, porque às vezes há posições que defendem determinadas tendências, procurando excluir as outras. E isso nos introduz a outro tipo de peça, que esteve muito em foco há algum tempo, uns dois anos. Agora parece que ficou meio démodé, já que, como vocês sabem, nisso também tem moda. Agora e expressão corporal, luz negra, acrílico. Há uns dois anos atrás, era o teatro de participação. A criança tinha que participar fisicamente da feitura do espetáculo. A participação emocional não era levada em consideração. Um pouco como se uma das funções do teatro fosse formar torcedores, levar as pessoas a tomar partido e gritar por ele.
Hoje em dia eu não conheço nenhum grupo sério trabalhando no Rio e que ainda dê ênfase a esse tipo de teatro. Os grupos puramente comerciais aprenderam a fórmula, e usam e abusam dela, confundindo participação com delação, correria, gritaria, histeria coletiva, enfim, uma exarcebação gratuita de sentimentos. Posso parecer muito radical, mas considero isso muito perigoso e, em alguns casos, meio criminoso: jogar uma porção de estímulos em cima da criança e, depois, de repente, acabar o espetáculo, mandá-la embora e deixá-la sair num estado de excitação absoluta, sem saber o que fazer com aquilo tudo que veio à tona. Essa participação de correria e gritos é desorientada, baseada em perguntas do tipo para onde foi? cadê Ele? incentivando a delação e o suborno já que, em muitos casos, os atores prometem dar coisas às crianças em troca de informação.
Nessa linha do teatro de participação, esse é o extremo comercial. Há também outro tipo. Só estou trazendo o assunto para discutir aqui, porque eu quero que a conversa seja muito franca e polêmica. Sei que o tema é delicado, mas acho fundamental que quem faz teatro para crianças se interrogue sobre isso. Esse novo tipo é constituído pelos grupos que fazem um trabalho muito bem intencionado – e raramente resolvido. Em vez da gritaria e da correria, o esquema é outro. A peça vem se desenvolvendo e de repente, para. As crianças são chamadas ao palco para brincar de roda (talvez 70% dos casos), imitar trenzinho, fazer bandinha. Quebra-se o ritmo do espetáculo, interrompe-se o que vinha se desenvolvendo, para brincar de participar, porque participar é trazer a criança para dentro do espetáculo.
Depois, acaba a hora do recreio. As crianças voltam a seus lugares e o espetáculo continua. Os grupos que fazem esse tipo de trabalho, apesar das boas intenções, não estão preparados para incorporar uma participação real e efetiva da criança, para deixar que ela modifique o curso do espetáculo e não sabem o que fazer se isso ocorrer.
A propósito de participação, vale ainda mencionar uma experiência distinta – sobre a qual, aliás, o Pepe vai poder falar em mais detalhes, seja hoje nos debates, seja depois de amanhã em sua palestra. É o trabalho de um grupo que foi o único sério, no Rio, a procurar levar essa linha adiante de uma maneira consequente e responsável.
Talvez tão responsável que acabaram desistindo de fazer esse tipo de trabalho. Estou me referindo ao grupo Tribus. Eu acho que vale a pena que o Pepe, embora não tenha chegado a fazer parte do grupo, mas porque o acompanhou de perto, conte essa experiência, os impasses a que eles chegaram, enfim explique porque eles acharam melhor fechar para balanço, se separaram para estudar mais. Agora, aliás, uma das antigas integrantes do grupo está trabalhando num centro de criatividade infantil, coerente com sua posição de que o que eles estavam fazendo se aproximava mais do jogo dramático do que do teatro. Essa ruptura revela um grau de honestidade em assumir dúvidas e não usar as crianças como cobaias e deve ser respeitada – inclusive porque os resultados que eles obtiveram em seu trabalho foram, do que já vi, a coisa mais perto de um equilíbrio entre a participação da criança e a manutenção do sentido do espetáculo. E apenas para lembrar e prestar uma homenagem, faço aqui um parêntese para lembrar uma experiência mais antiga, de mais de dez anos, que tentou fazer isso e chegou bastante perto. Não lembro o nome do grupo. Trabalharam no Teatro de Arena da Guanabara, no Largo da Carioca, montando uma peça de Nelson Lins e Barros, chamada O dragão e a fada, que fica aqui como uma indicação de texto para quem vive às voltas com esse problema. Foi a primeira vez que eu vi essa tentativa de incorporar a participação da plateia infantil numa peça, com possibilidades de influir diretamente na solução do conflito.
Outro tipo de espetáculo muito nítido no Rio ultimamente é um pouco surpreendente, talvez, para teatro infantil: a superprodução. Montagens como O jardim das borboletas, Beleléu existe mesmo, Lili, Roboneta, O gigante egoísta, tiveram elenco profissional, música profissional, enfim, uma fuga aos padrões improvisados da maioria das produções para crianças. Esses espetáculos atestaram uma ousadia em investir tempo, dinheiro e profissionalismo numa peça infantil, um respeito pela qualidade artesanal do espetáculo, a ausência de qualquer economia falsa ou mesquinharia que fizesse negar às crianças os cuidados de uma produção normalmente (destinada aos adultos. A presença de atores e técnicos profissionais nessas montagens só veio acentuar essas características e merece ser registrada e incentivada. Ainda mais por quem acha, como eu, que teatro para crianças devem ser profissional quanto qualquer teatro.
Há ainda vários outros tipos de espetáculo e queria me deter um pouco em uma praga do teatro infantil carioca: a montagem puramente comercial. Temos, no Rio, pelo menos três ou quatro teatros que se especializam nesse tipo de peça para crianças. De tal modo que, quando um grupo mais sério faz temporada neles, encontra um público de bairro ou de quarteirão totalmente viciado, e há um choque que pode ser sério (como a montagem de Senhor Rei, Senhora Rainha no teatro da Praia atestou). Seriam o Miguel Lemos, o Teatro de Bolso, o da Praia e, numa certa medida, o Teresa Raquel. Esse tipo de peça geralmente é muito simples: ou readapta uma história infantil (e vamos já discutir como isso é feito), ou então procura inventar uma história nova. Rigorosamente, obedece ao mesmo esquema: um herói bonzinho mas desobediente, ajudado por um amigo, vai aprender a ter disciplina, escovar os dentes, fazer os deveres de casa, etc. Pelo meio, o falso didatismo se manifesta em aulinhas (pedir taboada à plateia, perguntar capitais). São jogados diante do vilão, mas não há nenhuma relação direta entre essa situação e o comportamento deles, a não ser a desobediência a uma ordem, quase sempre sem sentido. O amigo consegue trazer auxílio, o vilão (geralmente, o lobo) é imobilizado mas não é castigado. Na grande maioria das vezes, “se arrepende” e promete ficar bonzinho, sem nada em todo o comportamento anterior que explicasse porque era mau ou porque ficou bom. Aí entramos em um aspecto muito grave da maioria dos textos de teatro infantil – e não só encenados na Guanabara, mas também concorrendo a concursos, etc. É a de que a criança não pode ser assustada, não pode ter problema, tem que ser colocada numa falsa redoma, é inocente, é meio debilóide… Não pode ser posta diante de um conflito. Então, o conflito é atenuado. Pessoalmente, como espectadora que adora teatro, acho que teatro, em grande parte, ainda é conflito, tensão, dilema, opção, tomada de decisão e de atitude, de ação. A partir do momento em que esse conflito desaparece, em que os personagens não escolhem, o sentido da peça fica diluído. Pica algo vazio, um vasto significado sem significado algum, uma coisa oca, que só significa sua própria vacuidade, o inexistente, a ausência de problemas em jogo. É uma coisa profundamente triste e frustrante, e é o antiteatro, a falta de vida, um espetáculo que não dá à plateia nada para viver e se emocionar. Às vezes a atenuação do conflito é levada a extremos altamente perturbadores, sobretudo nas adaptações de histórias tradicionais. Como o caso dos bruxos sádicos que, no fim, tiram a máscara e revelam que eram os pais das crianças e estavam fingindo de bruxos por amor, para dar uma lição. Ora, se tantas gerações de crianças viveram profundamente esse mito, se essa história adquiriu uma dimensão de mito, é porque ela fala alguma coisa muito profunda, de todos nós, e tem que ser respeitada. Ou se respeita ou se escreve uma nova história, mas não se pode ficar mexendo com isso, diluindo os mitos, mudando sua estrutura, mas mantendo os mesmos personagens. Isso é um desastre, e a Mônica vai poder falar, depois, sobre o lado psicológico desse tipo de procedimento.
Esse é um aspecto sério das peças infantis. Não exatamente do texto, mas do enredo. Texto tem muita coisa mais. E, de qualquer modo, o texto ainda não é o espetáculo. É possível que se possa fazer um bom espetáculo, com um texto fraco. Mas, um texto bom ajuda tanto que eu acho que não vale a pena nem perder tempo com um texto fraco. Às vezes eu me pergunto vendo uma montagem de um texto horrível que não é produzido pelo próprio autor: “Como é que duas cabeças diferentes conseguiram se interessar por isso?” E, a partir dessa reflexão, eu gostaria de lançar aqui para debate uma pergunta a ser respondida: quais são os critérios pelos quais um grupo que faz teatro infantil seleciona seus textos? É só aquilo que está à mão? É uma responsabilidade muito grande. Como é feita essa seleção? Será que em algum momento, quem escolhe se pergunta qual o significado desse texto, dessa situação, desse personagem, dessa luz, desse ritmo, dessa cor, dessa música, disso que está sendo feito? Nenhum desses elementos é gratuito ou sem significado. “Qual o sentido do que eu estou fazendo?” É uma pergunta fundamental e creio que, às vezes, ela não é feita.
Com o lançamento dessa pergunta, encerro a primeira parte da palestra. Seria bom que, saindo dos limites da Guanabara, aproveitássemos para discutir a prática do teatro infantil brasileiro, do texto ao espetáculo, montagem, trabalho de ator, dificuldades na formação do ator (e na informação do ator, tantas vezes), problemas concretos da produção de um espetáculo, tanta coisa que precisa ser discutida enquanto estamos todos juntos. Por isso, acho melhor passarmos aos debates. Antes, porém, dou a palavra a um autor de teatro infantil, premiado na Guanabara e no concurso de textos aqui em Curitiba, que é o Benjamim Santos. Ele não pode vir, mandou um documento e pediu que eu o lesse, meramente como porta voz: é um relato de sua experiência real em fazer teatro para crianças na Guanabara.
“Imposibilitado de comparecer e participar deste Congresso, aproveito para lhes enviar os meus desejos de que as discussões, conferências e conclusões sejam todas em função de nossa necessidade comum de criar um Teatro Infantil cada vez mais sólido e belo e dinâmico, como exige o seu público específico.
Acredito que os principais aspectos do tema central serão discutidos e que certamente algo mais se esclarecerá e poderemos penetrar um pouco mais fundo esse emaranhado de conflitos e questionamentos, essa espécie de círculo vicioso em que se encontram os que fazem Teatro Infantil e os que começam a fazê-lo profissionalmente.
Até pouco tempo, não havia qualquer hipótese de sobrevivência para quem tentasse uma dedicação a nível profissional. As empresas se situavam mais na faixa do “ganhar dinheiro facilmente” do que com a preocupação ou o objetivo de tomar o espetáculo como forma de arte. Os direitos eram sempre iniciantes, os atores eram sempre os que pretendiam fazer teatro para adultos, mas por não conseguirem começavam com as crianças. Quem fizesse teatro infantil era muito mal visto pelos atores ditos profissionais e considerados os grandes exemplos do antiprofissionalismo.
Por sua vez, a dramaturgia para crianças é ainda quase embrionária. Basta constatar que somente um autor é reconhecido e valorizado nacionalmente. Isso, por si só, além de significar que não existe uma dramaturgia reconhecida, significa também que várias gerações surgiram e cresceram conhecendo apenas a visão de um único autor, e, consequentemente, condicionadas a aceitar esse único autor e valorizar somente o seu trabalho. No entanto quantos outros autores têm se empenhado, durante os últimos quinze anos, em escrever textos para crianças! Será que entre tantos, nenhum deles tem vitalidade? A falta de montagem simplesmente pesou como aspecto regressivo e continua pesando. O dramaturgo que não vê seus espetáculos montados, isto é, montados dignamente, e não acompanha de perto a repercussão teatral daquilo que escreveu, permanece com um mínimo de possibilidades de enriquecimento e consequentemente não se sente desafiado a saltos mais desafiantes. Muitas vezes a tendência é parar definitivamente.
Eu, durante três anos seguidos, escrevi textos para crianças com o único objetivo de ganhar dinheiro com prêmios de concursos e poder continuar vivendo, durante uma fase de desemprego. Durante os mesmos três anos nenhum desses textos foi montado até que eu mesmo resolvesse montá-los. Tudo mudou a partir de então. Não pude resistir às crianças assistindo aos meus espetáculos. Elas olham, tão atentas, que às vezes me amedrontam, porque jamais dirão o que se passou com elas durante a representação. O sorriso ou o medo que manifestam, o partido que tomam a favor ou contra qualquer personagem. .. tudo me fez tremer de remorso e vibrar de fascínio. Minha preocupação sempre havia sido em relação aos adultos. Todo o teatro que eu havia feito até então era destinado a adultos e, de repente, encontro essa resposta tão plena de gratificação. Aderi, então, sem que encontrasse aí qualquer ruptura com o fato de continuar escrevendo ou dirigindo também para as pessoas grandes.
Se os textos que têm sido escritos ultimamente fossem montados, pelo menos os melhores, não já seria uma hipótese de ampliação dessa dramaturgia ainda tão indefinida e engatinhante? Nos dois últimos concursos nacionais de peças para crianças estavam inscritos mais de trezentos textos. Um deles não concedeu o primeiro prêmio, declarando que o nível de textos era muito ruim. Ora negar um prêmio desses é exatamente insistir no desestímulo, sobretudo porque havia concessão de montagem aos vencedores.
Mas não ficam aí os desdobramentos da questão. Olhamos os jornais do Rio, num fim de semana, e verificamos que quase todos os teatros apresentam espetáculos para crianças. Parece contraditório? Um acompanhamento da crítica especializada, no entanto, nos faz ver que a maioria desses espetáculos não alcança um nível razoável de produção ou de encenação ou de texto. Sobretudo os textos. O que pensar? Porque essa ausência de critérios de escolha de textos entre os produtores? A mim fica a impressão de que as pessoas que fazem teatro para crianças não têm nenhum hábito de leitura de textos para crianças. A preocupação ansiosa pela montagem dos espetáculos impede, me parece, a atividade intelectual. O medo de perder dinheiro ou demorar muito a ganhá-lo. E onde a reflexão e avaliação do último trabalho apresentado? Foram constatados os últimos erros cometidos? Foi estabelecida alguma observação quanto à reação de público durante a temporada do último espetáculo? São tantos e tantos os aspectos a observar e sobre os quais refletir! Sobretudo quanto aos caminhos de encenação, que é onde se situam os diretores…
Ana Maria Machado
É escritora, jornalista, professora. Curso de Letras Neo-Latinas da URFJ: Pós-Graduação e Linguística na École Pratique des Hautes Études – Paris. Crítica de Teatro Infantil do Jornal do Brasil. Chefe do Departamento de Rádio Jornalismo da Rádio Jornal do Brasil.
Obs.
Este texto foi retirado da edição especial da Revista de Teatro da SBAT, referente ao Seminário de Teatro Infantil de Curitiba de 1975, organizado pelo antigo Serviço Nacional de Teatro, do MEC, realizado no Auditório Salvador de Ferrante da Fundação Teatro Guairá, em Curitiba, no período de 3 a 7 de fevereiro de 1975.
Fazem também parte desta Revista os seguintes textos, que podem ser encontrados neste site:
Apresentação do Seminário de Teatro Infantil – 1975, de Orlando Miranda de Carvalho e Beatriz Veiga
A Criança e a Linguagem Televisual, de José Renato Monteiro
A Coragem de Fazer Teatro Infantil, de Maria Helena Kühner
A Propósito de um Concurso de Textos para Teatro Infantil, de Oscar Von Pfull
Desenvolvimento da Linguagem Teatral da Criança, de Helena Barcelos
Possibilidades do Teatro como Processo Educativo, de José Antônio Domingues
Observação Pessoal sobre o Julgamento de Textos para Teatro Infantil, de Zuleika Mello
O Mundo Subjetivo da Criança e sua Interação com o Teatro, de Monica Laport
Realidade Atual do Teatro Infantil no Estado da Guanabara, de Ana Maria Machado
Teatro, Educação Tridimensional, de Joana Lopes