A Ação do Espectador na Obra
Apresentadas as questões relativas à infância e à produção teatral e literária, assim como as temáticas recorrentes nas montagens atuais, podemos começar a pensar em outro fator intrínseco, ligado à produção artística em geral e ao teatro em particular para crianças: a recepção Esta diz respeito à forma pela qual a criança interage com as informações recebidas, de que modo ela as recebe e as processa, ou que tipo de leitura ela faz ou fará do espetáculo em questão. Utilizamos os estudos de Piaget e Vygotsky, com intuito de iluminar as questões referentes ao entendimento da obra artística realizado pela criança quanto ao seu desenvolvimento cognitivo. Sem, necessariamente, aprofundar na questão das diferenciações etárias, apenas para o entendimento do percurso cognitivo que a criança faz até o inicio da adolescência.
A criança é receptiva a obra e não passiva a esta, a todo momento ela recebe e processa as informações transmitidas em cena. Tratamos, neste estudo, a ação como o diálogo que a criança tem com a obra. Como ela recepciona esta em seu interior. Para tal, cumpre observar que não levamos em conta a obra de arte, o teatro, com meio e fim educativo ou didáticos, mas sim como espaço de expressão e manifestação do ser. Como nos diz Gerd Bornheim, “O importante está em compreender que o teatro não é nunca apenas o teatro, e sim um visor através do qual o homem acede ao sentido de sua inserção no mundo.” (22) Assim sendo, o desenvolvimento infantil, como habilidade de construção de um modelo interno do mesmo, pode ser levado em consideração na criação dos espetáculos.
Ao pensar em faixa etária o produtor pode utilizar da noção de público alvo para melhor estabelecer o jogo com a platéia. O entrevistado Ludoval apresenta, com base em sua experiência na área questões pertinentes à faixa etária no teatro para crianças:
“Esse trabalho é muito importante. Hoje na Europa, algumas produções, tendem a não fazer teatro para o grande público. A preocupação deles é fazer teatro pra 50. Faixa etária de 02 anos a 05 anos e meio. (Aqui) Os pais e avós, de modo um em geral, levam para qualquer coisa. (…) Na verdade o teatro fica apropriado para uma determinada faixa e você às vezes assume uma outra. Então é montar o espetáculo infantil falando de determinado assunto. Mas, no desenrolar dos ensaios, a questão da faixa etária fica meio livre…” (23)
4.1. Cognição
Para Piaget a criança passa por estágios de desenvolvimento. Em sua pesquisa ele busca definir quais são os fatores universais necessários para evolução humana, procurando entender os mecanismos e processamentos internos. Já Vigostsky entende que o essencial para o desenvolvimento cognitivo está na interação social. Logo, os fatores externos do ambiente social são, para ele, os grandes agentes no processo da aquisição do conhecimento. Neste caso se, para Vygotsky, a imitação torna-se essencial no desenvolvimento da criança, para Piaget o jogo e a imitação se completam neste processo.
No livro “A representação do mundo real na criança”, Piaget explora a relação da criança com a descoberta do funcionamento do universo. Antes de pensar racionalmente, com a lógica dos adultos, a criança busca explicações por meio da criação de mitos. Desta forma, o desenvolvimento cognitivo está relacionado diretamente à capacidade de criar símbolos. Consequentemente o jogo, a imitação, o sonho e a representação se fazem artifícios utilizados. Por isto a narrativa fantástica, o mágico, o lúdico encontram espaço no mundo infantil, a imaginação e se torna elemento de identificação para as crianças.
Nos contos de fadas o elemento mágico aparece como fonte capaz de transformar os plebeus em reis. Tais narrativas transmitem informações à criança em consonância com o seu estagio de desenvolvimento cognitivo e emocional, por narrar figurativamente. E como estrutura, a narrativa tem a capacidade de sintetizar os fatos e acontecimentos em uma imagem única.
No processo de desenvolvimento, a criança faz a passagem do concreto, ou seja, da utilização dos símbolos; para o abstrato, à utilização do signo, como as letras, no caso da leitura. Piaget exemplifica esta operação com a passagem de uma criança que assimila a palavra “elefante” como devendo ser escrita em letras grandes, de forma a corresponder ao tamanho do animal.
Nestes momentos, o pensamento da criança se faz por superposição e não necessariamente por causa e efeito.Temos na parte de uma entrevista publicada no site do CBTIJ um bom exemplo acerca da leitura do espetáculo que a criança faz, dependendo de seu estágio de desenvolvimento cognitivo. O ator Eduardo, da Cia Dramática de Comédia, retrata uma cena de pós-espetáculo com a peça Epaminondas:
“um garoto de uns 6 ou 7 anos veio falar comigo, e disse: ‘Poxa, o seu pai falou tanto para você não mentir, e ele é o maior mentiroso’ . Eu brinquei: ‘Está vendo só o que os pais fazem com a gente, às vezes? Falam uma coisa e fazem outra.’ Aí, uma menininha que ouviu a conversa, emendou: ‘Meu pai nunca mentiu, mas minha mãe mente sempre: ela diz que vai fazer batata frita e faz macarrão.’ Eram crianças da mesma faixa etária, mas que compreendiam as coisas de forma diferente. O garoto viu a coisa pelo lado moral, do juízo moral, do “não mentiras”, e ela associou a história aos fatos do cotidiano, sem se referir à regra moral.”
A importância do conhecimento deste processo de desenvolvimento da criança permite, na criação do espetáculo, uma ampliação dos níveis de leitura aos quais o público infantil terá acesso. Como no exemplo acima citado, vemos que não se faz necessária a definição de faixa etária para o espectador, mas o conhecimento das opções de leitura que o mesmo apresenta a seu público, podem contribuir para o fazer teatral.
4.2. Piaget: Estágios de Desenvolvimento
Os estágios de desenvolvimento apresentados por Piaget correspondem a habilidade do indivíduo em construir um modelo interno do mundo que o cerca, gerar, produzir e manipular este modelo, até tirar as conclusões a respeito do passado e do futuro.
Na evolução destes estágios tem-se no inicio o egocentrismo infantil. Vendo o mundo a partir de seu ponto de vista e aprendendo por repetições, a criança começa a desenvolver a sua percepção. Em seguida, ela enceta distinguir o que é interno, ou seja, o que é ela; do que é externo, o que são outros ou os objetos. A partir de então, o pensamento da criança começa a ligar a ação à percepção.
Utilizando o processo da fala como modelo de linha de desenvolvimento, teremos os primeiros momentos começando com a fala egocêntrica, para então seguir para a fala silenciosa, para si mesma, e só então dar cabo à fala socializada, com a noção do receptor da mensagem. A criança pensa em voz alta dizendo a si mesma o que fazer, pois para ela a fala e a ação estão ligadas. Segundo Piaget o limite para este tipo de ação, pautada no egocentrismo, tem o seu auge entre 3 a 5 anos de idade.
Alguns espetáculos trabalham com esta noção. Na peça A Aranha Arranha a Jarra, a Jarra Arranha o Trava-Língua, sob direção de Demétrio Nicolau, vemos a ação direcionada a crianças menores. Por ter o enfoque na brincadeira com as palavras e a ação que não necessariamente gera uma relação direta com a fala, a obra trabalha com o estágio cognitivo da criança acima descrito.
“um divertido espetáculo voltado para as crianças bem pequenas, o que é raro em nossos palcos.(…) o espetáculo parte da sonoridade e do ritmo das palavras para criar cenas isoladas a partir de cada um dos trava-línguas escolhidos. As situações, as coreografias e o gestual criados não têm necessariamente uma relação direta com o significado de cada um dos trava-línguas.” (24)
Outro espetáculo que também explorou as possibilidades de leitura realizadas na infância foi a montagem Bagunçaaa!!! – Ópera Baby, sob a direção de Karen Acioly. A idéia de apresentar às crianças momentos do desenvolvimento perceptivo de meses até os 7 anos de idade, inovou a cena. Tal novidade realizada com qualidade artística não apresentou didatismo ou caráter educativo à obra. O uso da criatividade e dos recursos artísticos disponíveis abriu portas para que se possa considerar as crianças como espectadoras ativas, ao qual se faz o objetivo do espetáculo.
4.3. O Jogo
A partir dos sete anos a noção de espaço e tempo se desenvolve. E aos oito anos a criança será capaz de trabalhar com hipóteses, sendo estas confirmadas ou negadas. O jogo de regras começa a ser utilizado e se sobrepõe ao jogo simbólico. Para Piaget o jogo trata da assimilação da nova experiência, tem um fim em si mesmo e a imitação realizada reproduz os modelos familiares pelo desejo de superação.
Nas temáticas de espetáculos ou nas obras dramáticas para o público infantil pouco se utiliza das estruturas de mistérios ou detetivescas. Tais estruturas lógicas servem de espelho e identificação para a criança que desenvolve seu raciocínio hipotético. A inclusão de estruturas dramáticas que trabalham com as hipóteses, podem trazer um interesse maior do espectador entre 10 e 14 anos, que comumente sofre desinteresse nos espetáculos voltados para crianças.
O teatro na infância estabelece o jogo que a criança conhece e bem: o da imitação. Para Piaget, com o crescimento e refinamento da capacidade de imitar, a criança está adquirindo mecanismos para tornar vivíveis as imitações internas, como faz com as externas. Este é o processo de amadurecimento que faz com que ela possa posteriormente conseguir separar o pensamento, da ação propriamente dita. É o início da abstração.
A capacidade de abstração é considerada um dos pontos de culminância na evolução cognitiva. E esta tem início, como já abordamos nas explicações, por meio de mitos para os acontecimentos aos quatro anos com o pensamento animista. Os objetos animados são vistos como seres viventes e uma criança dirá: “Os barcos estão dormindo”.
Aos cinco anos estes objetos animados se desenvolvem para a intuição, como inicio do pensamento simbólico. A criança explicará: “A lua fica no céu como? Como os balões?” Segue-se então para o estágio em que todo o real reduz-se a fenômenos mágicos. “Se eu bater os pés a sopa será boa, se não o fizer, não será”. Neste momento a criança atinge o grau de objetividade. É um momento de transição entre os esquemas pré-conceituais de imagem e os verdadeiros conceitos operacionais.
Um exemplo deste avanço está na capacidade adquirida de fazer perguntas pelo prazer de perguntar, sem necessitar das respostas.
Alice Koënow possui uma posição a este respeito. Em seu artigo “O alcance do teatro para crianças e adolescentes” (25), a diretora acredita que estas relações de causalidade e efeito são mais pertencentes ao universo adulto. A criança, possuidora basicamente de uma inteligência concreta, vivencia suas experiências no tempo presente, no aqui e agora. Logo, na opinião desta diretora, esta estrutura fragmentar não seria empecilho na apreensão teatral pela criança. E destaca que não é pelo fato de a criança possuir um universo de experiências concretas e sensoriais, que não podemos estimular o seu raciocínio abstrato, por exemplo. Ou seja: partimos de seu ponto de vista concreto, mas podemos estimular a abstração, a lógica.
No processo de associação que a criança faz, ela deduz que, se uma coisa é próxima a outra, então ela funciona como se fosse a outra. Portanto o símbolo traz a representação de um objeto ausente, desde que exista uma comparação entre um elemento dado e um imaginado. Nele está o espaço do faz-de-conta. Uma criança que finge estar dormindo, ao reproduzir as suas ações ela apresenta e mostra aos outros também pela necessidade de acomodar-se a elas.
“Os membros da plateia se identificam em seu inconsciente com alguns aspectos ou pessoa da obra dramática exatamente como nas representações primitivas o homem fazia identificações experimentais com seu deus; nesse sentido o teatro é religioso, mágico; mesmo em suas formas mais simples (bonecos ou circo) pode promover identificações de natureza infantil.“ (26)
Para Vygotsky, o contato com o meio social é o primeiro impulso para o desenvolvimento da criança e esta o fará, inicialmente, por meio da imitação do que vê a sua volta. Assim os jogos e brincadeiras têm um importante papel no desenvolvimento infantil. Pois é no jogo e na brincadeira com objetos concretos que ela atribuirá papéis diferenciados relacionando-se com a significação e formando conceitos.
O jogo da narração realizado por personagens, presentes nas muitas adaptações de contos populares e literários (a apresentação dos personagens, que contam e interpretam outros personagens) provê uma identificação da criança perante o seu próprio processo de construção e percepção do mundo.
Pois é no brinquedo e na brincadeira que a criança aprende a separar o objeto do significado. Neste ponto o teatro torna-se um importante instrumento na formação de significados para a criança. Pois que o jogo é o princípio desta forma de expressão artística.
“Uma cultura desenvolvida fundamenta-se no jogo: o teatro e o ritual são as versões civilizadas dos mecanismos inerentes ao jogo; tanto o jogo da criança quanto o teatro do adulto são versões das tentativas dos seres humanos de encontrar a segurança.” (27)
4.4. O Contrato do Teatro
O jogo teatral, portanto, é estabelecido como um contrato entre os espectadores e os atores, ou a cena. Estabelece-se um contrato mútuo de aceitação daquela realidade. E o jogo aceito pode ser o de atores e personagens, pode ser o de utilização de bonecos ou adereços de forma animada, e ainda algum outro tipo de suporte. A regra deste jogo implica na aceitação da cena como “verdade”, e para a criança este jogo se faz naturalmente.
“A arena, a mesa de jogo, o círculo sagrado, o templo, o palco, a tela de cinema, o tribunal são, segundo sua forma e sua função, lugares de jogo, isto é, solo sagrado, domínio separado, cercado, consagrado, para os quais valem regras específicas. São mundos temporários dentro do mundo usual, que servem para a realização de uma ação completa em si mesma.” (28)
Uma das questões apresentadas por nossos entrevistados e presente nas poucas produções escritas sobre o Teatro infantil, capaz de comprometer a qualidade do espetáculo é o contato direto dos personagens com a plateia. Sabemos que este artifício em alguns espetáculos cabe e complementa-os, mas em muitos casos é usado de forma arbitrária, com o objetivo de “interagir com a criança”, “chamar atenção”, ou se fazer certo do entendimento da mesma. Perguntas do tipo: “Alguém viu o lobo?” (quando o mesmo está, no jogo cênico, atrás do personagem), também ilustra momentos em que perguntas são usadas sem que necessariamente façam parte da lógica ou linguagem do espetáculo como um todo. A importância do estabelecimento do jogo no espetáculo, e no processo de criação do mesmo, deve ser levada em conta, para que as ações gratuitas não sejam usadas como tentativas de comunicação, visto que a cena em si já representa o jogo assim como tudo o que nela aparece, sem a necessidade de reforçar o entendimento.
Para Barthes a produção de sentidos de um texto, neste caso de um espetáculo, depende do leitor e das estratégias discursivas que o autor utiliza. Ao criar a sua mensagem, um autor prevê um leitor modelo e com ele faz a sua construção. Todo leitor age também sobre um código, regras que dominam a escrita de determinada época.
Há, portanto, um direito do leitor na interpretação de um texto, como também há uma subjetividade na leitura. Para se pensar em uma encenação rica, deve-se juntar estas faces buscando as interpretações das redes de sentido e desenvolver hipóteses destas para o trabalho cênico.
A falsa ideia da construção e percepção infantil talvez seja um dos motivadores da repetida fórmula de interação do personagem dos espetáculos com seu público alvo entre outras questões que colocam em cheque a qualidade do espetáculo. Por isso buscamos na concepção dos dois teóricos, o processo de construção da percepção da criança com o objetivo de aprofundar e encontrar maiores subsídios para uma nova visão a respeito desta prática cênica.
Notas de Rodapé
23 – Entrevista anexo 2 com Ludoval Campos
24 – Crítica publicada no Jornal do Brasil por Carlos Augusto Nazareth – 10.04.2005
25 – Texto publicado em 1998(em inglês) no Anuário da ASSITEJ – Associação Internacional de Teatro para a Infância e Juventude. In: www.cbtij.org.br
26 – Coutney, Richard. Jogo, teatro e pensamento. Ed. Perspectiva. estudos 76. pág. 284
27 – COURTNEY, Richard. Jogo, teatro e pensamento. Ed. Perspectiva. estudos 76. pág. 284
28 – BORNHEIM, Gerd. Brecht, a Estética do Teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992. p.39, p.81 Op cit huizinga, johan, op cit.p.17 Bornheim