A Personagem Central: A Criança
A personagem central da trama intitulada “Teatro Infantil” é a criança. E quem é esta criança para a qual o adulto fala? Ou quem é a criança que irá assistir ao espetáculo? Partimos, portanto, para o estudo do objeto primeiro deste processo: a criança.
Em busca de uma definição sobre o personagem central, chegamos a questões de como nos relacionamos com a criança e de que forma ela é representada no mundo social. Tomamos como base, entre as leituras citadas, as obras de Regina Zilberman e “A literatura Infantil na escola” e obra “Antropologia da criança” de Clarice Cohn.
A segunda autora nos apresenta o ponto de vista antropológico, em busca por um modelo o menos arbitrário possível na forma de retratar a criança hoje. E alerta para o fato de não existir uma única infância, mas várias, e destas estarem essencialmente ligadas: ao meio em que vivem, à cultura em que estão inseridas e à visão do adulto sobre ela.
Para se iniciar o conceito de criança, pensemos na questão de que: quem formula esta prospecção são os próprios adultos. Portanto, a dificuldade de se produzir ou falar em criança está no ponto de vista. Para o adulto, a criança ainda é objeto, está fora da produção, só se faz presente como sujeito no ambiente escolar. E se a escola reproduz o meio e o modelo de objeto apresentado na vida social, precisamos estar atentos para não ilustrar simplesmente o que vemos hoje como infância. A autora assinala o fato de que a criança se vê como sujeito de suas ações, e diz: “A criança não sabe menos, ela sabe outra coisa”.
Partindo de uma visão antropológica encontramos na obra de Zilberman, os estudos históricos capazes de trazer luz às contradições vivenciadas pela infância atual.
1.1. Ilhamento
Regina Zilberman traça um breve histórico das relações sociais e da infância, incluindo o espaço escolar, o que nos aproxima dos conflitos relativos à criança atual.
No século XIX o conceito e a visão da criança se formava com base na teoria de Rousseau. Na teoria “do bom selvagem” a criança nasce como um ser puro, inocente, e que deve ser afastada dos males sociais para que possa se desenvolver sem os vícios absorvidos pela sociedade. A criança é vista como um ser incompleto que deve ser preservada desta “contaminação social” por um bom tempo.
Na idade média começa a se formar a noção da infância, porém, ainda não existia um espaço destinado a ela como tal. Somente no século XVIII, quando o feudalismo cedeu lugar aos ideais burgueses, “nasce” a Infância. A burguesia, representada pelo surgimento da família, opôs-se ao que regia o sistema feudal. Os elos estabelecidos pelo núcleo familiar deixaram de lado os compromissos com o grupo social. “A vida sai da esfera pública e entra na esfera privada.” (02) E, tendo como base: a vida doméstica, a preservação dos bens, a educação dos herdeiros, a importância do afeto e da solidariedade entre os membros, a privacidade e o intimismo; a noção da infância começa a interferir diretamente na criança.
A superioridade do adulto passa a impor a educação para o “bom selvagem”. Esta mudança de estrutura social desencadeou um afastamento da criança dos meios de produção e dos meios sociais. Zilberman chama este processo de “Ilhamento”. Ao aluno – criança cabe o desenvolvimento pleno do “Eu” natural e coube à escola representar este espaço de isolamento para a construção do conhecimento. A criança pode ser, na escala social, comparada ao povo, mas como ela não produz, encontra-se ainda em nível mais baixo.
“A infância corporifica, então, dois sonhos do adulto. Primeiramente, encarna o ideal da permanência do primitivo, pois a criança é o bom selvagem, cuja natureza é preciso conservar enquanto o ser humano atravessa o período infantil. A conseqüência é a sua marginalização em relação ao setor de produção, porque exerce uma atividade inútil do ponto de vista econômico (não traz dinheiro pra dentro de casa) e, até mesmo, contraproducente (apenas consome). Em segundo lugar, possibilita a expansão do desejo de superioridade por parte do adulto, que mantém sobre os pequenos um jugo inquestionável, que cresce à medida que esses são isolados do processo de produção.” (03)
Se antes a criança convivia em um mesmo espaço com o adulto, também antes a esta não cabiam grandes laços afetivos. À nova geração da infância acrescentaram-se o afeto, os estudos para o seu desenvolvimento intelectual e, conseqüentemente, os mecanismos de controle de suas emoções. Com esta nova prática social a instituição escolar começou a sofrer reformas, o que contribuiu para o nascimento da literatura voltada para os pequenos.
Daí um motivo para a literatura, assim como o teatro para crianças, começarem sua incursão dentro e para o ambiente escolar. Daí também o motivo de toda a produção artística, destinada a criança, ser relacionada à didática, ou ao ensino. Por todo o caminho percorrido pela infância no ambiente social, fica difícil pensar em como se pode fazer arte para os pequenos desconectada do aprendizado ou do ensino. Por isso, em um primeiro momento, seja na escritura da literatura para as crianças, seja no teatro, a educação era a finalidade única.
Alguns conflitos são apresentados pela autora para a arte literária, mas podem ser repassados para a arte teatral. A produção artística em geral para a criança é desvalorizada se fora do ambiente escolar. Vimos que esse pensamento acarreta em uma arte que não é aceita como tal e gera uma necessidade didática que acaba por prender a manifestação artística ao compromisso com a dominação da criança. Como resultado, a relação entre as artes e o ensino se mantém em um espaço inapropriado. Se a escola é o espaço da criança, é natural que à esta caibam as linguagens a elas destinadas. Porém o desprestígio, por enxergar nelas apenas o viés pedagógico muitas vezes afasta o destinatário, por desinteresse.
1.2. O “Vir-a-ser”
O “ilhamento”, acima citado, também se refere ao processo pelo qual a criança passou ao ser retirada do ambiente social, com isto ela perde o contato com os processos naturais da vida como nascimento e morte, assim como os da política, mas, ainda mantém o seu espaço nas manifestações culturais. Deste processo podemos retirar a atual dificuldade em relação ao tratamento de alguns temas para as crianças tais como a morte e ainda refletir sobre o abrandamento das características dos contos de fadas ao longo dos tempos. O isolamento dos processos naturais e de produção tornaram a criança distante do que deveria ser “natural” do ser humano.
A valorização da escola e da literatura infantil decorre, de certo modo, do ideal capitalista e da industrialização. A ascensão da ideologia burguesa e a oposição entre o público e privado cria, entre outros, a dicotomia da separação entre a infância e a idade adulta. À primeira, a infância, cumpre seguir em preparação para chegar-se à segunda, a fase adulta. A infância, então, surge como instituição e com ela a prática pedagógica. Na trajetória do pensamento pedagógico ao longo dos séculos, a criança passou a ser projetada, vista como “o ser” a ser formado, o “Vira-a-ser” do século XX.
1.3. A Superinformação
Ao processo de “ilhamento” apresentado por Zilberman, e à visão da criança como um ser e que deve ainda ser formado, soma-se a “superinformação”. O efeito da quantidade de informação recebida hoje em nossa cultura e consequentemente pelas crianças nela inserida.
O século XIX, a era da industrialização, levou a cultura de roldão. Com o desenvolvimento da indústria e dos processos mecânicos e o aumento da população urbana, as obras de arte passaram a ser multiplicadas. Neste momento, a cultura de massa surge, voltada ao grande público, mas como arte deixa de lado busca por questões existenciais. O consumo fácil passa a levar ao gosto do público valores transitórios.
Neste espaço atual, em que a criança se encontra ainda isolada dos processos de produção, ela se depara com um espelho estilhaçado. Fora da escola, os meios de comunicação de massa bombardeiam informações de tipos e gêneros diferentes, a violência, o amor adulto, o consumo entre outros servem de espelho para esta que deveria ser preservada do ambiente em prol de sua formação. E o conflito passar a ser entre a primeira proposta da escola como espaço para a formação do “eu” e os inúmeros “eus” comumente encontrados fora dela. Tal fato inclui o problema da ilha–escola, criada e mantida até hoje, e isolada dos movimentos, das ações políticas e da vida social. Por deixar de ser o espaço do “Eu”, o modelo de infância encontra dificuldade para a manutenção da paradoxal proposta.
Nely responde à questão atual na qual se encontram os produtores da linguagem artística para crianças, como uma saída ou uma possibilidade:
“Paradoxo atual: tanto a literatura, ou as artes em geral quanto a educação estão sendo forçadas a ser sementes e sínteses do Novo. Tem de servir de alicerce para uma nova maneira de pensar, ver e agir, simultaneamente ser a cúpula ou a síntese provisória do novo sistema em gestão.” (04)
1.4. Outras infâncias
O público consumidor da arte para crianças é basicamente o burguês, ele retém o mínimo necessário para a aquisição de tais bens. A ida a o teatro, ou a compra de um livro, ou até mesmo a valoração destas artes como espaço de encontro e de descoberta de si mesmo, muitas vezes não fazem parte do público infantil das classes sociais mais baixas.
A noção de infância que permeia até os nossos dias é a da visão burguesa, de uma cultura centralizada na família. Pensando nesta infância apresentada, como sendo a dos espectadores do teatro infantil, vemos que ainda outras infâncias e crianças são desconsideradas. Se mudarmos o espaço de enfoque, para crianças de uma classe social baixa, que não a burguesa, vemos que o processo de “ilhamento” apontado acima se modifica. Pois, parafraseando Zilberman, enquanto a criança burguesa prepara-se para ser um dirigente, a criança pobre necessita de amparos para que possa exercer a função de mão-de-obra. No primeiro caso, prima-se pela unidade interior e saúde mental. No segundo, se faz necessária a confiança e a subserviência à classe dominante além da saúde física.
Neste caso temos o exemplo das ONGs que atuam ensinando jovens as técnicas teatrais, com o sonho de profissionalização. Bernardes, ex-presidente e membro atuante do CBTIJ (Centro Brasileiro de Teatro para a Infância e Juventude) critica, e diz:
Estas produções “entram no mercado da apropriação de projetos sociais, transformando isso em teatro profissional. Eu acho que o teatro é o melhor instrumento para você fazer uma transformação social. É o melhor instrumento de sociabilização cultural. O teatro é o melhor instrumento para tudo. (…) que dizem: ‘estamos ensinando a ser iluminador, estamos ensinando a ser contrarregra’ -.Mas não são poucos, são 50,60. Não tem mercado para aproveitá-los, a não ser que eles tenham algum cartucho ou alguém de lá mesmo que queira investir nessas pessoas e fazê-las parte de seu grupo pessoal.” (05)
Na tentativa de apresentar números de formação profissional esquecem das políticas públicas de acesso e produção artísticas. Como salienta o entrevistado, a importância na formação não é suficiente para a real profissionalização destes estudantes. Caberia a luta por novas políticas de acesso e prática desta arte como um todo. Pois a realidade da arte teatral exclui ainda o mesmo grupo ao acesso como espectador e como produtor, e o mercado, em constante dificuldade, também não possui meios para absorvê-los.
Como seria se o teatro fosse palco também para os dramas desta classe? Em nossa sociedade existem crianças que vivem como na idade média, convivem em um espaço sem separações entre crianças e adultos. A escola continua representando um espaço de isolamento, porém impossibilitando o contato e a descoberta de si e de sua classe. As responsabilidades de uma criança de baixa renda nem sempre são menores que a dos adultos com os quais convivem, ambos vivenciam a morte, e se encontram no limiar da marginalidade em seu dia-a-dia. O que significa que, quanto mais baixa a classe social, menos separada se torna a criança do adulto. E quanto maior a classe social, maior será a separação entre o mundo infantil e o mundo adulto.
“Se a imagem da criança é contraditória, é precisamente porque o adulto e a sociedade nela projetam, ao mesmo tempo, suas aspirações e repulsas. A imagem da criança, é, assim, o reflexo do que o adulto e a sociedade pensam de si mesmos. Mas este reflexo não é ilusão; tende, ao contrário, a tornar-se realidade. Com efeito, a representação da criança assim elaborada transforma-se, pouco a pouco, em realidade da criança. Esta dirige certas exigências ao adulto e à sociedade, em função de suas necessidades essenciais. O adulto e a sociedade respondem de certa maneira a estas exigências: valorizam-nas, aceitam-nas, recusam-nas e as condenam. Assim, reenviam á criança uma imagem de si mesma , do que ela é ou do que deve ser. A criança define-se assim, ela própria, com referência ao que o adulto e a sociedade esperam dela (…) A criança é, assim, o reflexo do que o adulto e a sociedade querem que ela seja e temem que ela se torne, isto é, do que o adulto e a sociedade querem e temem eles próprios tornarem-se.” (06)
Com o trecho apresentado vemos que pensar em como lidamos com a infância, ou com a criança , é, na verdade, pensar em como nós, adultos, nos vemos. Voltando ao trabalho proposto por Cohn, o que pensamos ou como lidamos com a infância está em ligação direta com o que somos e representamos como adultos. Os medos e coragens incentivados por adultos em sua relação com a criança também espelham a sociedade. Portanto, na arte que o homem escolhe fazer para crianças, o adulto também se vê.
Também a visão da produção de arte para crianças apresenta de forma equivalente este espelho social. O entrevistado Bernardes aponta para mais uma questão do teatro infantil como sendo uma porta de entrada para o teatro adulto. A proposição do “Vir-a-ser” apresentada aqui se faz refletida nas relações com a produção da arte:
“Mas uma cultura de quem não faz: vê e acha que aprende a fazer. Porque, na realidade, o teatro infantil é considerado um trampolim: enquanto eu não tenho a minha vaga para fazer teatro adulto, faço teatro infantil que é mais fácil. (…) Porque acha que teatro adulto é uma coisa e teatro infantil é outra.” (07)
As questões a cerca da infância merecem mais estudo e não se esgotam nesta pesquisa. No que diz respeito à criança a qual se destina a obra teatral, vale questionar que tipo de obra se faz necessária apresentar para a formação deste público? Tendo como espectador de teatro infantil, hoje no Rio de Janeiro, o público burguês. Outra questão reflexiva a respeito do estudo: que tipo de adultos queremos encontrar no futuro? E as outras infâncias? Que teatro elas têm direito? Ou como será a recepção de determinados espetáculos a criança, de classe menos privilegiada, terá a mesma de um espetáculo voltado para as altas classes? Ou que tipo de ideologia se faz necessária apresentar para esta infância de hoje? Logo, pensar em teatro para crianças não é apenas encarar a infância como tal, mas sim recriá-la. Citando Márcia Abreu “Diferentes leitores, espectadores, ouvintes, produzem apropriações inventivas – e diferenciadas – dos textos que recebem”.
Notas de Rodapé
02 – ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 2003. p.18.
03 – ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 2003. p.19.
04 – COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil:teoria Análise, didática. São Paulo: Ed. Moderna, 2000.
05 – Entrevista em anexo 2, A. C. BERNARDES
06 – Op.Cit. CHARLOT, Bernard . A mistificação pedagógica. Rio de Janeiro: Zahar,1979. In: ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 2003.
07 – Entrevista em anexo 2, A. C. BERNARDES