Ainda há preconceitos a derrubar, como o de que a obra teatral infantil, por melhor que seja, é sempre ‘menor’ que a de adultos

Os tempos realmente mudaram desde que comecei a produzir teatro para crianças, há mais de 20 anos.  Houve uma melhora real em termos de possibilidades de se levantar fundos para produzir os espetáculos (editais, concursos, leis de incentivo, etc.).  Por conta disso, os grupos tiveram de correr atrás da profissionalização de suas produções.  Os artistas tiveram de aprender a apresentar projetos bem elaborados e consistentes em termos de conteúdo e de orçamento.  Como todos esses mecanismos para se conseguir dinheiro exigem uma prestação de contas, a organização administrativa das companhias também se aprimorou.  Isso fez com que os resultados artísticos das produções fossem cada vez melhores, mais inovadores e ousados.

A imprensa escrita está atenta a esse movimento e tem dado um espaço significativo para divulgação dos espetáculos infantis.  Embora outros veículos como a televisão e o rádio não tenham o hábito e o interesse de abrir a sua pauta para essa linguagem artística.

Temos um panorama animador de grupos e produções de alto nível e um público que cresce a cada dia.  Mas, apesar dessas conquistas, lidamos ainda com algumas questões que não acompanharam essa evolução e que ainda precisam ser discutidas.  O disparate dos valores de cachê dos espetáculos infantis em relação aos espetáculos adultos é uma delas.  O teatro infantil “vale menos”.

Mero entretenimento?

Essa diferença reflete outra coisa: o “valor” enquanto arte que se dá às produções infantis.  As produções teatrais para crianças não são tratadas como obras de arte.  Em geral, são consideradas apenas como entretenimento, lazer ou ferramentas pedagógicas.  Assim sendo, a diferença de valor monetário traduz apenas essa distorção sobre o valor artístico das montagens.

Por conta disso, as companhias teatrais têm de se virar para manter a qualidade e o profissionalismo de suas produções, pagando aos profissionais menos do que valem.  O teatro infantil ainda depende da boa vontade dos artistas e profissionais envolvidos, que trabalham muitas vezes recebendo pouco ou nada pelos ensaios e um cachê bem enxuto pelas apresentações.

Assim, para manter uma companhia teatral, é preciso vender muitos espetáculos para conseguir levantar um montante razoável.  Muitas vezes aceitando-se condições precárias, espaços inadequados, maratonas de várias sessões no mesmo dia, às vezes, até, mudando de local.  Uma maratona insana para amealhar alguns reais no final.  Desgaste da equipe e do equipamento.

Quem decide?

Mas a discussão sobre o valor artístico de um espetáculo para crianças não se esgota aí.  Pais, professores e, até administradores de teatro muitas vezes não entendem essa questão. Pensando nisso, podemos discutir esta classificação: “infantil”, pois quem decide normalmente que peça assistir são os pais e professores.  Os espetáculos, embora sejam direcionados para as crianças, têm de se comunicar e agradar aos adultos também.  Ouvimos muitas vezes comentários como: “É para criança, mas sabe que eu gostei muito?” ou “Vocês são ótimos!  Deveriam fazer teatro adulto também!” Comentários absolutamente preconceituosos, que revelam que as coisas feitas para crianças, por melhores que sejam, são consideradas menores do que a arte feita para adultos.  Por que a criança não tem direito a uma apreciação estética?  Por que o que se faz para elas tem de ensinar, distrair, entreter…  Por que não podemos levar a reflexão, a atenção, a possibilidade do mergulho na obra em silêncio?

Já ouvi profissionais que contratam teatro infantil comentando um determinado espetáculo: “Não sei se as crianças gostam.  Ficam muito quietas…  Não participam…” Crianças quietas são o maior sintoma de que estão gostando do que estão vendo.  Assistir em silêncio também é participar e interagir.  Uma participação mais reflexiva e intimista, sem histeria e gritaria e que, talvez, toque mais fundo em cada um.

Muitas escolas já entenderam o que é teatro e o potencial de significados e conteúdos que se pode explorar a partir de um espetáculo.  Mas ainda há um longo trabalho a se fazer.  Em outros estabelecimentos de ensino ainda falta a compreensão de que teatro para crianças é arte e, como tal, deve ser tratado e não como “atividade”.

Recreio

Numa escola particular tive a bizarra experiência de ouvir: “Quanto tempo tem a sua peça? É que temos um probleminha com o horário do recreio…  Dá para encurtar um pouco?” Claro que eu disse que não seria possível.  Um espetáculo tem uma concepção artística que não pode ser retalhada segundo as necessidades do cafezinho dos professores.  Pois no meio do espetáculo, a responsável pela biblioteca da escola levantou-se, foi até a frente do palco e colocou um papel no chão onde estava escrito “5 minutos”.  Não consigo imaginar qual seria a expectativa dela em relação à minha atitude.  Segui em frente e fui até o fim, apesar de perceber um movimento e uma falação por parte dos professores na plateia.  Perguntei depois o que ela esperava que eu fizesse diante do seu comunicado.  A bibliotecária me disse que se demorasse muito os professores iriam se levantar e levar as turmas embora!  O espetáculo fazia parte da Semana da Cultura.  Eles sabiam o tempo de duração da peça (45 minutos), pois tinham sido informados pelo material enviado.  O espetáculo começou no horário programado.  O tema do espetáculo era assunto de estudo dos alunos que assistiram.  Mesmo assim tivemos essa recepção.

Muitos pais não incluem o teatro no cardápio cultural que oferecem a seus filhos e, sim, no cardápio de recreação.  Outros, por sua vez, acompanham o trabalho dos grupos, das produções, estão atentos ao conteúdo e à qualidade dos espetáculos.

Os adultos precisam entender a criança como um ser em formação, que necessita adquirir um repertório estético e artístico para construir seu espírito crítico e saber discernir entre uma obra de arte e um mero entretenimento.

Por tudo isso, quem faz teatro para crianças tem de prestar atenção às suas produções.  Temos de atender a quem já tem uma expectativa positiva sobre nossa arte, agregar novos espectadores e torná-los cada vez mais exigentes.

Ana Luísa Lacombe

É atriz, diretora artística do Grupo Faz e Conta e membro do Centro de Referência do Teatro para a Infância.

Obs.
Este texto, já publicado anteriormente pelo jornal ‘O Estado de S.Paulo’,  foi escrito originalmente para o  1º Encontro de Teatro Infantil do Teatro Alfa – Discutindo a Cena para Crianças, ocorrido em outubro de 2008. Posteriormente foi publicado no Site Pecinha É a Vovozinha.