Matéria publicada no Jornal do Brasil
Por Flora Sussekind – Rio de Janeiro – 02.04.1982
Que tipo de rei você tem na barriga?
Com a estreia de Cara ou Coroa?, no último sábado no Teatro Cacilda Becker, o Grupo Navegando chegou ao seu quarto espetáculo para crianças, quanto se a nova montagem do grupo, parecem desfilar no palco Ta na Hora, Ta na Hora, Duvi-De-ó-Dó, Passa Passa Tempo, os espetáculos anteriores do grupo. E é impossível não perceber que o grupo já tem história, que uma linguagem própria se repete e, ao mesmo tempo se modifica de um espetáculo para outro.
Mudanças
O que mudou, por exemplo, de Ta na Hora, Ta na Hora, até Cara ou Coroa? Dentre outras coisas, o próprio uso do palco. Se Ta na Hora, Ta na Hora, basicamente um espetáculo de bonecos, ocupava apenas parcela restrita do palco. Cara ou Coroa? Incorpora uma movimentação circense e necessita de um espaço mais amplo, de uma arena.
Se, de inicio o eixo do trabalho do Grupo Navegando era o boneco, a cada nova peça foram surgindo novos elementos, e agora é o trabalho do ator-manipulador a mola mestra de Cara ou Coroa? A cada novo espetáculo do Navegando foi-se atribuindo maior importância ao ator. E a um tipo de trabalho misto de manipulação e interpretação. Não é só por trás do telão, por trás dos bonecos que se realiza o trabalho dos atores. Bonecos e atores funcionam como duplos e o que passa com uns será reproduzido pelos outros.
Como em Cara ou Coroa?, onde histórias de reis e rainhas são narradas primeiro com bonecos, depois por atores. Primeiro de longe, em miniaturas; depois ampliadas mais próximas. Num jogo bastante interessante com o olhar do espectador, impossibilitado de manter-se sempre com os olhos fixos num mesmo ponto. Do mesmo modo que a encenação do Navegando recorre a diferentes linguagens, a diferentes pontos-de-vistas, também se ampliam as possibilidades de percepção do espectador.
Ora se utilizam o fundo da cena e a linguagem dos bonecos. Ora um imenso telão que se de certa forma avisa o que será visto, ora atores na boca de cena. Ponto-de-vista diversos que ainda se ampliaram em Cara ou Coroa? Com a inclusão de um coral que narra, cantando, as situações vividas, seja por atores, seja por bonecos. É como se o espetáculo se perguntasse: Qual a melhor narração? Qual a linguagem mais eficiente? A linguagem plástica dos bonecos telões? A palavra cantada dos músicos e do coral? A movimentação dos atores? Perguntas que, ao invés de respondidas, dão o tom do espetáculo e fazem de Cara ou Coroa? Um belo confronto de diferentes linguagens e pontos-de-vistas cênicos. Por isso, talvez o grupo tenha optado pela arena. Porque se trata de um espaço adequado para os confrontos e porque amplo o suficiente para abrigar em pé d igualdade esses diferentes elementos. Em pé de igualdade porque não se opta por este ou aquele. Uma linguagem parece contracenar com a outra. Como numa das melhores cenas de Cara ou Coroa?, onde Fábio Pilar, vestido de rei, tenta livrar-se de um mosquito invisível e irritante, fabricado pelos ruídos de um dos músicos. Parece travar-se uma luta entre o som e os movimentos desesperados do ator.
Mas o que se vê mesmo é a excelente complementaridade entre as duas linguagens, entre música e interpretação, entre um rei desesperado e um mosquito invisível. Complementaridade que irá marcar todo o espetáculo.
A história
E, se o Grupo Navegando já tem história, Cara ou Coroa, seu novo trabalho, trabalho tem. Como conta Lúcia Coelho, responsável pelo texto e pela direção do espetáculo junto com Caíque Botkay: “Surgiu a partir de um momento vivido por duas meninas. A mais moça sentada numa poltrona com ares de rainha dava as ordens: Pega ali minha revistinha. Quero meu almoço. Arruma meu quarto. E conseguiu ser servida até a ”súdita” parar, pensar e dizer: “você pensa que tem um rei na barriga?”. Imediatamente a rainha destronada se levantou, tirou a coroa para desenhar e nascer, sem nem saber o primeiro passo para o texto de Cara ou Coroa?
Foi assim, a partir de uma situação vivida pela filha mais nova de Lúcia Coelho e de desenho seu que se estruturou o espetáculo. O que explica em parte a sedução que exerce sobre os espectadores infantis. O ponto de partida foi uma experiência infantil cotidiana. Foi tomar ao pé da letra a pergunta:” Você pensa que tem um rei na barriga? ” E inventar reis e rainhas, tirando-os da barriga e fazendo deles personagens especialmente cômicos. Como fizera a filha de Lúcia Coelho ao se sentir “destronada”: passa essa experiência para o papel, faz dela um desenho. Desenho cheio de transparência, através das quais se enxerga um rei sorridente na barriga de uma pequena rainha, um rei que sai da barriga e aparece em pé de igualdade com ela, no canto da folha. Desenho que serve de base para as transformações que se assistem em cena para o belíssimo Rei que funciona como cenário móvel da peça e de cuja barriga saem bonecos, atores e castelos. Numa sucessão de situações cômicas envolvendo reais e rainhas que abandonam ou perdem o poder. E encontram um contraponto “realista” nas tarefas cotidianas como “escovar os dentes”, “estudar”, “tomar banho”, capazes de tirar reis e rainhas da barriga de qualquer um. Criança ou adulto rei ou súdito, cara ou coroa. Num belo espetáculo que tomando por base um desenho faz dele teatro e cenário para discutir a vivência infantil. Ou como explica Lúcia Coelho: “Para soltar os reis e criar”.