A Narrativa Cênica: Conflitos da Cena Atual

3.1. A Cena Atual

Analisamos a cena carioca a partir das críticas de teatro publicadas no site do CBTIJ, dos críticos Carlos Augusto Nazareth e Marília Sampaio dos jornais: Jornal do Brasil, O Globo e Jornal do Comércio. Sabemos que este escopo representa apenas uma pequena parte da produção teatral carioca, visto que a publicação da crítica já representa uma seleção. Não procuramos outras fontes para a nossa pesquisa, tendo em vista o curto espaço de tempo para a realização da mesma. A facilidade de acesso encontrada no site do CBTIJ nos permitiu analisar a respeito dos temas encenados no Rio de Janeiro de 1997 e de 2003 à 2006.

A forma com que analisamos as obras encenadas neste período faz-se também em recorte. Por ser o texto teatral uma obra aberta, não podemos deixar de lado todas as interferências as quais o texto ou a idéia sofrem ao ir para a cena. Para uma verdadeira análise qualitativa deste período, precisaríamos considerar a obra completa em sua encenação. O espetáculo, como um todo, requer a afinação dos vários instrumentos tais como: texto, encenação, figurino, cenário e atores. Mas, nesta análise, nos atemos somente à questão da temática mais presente no texto e no espetáculo. Por meio das temáticas mais amplas, conseguimos pensar um pouco a respeito da recepção de tais obras, tanto sob o ponto de vista do produtor, que escolhe encená-las quanto do ponto de vista do público que as assiste.

Em 139 críticas consideradas, tivemos um total de 53% de espetáculos baseados em adaptações, seja de clássicos, de narrativas populares ou literárias autorais.

Este resultado vem ao encontro desta pesquisa, mostrando a presença da literatura na cena e o quanto as duas formas de expressão artísticas sofrem de questões equivalentes.

Dentre as adaptações 25% são de contos clássicos mundiais. Nestas constam histórias dos grandes compiladores como Grimm, Andersen e Perrault. E ainda as adaptações dos contos populares e tradicionais brasileiros, que têm como um dos seus maiores compiladores Câmara Cascudo. Ainda vigoram, entre as adaptações, os clássicos da dramaturgia e da literatura adulta produzidos para crianças.

Neste cenário consta apenas uma pequena produção de dramaturgia inédita e original, das montagens de textos genuinamente dramáticos, sendo estas ainda de qualidade questionável para os críticos.

Os textos dramáticos e qualificados pela critica, mais montados, foram obras de Maria Clara Machado. Vemos, com este resultado, que a questão do teatro para crianças não envolve apenas a consideração desta como leitora principal do espetáculo, mas também a questão do conhecimento e a aplicação da estrutura dramática para a criação de novos conflitos cênicos que despontem em dramaturgias de qualidade e consequentemente em boas montagens.

Há, nas novas produções, linguagens que não se espelham, necessariamente, na narrativa clássica dramática. Muitas vezes o jogo é estabelecido apenas pela apresentação de personagens, baseados na visão do novo, do desconhecido para as crianças, no conhecimento, identificação e fruição. Como exemplo, temos o espetáculo da Cia. Paulista Pia Fraus, atuante há 23 anos na montagem de espetáculos para o público infantil com Bichos do Brasil.

Nesta linha temos o que podemos chamar de novas linguagens vale destacar o CRTI com a realização do Intercâmbio de Linguagens que provê ao espectador carioca o contato com espetáculos do Brasil e do exterior que apresentam em cena recursos múltiplos de linguagens.

As muitas adaptações dos contos de fadas clássicos e dos contos populares, que utilizam a narrativa em cena, trazem para o palco o resgate da figura do contador de histórias. O crítico denomina como narrativa oral cênica toda proposta que inclui a narração e a encenação, seja por meio de personagens que contam suas histórias, seja por meio de narradores que, de alguma forma, assumem características de personagens. Porém, algumas dificuldades são encontradas neste tipo de linguagem. No que tange as dificuldades de soluções cênicas para o trabalho narrativo, destaca-se a perda do que identifica a cena teatral: o drama, a ação ocorrida no palco. Carlos Augusto Nazareth apresenta em uma das críticas a dificuldade de tal proposta:

No entanto, ao se juntar narrativa oral cênica e narrativa dramática, muitas vezes ocorrem problemas de indefinição de proposta. Um contar que trabalha insuficientemente a palavra se alia a um teatro insuficiente quanto ao seu desenvolvimento dramático. Se a opção estética é valorizar a palavra, esta tem que ser o foco primeiro. Os atores, enquanto contadores, têm que buscar a interlocução com o espectador.” (19)

Para solucionar os problemas da narrativa cênica, não deixando de lado a característica da ação que deve ocorrer no drama, a manipulação de adereços e bonecos surge como um recurso à narração da palavra.

No caminho das mudanças e novas linguagens e mais próximo à utilização de uma “narrativa cênica”, destaca-se o trabalho do grupo Etc. e Tal. Com um trabalho classificado como “pantomima literária”, traz à cena carioca a possibilidade de apresentar a narrativa, sem se perder o caráter dramático da cena, apresentando a narração e a mímica de forma simultânea.

Para Carlos Augusto Nazareth o enfoque narrativo no teatro vai além das excessivas montagens de adaptações literárias, o que o estudioso julga pouco incentivado é a escrita dramática, como dramaturgia para crianças. Esta falta, sendo muito poucas as possibilidades de textos voltados para o público infantil, faz com que “um surto de adaptações” tome conta da cena. Algumas delas feitas a partir de clássicos do teatro adulto, outras advindas da nossa rica literatura infantil, ou ainda as inúmeras adaptações dos contos clássicos da literatura mundial, (Grimm e Andersen). Porém, em nenhum dos casos assusta tanto os artistas ligados a esta produção, quanto as inúmeras adaptações dos filmes da Disney, feitos como garantia de público, que quase sempre comprometem a qualidade, como obra de arte e como comunicação.

O entrevistado Bernardes que vêm trabalhando em prol da qualidade no teatro para crianças define:

Existem crianças. Criança que está dentro do adulto. Quando você vai ver um espetáculo que é bom, é teatro, é bom e ponto final. Você entra na história como a criança que está do lado. (20)

3.2. Pontos de Vista

Após constatada a presença da narrativa na cena carioca, seguimos para apresentar algumas visões sobre a narrativa encontradas nos estudos literários que podem, não resolver as questões da cena, mas acrescentar dados ao discurso a ser produzido no palco.

A análise do discurso apresenta a idéia de que não existe discurso sem ideologia, e todo discurso pretende uma relação com o receptor. Portanto, ao propor montagens de narrativas clássicas, não se pode deixar de levar em conta tantos estudos acerca das simbologias e significações. A “teia” de sabedoria popular encontrada nestes contos, construída há tempos e que ultrapassaram milênios, ainda se mantém viva no imaginário mundial. Entre os estudos temos os enfoques que trazem aos contos o aprofundamento por meio das abordagens: sociológicas, históricas, psicológicas ou simbólicas.

Betleheim baseia seus estudos no campo da simbologia freudiana e aponta o conto de fadas folclórico como instrumentalizador, essencial para elaboração dos problemas existenciais. Um local para o encontro da criança com sua agressividade, com seus medos e com sua raiva, que permite, por meio das narrativas, a vivência e a reorganização mental dos conteúdos negados pela sociedade.

No campo sociológico, a importância dos contos tradicionais se dá na formação social. Não com pretensões doutrinárias, como vemos em muitas obras literárias voltadas para o público infantil, que imprimem a forma ideal de comportamento; mas sim como exemplar, modelar, para as agruras as quais passamos em todo o processo de transmissão e produção cultural.

No estudo do campo dos símbolos, os heróis dos contos tradicionais, as representações arquetípicas são como heranças do inconsciente coletivo, como representantes das estruturas psíquicas da humanidade. A noção do arquetípico é construída e presente no imaginário social ou popular. Portanto, tudo o que diz respeito à capacidade de expressão individual e pessoal, está ligada ao imaginário. Tais considerações servem de arcabouço para o fazer artístico.

Mas as adaptações dos contos clássicos não são prerrogativas das montagens teatrais. O reconto e a re-escritura de tais narrativas foram e são largamente trabalhadas pelos escritores de literatura infantil (como já vimos nos capitulo anterior) muitos deles mexem na estrutura fundamental do conto, mas com o propósito de apresentar novas leituras e novas propostas significativas. Estas são, muitas vezes, originárias para o interesse da classe teatral na encenação de tais adaptações.

Nely Novaes propõe um levantamento dos principais conceitos  e padrões  de pensamento  ou de comportamento os chamados “Valores Tradicionais” (consolidados  pela  sociedade romântica  no séc. XIX)  e os “Valores Novos” (gerados  em reação ao antigo, mas ainda não equacionados pelo sistema).

Apresentamos o quadro da autora com o objetivo de abrir o campo das possibilidades de pesquisa para esta área. Neste, o quadro de análise estrutural dos contos de fadas e dos contos maravilhosos, podemos traçar os caminhos que dão origem à formação de uma nova mentalidade ideológica, assim como uma nova forma de visão de mundo. Como, para a autora, à literatura infantil cabe semear os valores que  integrarão uma nova mentalidade futura.

O Tradicional  O Novo
1.  Espírito de  individualista
2. Obediência absoluta  à Autoridade
3. Sistema social  fundado  na valorização do TER e do PARECER, acima do SER
4.  Moral dogmática
5. Sociedade  sexófoba
6. Reverência  pelo passado
7. Concepção de  vida  fundada na visão transcendental  da condição humana
8. Racionalismo
9. Racismo
10.  A criança: “adulto em miniatura”
1. Espírito solidário
2. Questionamento  da Autoridade
3. Sistema  social fundado na valorização do fazer como manifestação autêntica do ser
4. Moral  da responsabilidade  ética
5. Sociedade sexófoba
6. Redescoberta  e reinvenção do passado
7. Concepção  de vida  fundada  na visão cósmica / existencial/mutante da condição humana
8. Intuicionismo fenomenológico
9. Anti-racismo
10. A criança:  Ser – em – formação (mutantes do novo milênio) (21)

Tal quadro sintetiza a relação e o local da criança no seio da sociedade. A arte assim vista como expressão primeira das transformações sociais serve de motor e motivador seja como espelho dos valores vigentes, e estes não devem ser desconsiderados no momento de escolha da montagem de um espetáculo para crianças.

Tais considerações servem para iluminar e preencher de amplas significações o que se realiza em cena. Tais considerações não se esgotam no que tange o estudo das propostas cênicas e das escolhas em montagem teatral para criança.

Procuramos aqui apresentar novos olhares para as adaptações, que questionem as escolhas e não as julguem, e que sirvam ampliação de caminhos de pensamento e práticas cênicas atuais, a partir de maior cuidado e conhecimento por parte das realizações desta arte.

Sob este ponto de vista cabe entendermos a retomada das narrativas em cena, tanto do modelo clássico de estrutura dramática, quanto do contato e da presença dos contadores de histórias que, atualmente, também refletem o homem de hoje, com seus medos e os caminhos que ele procura na atualidade.

Pensando no reflexo que este tipo de cena traz ao público infantil, vemos duas possibilidades de valorização. Primeiro sob o ponto de vista de formação, o desenvolvimento do raciocínio encadeado, em segundo plano encontra-se o resgate de uma característica de formação do povo brasileiro.

Notas de Rodapé

19 – Crítica publicada no Jornal do Brasil por Carlos Augusto Nazareth – 11.06.2005
20 – Entrevista em anexo 1 com A. C. Bernardes
21 – COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil :Teoria Análise, Didática. São Paulo: Ed. Moderna, 2000. p.19.