Trabalho com teatro de bonecos para crianças há exatos 15 anos, e considero este tempo apenas o começo de, quem sabe, uma ainda longa caminhada. Por enquanto acredito ter acumulado alguns conhecimentos técnicos, que no entanto insisto em sempre questionar, sobre este ofício. Mas sobretudo tenho a certeza de haver vivenciado intensas sensações, pouco ou dificilmente descritíveis com apenas palavras. No campo do abstrato, e do poético, passei a entender este trabalho como arte que nos faz, a cada um, seres únicos e transformadores, entre bilhões, deste mundo. É a arte que faz única a tela com uma pintura capaz de revelar e materializar uma sensação humana, que assim passa a comunicar-se com cada um que se atreve a decifrá-la, decodificando a expressão de um único ser, o artista, que “falou” por vias e meios tão próprios. É a arte que nos devolve a individualidade, no entanto tão generosa, capaz de entregar-se ao mundo como um presente. É por isso tão valiosa e indispensável.
Sinto que através dos meus bonecos, falo à minha maneira. Posso talvez estar transformando a vida, e assim comunicando-me com o mundo de forma particular. Desconfio que estabelecer esta comunicação singular é uma necessidade humana – valiosa, indispensável. É assim que nós “bonequeiros” construímos em nossas figuras, de massa e pano, novas vidas, novas formas de estar, de perceber, sentir e atuar sobre o coletivo. Nós reproduzimos o mundo humano, ou não, através de caricaturas ou de personagens extremamente líricos. Este exercício poético, que recria e metaforiza o mundo através de figuras animadas, revela-se de incrível proximidade com todo o jogo de pensamentos e sensações das crianças em sua tenra idade. Pois metaforizar para entender, comparar para entender, recriar para entender, é a necessidade de toda criança em seu início de vida. Creio que vem daí a incrível, rápida e inquebrantável relação que se constrói entre as crianças e os bonecos animados.
Ouso dizer que as crianças nascem artistas…. únicas, absolutas, cada qual com sua linguagem própria, que ainda não pôde ser uniformizada pelo convívio social. Com pouca base científica, e muito mais licença poética (que é a base do nosso trabalho), acredito que nascemos seres – bichinhos – da natureza, para logo, obrigatória e incondicionalmente nos transformarmos em seres culturais, com direitos e deveres bem definidos. Esta adaptação / transformação, no entanto, se faz muito cedo, quando os bichinhos ainda não são preparados para tanta compreensão racional. Daí sua necessidade de mecanismos próprios, tais quais os dos artistas que resgatam sua individualidade, para entender e expressar visões próprias deste mundo. É assim que as crianças precisam falar, inicialmente para si próprias, e logo para todos, à sua maneira, através do abstrato, muitas vezes do aparentemente ilógico, e do sonho. E é aí que identificam nos bonecos, na medida em que são seres a imitar a vida “de verdade”, personagens tão “encaixáveis” neste universo de fantasias que elas insistem e precisam criar para, repito, de forma similar a dos artistas, expressar o mundo como o percebem, como o sentem.
Foi assim que as crianças encontraram em meus espetáculos significados próprios, sobre os quais eu jamais havia pensado. Foi assim que elas viram em meus personagens a vida indubitável, que eu em algumas ocasiões cheguei a questionar, por mania de perfeição, ou qualquer coisa assim. As crianças então me mostraram que algumas pequenas mesquinharias dos adultos, como discussões técnicas ou de estilo, muitas vezes são inconsistentes. Por isso eu vivo a questioná-las. Não interessa, para elas, por exemplo, se nós, enquanto manipuladores dos nossos bonecos, aparecemos a elas ou ficamos ocultos. Para as crianças interessa se vamos poder oferecer-lhes, isto sim, a oportunidade de vivenciar mais um sonho. Interessa se saberemos conduzir-lhes por este sonho, dando-lhes a oportunidade de dialogar, transformar, entender, esmiuçar este sonho com total liberdade. Interessa se vamos oferecer-lhes visões e versões de mundo interessantes, inteligentes, e que sobretudo respeitem o seu processo de inserção no mundo da cultura e do conhecimento dos adultos, sem agressões, e com total respeito, assim como respeitamos a obra do artista que pinta sua arbitrariedade… a que chamamos arte. Pois que chamemos sonho a fantasia dos pequenos. E que o sonho das crianças nunca seja menor do que a arte dos adultos. Que seja igualmente valioso e indispensável.
Às vezes eu páro alguns instantes, para observar alguns bonecos, de espetáculos passados, que agora ficam aqui, imóveis, na estante em frente. E emociono-me com cada um deles, e com seus olhos que, estáticos, parecem olhar o vazio. Eu, no entanto, estou convencido de que na verdade eles passam este tempo todo a reviver seus momentos em palco, a relembrar os olhinhos de cada uma das crianças que acompanharam suas aventuras. Em tempos passados eu diria que estes bonecos hoje são apenas enfeites na estante. Hoje, 15 anos depois, eu digo que eles têm esta memória, e estão a divertir-se por dentro, a lembrar de cada segundo vivido. Eu então agradeço por haver sido um agente da vida destes seres fantásticos. Agradeço também às mãos e corações de meus companheiros de trabalho que, ao animarem estas figuras, doaram-lhes a vida, para sempre. As crianças provaram-me que meus bonecos vivem para sempre. Eu levei 15 anos para entender isso. Que cabeça tonta a minha. Qualquer criança sabe disso, ao primeiro olhar trocado com um boneco vivo, em palco.
Pois só peço hoje a oportunidade de girar com este circo por mais 15, e depois outros 15 anos, para entender e poder me esbaldar, com mais algumas descobertas e magias, arte em estado tão natural, que todas as crianças conhecem ao nascer.
Henrique Sitchin
Diretor da Cia. Truks – Teatro De Bonecos, Julho de 2000