O lugar é ideal: um palco ainda com alguns adereços da última montagem. Quase no proscênio, atores, diretores, iluminadores e outros artistas se reúnem para conversar
sobre teatro, trocar ideias, experiências, enfim: uma espécie de “esta é a sua vida” sem o habitual rosário de lágrimas. Não que tudo fosse festa, mas mesmo dos “acidentes de percurso” tirou-se proveito. Esta celebração teatral, embora preservando o tom intimista da conversa entre amigos, revelou para a plateia importantes etapas do fazer teatral. Na vida e na arte, contou-se o melhor e o pior dos tempos.
Assim aconteceu o Seminário Permanente de Teatro para a Infância e Juventude, versão 1997, promovido pelo diretor Dudu Sandroni no palco do Teatro Ziembinski. Foram sete meses de muito teatro com sete grupos, que se apresentaram na última terça-feira de cada mês, sempre às sete horas da noite. Mais cabalístico impossível.
Em cena, a Cia. de Teatro Atores de Laura, com Daniel Herz e Suzanna Kruger no comando; Sura Berditchevsky; a Cia. Teatral Nosconosco, de Célia Bispo e Roberto Dória; a Cia. de Teatro Medieval, do quarteto Márcia Frederico, Marcos Edom, Ricardo Venâncio e Heloísa Frederico; a Cia. Dramática de Comédia, do diretor João Batista; o trepidante trio Ernesto Piccolo, Rogério Blat e Cristiana Maia, das Oficinas de Criação do Centro de Artes Calouste Gulbenkian e o Grupo Navegando, de Lúcia Coelho.
Quase todos com um passado semelhante – “tudo começou num curso para atores” -, cada companhia tem hoje um estilo próprio, construído ao longo de sua existência. Uma espécie de trabalho que só se aprende fazendo. O teatro em movimento, já tão esquecido pelas encenações de griffe que hoje povoam os nossos palcos.
Nesses encontros, certamente cada espectador se concentrou mais em determinada área. Uns queriam saber dos caminhos da produção, outros se interessaram pelas etapas anteriores à profissionalização, outros pela saudável convivência dos grupos sem protagonistas nem estrelas da companhia.
Entre tantas revelações interessantes, fiquei com o processo de criação dos grupos e companhias, ou o processo de invenção ou, melhor ainda, com o “como é que eles fazem?” Se não pelo excelente resultado que tenho visto em cena ao longo destes sete anos (mais um 7 no caminho) de acompanhamento contínuo, ao menos pelo extremo fascínio que me liga a esses estranhos profissionais que acreditam que assobiar no camarim dá um tremendo azar, ao mesmo tempo que estão certíssimos de que um prego torto achado no cenário lhes trará imensa sorte. Vamos ao teatro.
Ficar com você…
Para a Companhia de Teatro Atores de Laura, tudo começou em 1988, quando Suzanna Kruger e Daniel Herz davam um curso de teatro na Casa de Cultura Laura Alvim. A ideia, porém, era ultrapassar os limites do curso de iniciação e partir para um trabalho mais elaborado. Um dia, aconteceu. Uma turma foi ficando, ficando, e ficou lá por quatro anos, até que o Daniel, sob protestos da Suzanna, que não acredita va mais em grupos, resolveu escrever, junto com o Bruno Levinson, A entrevista. A peça ficou seis meses em cartaz. Depois veio Cartão de embarque, mais seis meses de temporada. Aí o grupo já estava formado e virou Companhia. Companhia num sentido mais amplo, diz o Daniel: “Ao longo do tempo, estamos descobrindo essa proposta de fazer teatro juntos. Fazer teatro em companhia uns dos outros, é isso o que a gente chama de companhia de teatro.”
Hoje, na companhia uns dos outros, os Atores de Laura vão se exercitando de alguma forma, mesmo quando estão em processo de ensaio: aula de voz, de corpo, de teatro, e até recebendo assessoria psicanalítica, com a Evelyn Disitzer. Nada que se pareça com terapia de grupo, diz Suzanna: “E apenas um olhar de fora – quando você está ali no rame-rame, não vê os problemas mais evidentes […] É legal a psicanálise poder atuar fora do consultório trabalhando num grupo de teatro, acompanhando a construção do personagem e o trabalho de direção”.
Percorrendo o caminho inverso ao dos antigos grupos, os Atores de Laura, depois de A entrevista e de Cartão de embarque, encenam sua primeira “criação coletiva”. Romeu e Isolda, talvez o espetáculo mais completo da companhia, nasceu de uma idéia de Daniel Herz de colocar no palco os encontros e os desencontros amorosos entre personagens que não se conheciam, seguindo a estrutura dos quadros de Escher, das figuras que se transformam, e que podem ser olhadas de várias maneiras.
Isso está no palco o tempo inteiro. Romeu e Isolda é um espetáculo que mostra as situações românticas e ridículas do amor em quadros bem interligados. O surpreendente resultado cênico só se mostra possível pela extrema confiança do elenco em seus companheiros e em seus diretores. O mesmo tipo de confiança dos trapezistas que pulam no ar sem rede, com a certeza de que, do outro lado, está o seu partner, pronto para completar o número.
O texto foi criado junto com o grupo – “foi um processo maravilhoso”, diz Daniel. E mesmo a ideia sendo dele, todos assinaram: “Porque acontece muito de as pessoas botarem os atores para improvisar e eles criarem o espetáculo inteiro e depois, na hora de assinar o texto, aparece lá o nome do cara que teve a ideia. Acho isso uma sacanagem. É esse tipo de coisa que mina a relação interna de um grupo. No meu caso, o que me motiva é a saúde do grupo e não uma projeção pessoal imediata”.
Decote, inspirado na obra de Nelson Rodrigues, o último espetáculo coletivo da companhia, também nasceu de uma ideia. De uma ideia complicada, como admite o Daniel. Eles definitivamente não queriam montar um texto original de Nelson e, sim, alguma coisa com as características de sua obra. Isto é, queriam juntar num mesmo texto o futebol, as situações passionais rodriguianas e a questão do coro, já embutida em algumas peças do autor. Não existia um texto com todos estes requisitos. Mais uma vez, a vontade de estarem em companhia uns dos outros decide a questão. Suzanna diz que pensou: “A gente quer mais é montar um texto do Nelson Rodrigues, ou a gente quer mais é trabalhar com esse grupo de pessoas?” O Daniel arremata: “Decidimos fazer disso um desafio diferente: criar as situações necessárias para nossa história. Procuramos entender esse universo, os valores humanos por trás dos personagens rodriguianos, o banal e o sublime, as perversões sendo perdoadas pelas grandes paixões. Enfim, a gente começou a emburacar e, de pois de mergulhar no universo rodriguiano por três meses, a lógica rodriguiana estava instaurada dentro do grupo”.
A Cia. de Teatro Atores de Laura, ao longo de sua existência, foi convocando para estar também em “companhia de” alguns profissionais de carreira já bem construída em suas áreas, como a cenógrafa Lídia Kosovski e o iluminador Aurélio de Simoni.
Aurélio, integrante da companhia desde os tempos dos ensaios no porão da Casa de Cultura Laura Alvim, classifica o trabalho do grupo como “um teatro que é feito com várias pulsações ao mesmo tempo”. Sobre o seu trabalho com o grupo diz Aurélio: “[…] sei que o meu processo evoluiu junto com eles, porque criar luz é mostrar o trabalho dos outros. Não estou querendo minimizar a forma ou o conteúdo do meu trabalho. Procuro, com minha luz, trazer esse processo de criação do grupo para a plateia sem competir com o que está sendo feito no palco, sem desviar a atenção do público. Porque a razão do teatro continua sendo a plateia, embora muita gente faça teatro hoje pensando que a razão do espetáculo está no palco. A razão do teatro continua sendo a plateia. É pra ela que a gente faz teatro. E essa companhia faz esse tipo de teatro”.
Lídia Kosovski chegou para os últimos três espetáculos – Decote, A casa bem-assombrada e O julgamento – e fala de sua experiência: “Essa possibilidade de trocar experiências numa situação completamente distinta, que é a situação de grupo, é o que faz a gente ter tesão pelo trabalho. Querer pagar pra ver. A entrega é de outra ordem. Você pode ver o trabalho de um grupo caminhando, evoluindo e tendo continuidade, o que é uma experiência difícil de acontecer: poder pensar junto, interferir num processo, não como um profissional que está sendo escolhido porque pode interferir naquele acontecimento isolado, naquela montagem particular. Quer dizer, às vezes você é chamado e você cria junto, mas o nível de interferência, o nível de construção, as possibilidades de você jogar semente mesmo, com uma intimidade… A questão da intimidade é muito especial. Ela traz um dado… Uma intimidade artística, uma intimidade no produzir, não só pessoal. Então é um ganho, é uma oportunidade”.
De todos os depoimentos dos integrantes da Cia. de Teatro Atores de Laura, o mais simples e talvez o que ofereça a maior contribuição para a preparação dos atores da nova geração seja o de Clara Linhart: “Tem uma coisa muito legal que o Daniel e a Suzanna sempre falam: tudo o que vamos fazer, como atores, está dentro de nós. Se você vai interpretar um ladrão, tem um pouquinho de ladrão dentro de você, e basta exacerbar um pouquinho esse lado. Acho que, na verdade, muitos temas abordados nas nossas peças não têm muito a ver conosco, porque nós somos muito jovens. Tem coisas que realmente são difíceis pra gente entrar em contato, mas a Evelyn nos ajuda muito nesses casos. Os temas rodriguianos foram difíceis. Eu lembro de um exercício que ela fez para trabalhar o lado sádico e o masoquista. A princípio, você pensa: ‘Ah, que nada, não tenho nada disso’. E era um exercício tão simples – ficar brincando com o outro com uma caneta. Mas, durante o exercício, você acaba percebendo que seria capaz de ficar horas torturando seu colega com a caneta. E isso demonstra que todos os sentimentos estão dentro da gente”.
É nós conosco mesmo
Conheci a Cia. Teatral Nosconosco em janeiro de 91, num espetáculo no Teatro da UFF. A peça era o Sonho de uma noite de verão. Um Shakespeare para crianças não era lá uma grande novidade, outros encenadores já haviam se arriscado a adaptar clássicos da dramaturgia para o palco do teatro infantil, mas o espetáculo que estava em cena contrariava todas as expectativas. Atores iniciantes, alguns ainda com muito medo do palco, conseguiam mostrar um espetáculo grandioso, sem exageros carnavalescos, na medida do bom gosto. Ao final do espetáculo, um inevitável encontro com a dupla de diretores Célia Bispo e Roberto Dória. A perplexidade acabou se expressando na seguinte pergunta: “de quem é esse espetáculo?” A resposta era simples e reveladora: “Nosso, dos atores”. E de lá sumiram sem mais fazer contato, até a estreia seguinte. Uma prática que observaram até há bem pouco tempo, quando resolveram falar do seu trabalho neste Seminário. O que eles não sabem é que, a partir do segundo espetáculo, O inspetor geral,também uma produção faraônica mas já fora do circuito alternativo – Grajaú e Tijuca Tênis Clube -, apresentado no Teatro Tereza Rachel, eles ficaram conhecidos como “aquela gente riquíssima que tem uma escola de teatro em Jacarepaguá”. Mais Nosconosco impossível.
A Cia. Teatral Nosconosco foi criada em 1989, a partir de um projeto da Célia Bispo e do Roberto Dória para a UERJ: um curso de extensão universitária que propunha a adaptação de clássicos do teatro para o público infantil. Desse curso, saiu a primeira montagem deSonho de uma noite de verão, a partir da qual foi formada a companhia.
A Cia. Teatral Nosconosco, já consolidada, perdeu sua característica de curso de formação de atores, mas não parou de se exercitar. Como diz o Roberto: “[…] o importante é frisar que o processo continua. O trabalho original se desenvolve permanentemente e é tão importante quanto o espetáculo que resulta desse trabalho. Isso significa que não me interessa produzir um espetáculo porque o texto é interessante ou porque as condições são favoráveis, mas porque, de alguma forma, a gente tem esse espetáculo na gente, organicamente. Cada pedaço, cada parte desse espetáculo é fundamental para cada um dos atores que compõem esse espetáculo. Se a gente acrescenta ou tira alguma coisa, as pessoas se sentem mutiladas. O mesmo acontece quando a gente bota alguma coisa além daquilo que naturalmente surge. E as coisas vão acontecendo assim“.
Alguns atores, alguns grupos têm aquele espetáculo divisor de águas. O antes e o depois de determinada peça, e o eterno sofrimento de descobrir como fazer melhor, ou têm até mesmo um fracasso marcante em sua trajetória. No caso da Nosconosco, esse marco – positivo, é bom dizer – foi O Arlequim servidor de dois amos, de Goldoni.
A construção do espetáculo propiciou um profundo mergu lho na commedia dell’arte. O méto do da loucura é revelado aqui por Roberto Dória: “Fomos atrás de uma série de roteiros da commedia dell’arte e começamos a distribuir os textos para o grupo, aleatoriamente. Cada um escolhia o roteiro que tinha achado mais interessante. Nós explicávamos: “Olha, isso aí não tem fala, vocês vão ter que improvisar, mas não pode falar. Pode ter som, música, pode ter o que quiser, mas não pode ter fala”.
O processo de criação da Nosconosco, para o Arlequim, entre tantas outras coisas, incluiu um exaustivo estudo sobre as cores dos figurinos dos personagens e o seu significado, a utilização da máscara na commedia dell’arte, a opinião de vários autores sobre as encenações etc. etc. Nessa época, recebi os mais enlouquecidos releases da companhia. Um deles destacava que existiam 7 teatros em Veneza, quando Goldoni nasceu. Pensei: não vai dar pra acompanhar.
A dura jornada é gravada em vídeo. Todos os exercícios de improvisação são vistos, revistos e criticados. Aí começam os ensaios, não com o texto, este só chega um mês antes da estreia do espetáculo. O que eles fazem então? Roberto explica melhor: “Aí a gente começa os ensaios, que não são com texto, são com cenas subdivididas em unidades e, dentro dessas unidades, são elaborados roteiros para que haja improvisação, quer dizer, a gente cria alguma coisa, mas também quer que eles criem outras coisas pra misturar a isso e ver se funciona. Aí vai se construindo o espetáculo. Então, num dado momento, um dos atores é o Arlequim. No outro, ele é o Pantaleão. Há esse revezamento e aquele que se sair melhor, naturalmente, acaba ficando com o personagem. Mas sem essa preocupação de testar quem é o melhor. É todo um processo, com unidade – não adianta ter um puta Pantaleão e os outros personagens não funcionarem bem em relação a esse Pantaleão. Depois, filmamos para ver o que funciona e o que não funciona naquele roteiro improvisado e tentamos aperfeiçoar. A criação vai acontecendo, com a participação de todos”.
Constroem o espetáculo, o cenário, o figurino e tudo o que for preciso. Constroem um espetáculo dentro do outro. Assim, salvo algum grande engano, nasceu a carroça do Arlequim. Mais do que um adereço cênico, a carroça cenográfica do Arlequim caminha agora em outros espetáculos da companhia e, se não está em cena, vem na alma. Assim foi em O barbeiro de Sevilha, último espetáculo encenado pela companhia, ou mesmo no Folia de Reis, em que diretores e atores atuaram como convidados. A Célia confirma: “Nossos espetáculos mantêm sempre as mesmas características. Um grupo de atores chega para representar alguma coisa. Tem sempre um narrador, um personagem mudo, tem aquele que faz a cena e tem o grupo que critica a cena através do gestual. Com 0 barbeiro, veio a opção pelo folclore: usar a festa de Bumba-meu-boi – nessas festas, os bonecos sempre contam uma história. E foi isso que nós tentamos fazer: chegava um grupo de atores em procissão, carregando as cadeiras, carregando guarda-chuvas e aí se estabelecia que era uma festa de Bumba. O folclore corria por fora e a música da ópera, as inserções, corriam por dentro, porque não queríamos deixar de passar para as crianças a questão da inserção. Nada é gratuito. Pode não funcionar, pode não ser a melhor solução, mas não é gratuito”.
Pode-se dizer que a Nosconosco cria por afetividade. No Arlequim, nasceu a oficina de máscaras. Em O barbeiro, as máscaras estavam em cena. Estavam também os bonecos da oficina de títeres e alguma inserção do folclore brasileiro na obra de Beaumarchais. Uma heresia para os teóricos, aqueles com quilos de doutorado sobre a arte teatral para crianças, mas que, raramente, são encontrados numa plateia de espetáculo infantil. São esses teóricos que geralmente sabem exatamente o que é ou o que não é para criança. Roberto Dória fala desse tema tão polêmico – o imaginário infantil: “Quando construo o espetáculo tenho que responder uma outra questão: como fazer tudo funcionar? O imaginário da criança, a forma de comunicação com esse público, acaba sendo uma consequência. Não vou fazer o espetáculo em função da criança, não posso fazer isso porque não é bom. Tenho uma ordem de valores a ser seguida em função do processo criativo e de uma certa forma de linguagem. Quando a gente fala em linguagem, pensa em comunicar alguma coisa a alguém. Para que isso ocorra, tem que haver um código”.
Isso não fica só na teoria, os espetáculos da Cia. Teatral Nosconosco, antes de chegarem ao teatro, passam pela severa avaliação de um público mais do que diversificado. Nessas apresentações, acompanhadas de múltiplas atividades artísticas – desenho, pintura, interpretação da história – os depoimentos são gravados em vídeos que servem de material para possíveis cortes ou para que se construa mais alguma cena de ligação. Enfim: um exercício de generosidade onde todos saem ganhando.
É assim a Nosconosco e quem define melhor o espírito da companhia é um dos seus atores: “Não tem essa de ‘eu sou o ator, eu sou o diretor, eu sou isso ou aquilo’. Um ajuda o outro. Se alguém está com dificuldade, as pessoas conversam. Acho que é isso que me prende à companhia. Não é só o trabalho, é a amizade. É raro, num grupo de teatro, haver uma ligação de amizade tão forte – um é a escada do outro pra tudo, em cena e fora dela. Não rola uma competição… Talvez seja até por isso que fazemos esses espetáculos felizes, alegres, com tesão mesmo. Aliás, a melhor palavra pra definir essa companhia é tesão – tesão pelo teatro, tesão pela companhia, tesão pelo outro… Acho que é por isso que é legal, que vale a pena a gente estar sempre junto, ralando, discutindo e se amando”.
O Feijão e o Sonho
O esquema é mais ou menos assim: eles enlouquecem, ela viabiliza. A dupla de diretor e autor, Ernesto Piccolo e Rogério Blat, forma com a produtora Cristiana Maia uma química exata: o feijão e o sonho. O pé no chão dessas cabeças tão interplanetárias.
Falando assim, parece que a produtora Cristiana Maia, é a durona de plantão do Centro de Artes Calouste Gulbenkian, mas não é verdade. A Cristiana, ou melhor, a Dadá, está, desde 1993, à frente do Teatro Gonzaguinha, no Calouste, onde implantou o Projeto Quatro Cantos – peças de qualidade apresentadas de graça para as crianças da comunidade. Também é dela a ideia de trazer para o Centro de Artes a dupla Neco (Ernesto Piccolo) e Rogério e suas oficinas teatrais. O que ela não sabia, na verdade, era a proporção que o evento ia assumir. Os espetáculos, que começaram com 30 atores em cena, já devem estar chegando a 120 sem problemas. E o diretor quer mais. O Rogério diz que vai escrever um monólogo, o Neco diz que faz com 40, a Dadá ameaça sair do país. No final tudo se acerta.
Neco diz que conheceu o Rogério quando dirigia o Fantasma de Canterville, no Teatro Nelson Rodrigues. A Dadá corrige e diz que foi num seminário de teatro infantil no Centro Cultural Banco do Brasil. Eles concordam. Nessa época, o Neco dava aula no Centro Cultural Cândido Mendes e diz que ficava pensando: “quero um autor pra trabalhar comigo”. Quem conhece o Neco deve saber que ele não ficava só pensando, ele devia é ficar falando isso o dia inteiro, com o porteiro, com a moça da padaria, com o segurança do Shopping da Gávea. Enfim, a Dadá tomou uma providência e ordenou: “chama o Rogério”.
Pra que não reste nenhuma dúvida, está mais do que claro que foi ela quem começou. Fala a Dadá: “Em 94, o Rogério e o Neco começaram a desenvolver um trabalho de oficinas de criação com alunos do Centro Cultural Cândido Mendes. Eles davam aula juntos, lá. Um dia, Neco me trouxe a primeira sinopse que o Rogério escreveu. Fiquei louca com a ideia do Funk-se e propus que a gente levasse o trabalho para o Calouste. No Cândido Mendes, o curso era pago e a proposta, no Calouste, era oferecer de graça. Qualquer pessoa que quisesse fazer teatro, experimentar o que é subir num palco, participar do que é um processo de um criação e construção de um espetáculo poderia tentar. E foi aí que a gente abriu para a vinda de outros profissionais, e inaugurou outras oficinas, todas ligadas às artes cênicas. Fizemos o Funk-se e, na verdade, uma coisa foi puxando a outra. Depois vieram Com o Rio na barriga e os outros espetáculos. Já havia a ideia de manter no Calouste Gulbenkian projetos dedicados a esse público. Até então, o Centro se dedicava mais aos adultos, à terceira idade. Eu sentia que faltava o público jovem lá dentro”.
Neco e Rogério, que na época do Funk-se, se entregaram às mais enlouquecedoras pesquisas musicais e de comportamento, criaram, a partir desse espetáculo, o projeto “Rio enquanto é tempo”, um projeto teatral para a cidade que falava de seus maiores problemas, como a falta de saneamento, a violência e outras drogas.
Com seu especial estilo hard-core, Rogério Blat fala do seu trabalho: “Estamos tendo uma oportunidade legal de botar em prática nossas ideias. No Calouste, a gente faz as maiores loucuras do mundo e nunca ninguém, nem a diretora do Calouste, nem a Dadá, nem a Helena Severo ou quem quer que seja chegou pra gente e falou assim: ‘lh, mas não pode falar sobre cocaína, não pode falar sobre homossexualismo. Ih, não é bom falar sobre a madame que virou chefe do tráfico.’ Nunca. Acho que é por isso que o trabalho da gente dá certo. Porque não estamos comprometidos com ninguém. Temos uma liberdade ampla e irrestrita. E o resultado disso acaba chamando a atenção […]”.
A total liberdade de criação tem gerado grandes espetáculos. Espetáculos com uma estética própria, falando de perto para a sua plateia. É Rogério quem fala mais uma vez de como tudo funciona: “Eu tinha o funk como tema, mas não tinha a menor ideia do que ia escrever. […] Começamos a fazer exercícios, chamar gente, fazer pesquisa. Criamos um formulário e pedimos aos alunos para irem pesquisar na rua. […] Começamos a chamar umas galeras para conversar com o pessoal do elenco. Em cima disso, um monte de ideias pintaram. Comecei a elaborar o que eu queria fazer. Comecei a escrever exercícios. Até hoje a gente faz isso. Paralelamente ao que eu já estava escrevendo em casa, propunha exercícios pra botar em prática o que eu escrevia. Era bárbaro, porque eu via a coisa acontecer ali: o que rolava e o que não rolava. As ideias que davam certo e as ideias que não davam. E esse processo virou uma coisa efetiva…”.
E isso certamente é um privilégio para qualquer autor – ver seu trabalho testado em cena. O contrário seria acreditar no brilho isolado de gênios da dramaturgia. Eles existem, é claro, mas são poucos e cada vez mais raros. O processo de criação de Rogério Blat vem sendo usado com sucesso nas escolas de playwriting, a diferença é que ele tem um elenco só pra ele em tempo integral. Um presente dos deuses.
Muito semelhante ao método Blat, o método Piccolo também é o de fazer fazendo. Criar no palco em parceria com o elenco. Com enredo sempre inspirado no Rio de Janeiro, o diretor fala com humor do seu processo de criação: “Rogério me mostra a sinopse, vou olhando e pensando: ah, vou fazer essa cena aqui, uma cena legal, correria no Rio, vai ter um arrastão. Aí boto todo mundo correndo, o elenco fazendo… O pessoal começa a improvisar em cima da sinopse dele, dando umas coordenadas…”.
Completando o método, não é sem motivo que ele classifica seu sistema como inusitado: “Tem uma tortura que a gente faz, que é o seguinte: como tem muita gente – a gente trabalha com sessenta – quando vem o texto pronto eu dou oportunidade para todo mundo decorar todos os personagens. Então, está aberto, não está nada definido. Não sei quem vai fazer ainda. Aí fica aquele bando de gente maluca decorando. E aí todos têm a oportunidade de fazer. Mas eu falo que a gente faz assentamento de personagem”. O “assentamento do personagem” não chega ao palco sem antes passar por um período de pesquisa. Rogério diz que todos do elenco fazem trabalhos de casa e algumas das descobertas são usadas no texto. Nesse processo, o Neco passa por uma fase de achar o personagem. E isso pode ser tomado ao pé da letra. Quando um personagem faz falta ao elenco, Neco sai pela cidade à procura de um tipo ideal. Assim foi descoberto o Deus do Funk-se e o São Sebastião de Com o Rio na barriga. Com esse tipo de escalação, já estão no elenco dez cariocas das mais variadas profissões: um padeiro, um pipoqueiro, um profético, um flanelinha, e algumas donas de casa. Enfim, como diz o Neco “uma galera bem divertida”.
Para bancar esse sistema nada convencional, não é raro acontecer de o feijão ter que acordar o sonho. De vez em quando, lá no Calouste, o diário de bordo da USS Enterprise também se escreve desse jeito. Fala a Dadá: “Aconteceu uma coisa esse ano, dentro do grupo, que eu, particularmente, achei o maior barato, que foi a iniciativa do próprio elenco de criar uma cooperativa para que, através dessa cooperativa eles começassem a andar com as próprias pernas. Porque o que vinha acontecendo é que a gente tinha uma relação quase paternalista. A gente dava tudo pronto. Eles não tinham muita participação, nem entendiam muito como era aquele mecanismo. Eles ensaiavam e aí tinha aquele figurino pronto, recebiam na mão o adereço. A gente, de alguma maneira, vem nesse processo de fazer com que eles passem a ser parte integrante disso, passem também a tomar parte nas oficinas como uma companhia, uma possível companhia que produz teatro e tem que andar com as próprias pernas. E pra isso é preciso se profissionalizar…. A cooperativa já é o início dessa caminhada. Quem sabe, a gente até pode ganhar dinheiro com a bilheteria? Enfim, é um processo que está começando”.
Fechando o bloco, um diálogo retirado da conversa acontecida no palco do Ziembinski e que define muito bem convivência do trio Rogério, Neco e Dadá:
Dadá: É disso que eu estou falando, desse profissionalismo. Perder um pouco essa visão romântica de teatro, entender que a gente precisa viver disso. (aplausos.)
Rogério: É verdade.
Dadá: Viu, Neco?
Neco: Eu estou doido pra viver disso.
Rogério: É, mas tem uma coisa que é fundamental. Olha, sabe de uma coisa, eu acho que tem uma frase: “Se você quer ter público às nove horas da noite, comece a trabalhar às nove horas da manhã.”
Dadá: Mas é disso que eu estou falando.
A Assinatura
Ela estava andando na praia do Leme quando passou uma gaivota por cima da sua cabeça. A sombra do pássaro na areia completou o pensamento. Assim foi encontrado o final de Peter Pan, espetáculo que, entre outros prêmios, deu o Molière a Sura Berditchevsky.
Sura cria por intuição, aliás, tudo na vida dela tem essa inspiração. Ela se comunica em vários idiomas, mesmo sem conhecê-los. Sozinha, viajando pela Espanha, fez a pé o caminho de Andaluzia. Por lá, descobriu que fala catalão. Sua filha, Natasha, diz que o que ela não sabe, inventa.
O teatro inventivo de Sura Berditchevsky tem dado bons frutos. A simplicidade calculada de seus textos não tem a proposta de contar uma história linear. Da vida, aproveita cada detalhe, que invariavelmente chega à cena em tom cáustico e completamente dentro do espetáculo. Seu humor ídiche lhe dá a capacidade de rir de si mesma. Assim sua incursão literária – Um peixe fora d’água, Amor de cão e Os olhos da cara – é chamada por ela de “minhas obras completas”. Na verdade, sua obra não se completa, é arte em movimento.
Movimento para todos os que trabalham a seu lado. Seu último espetáculo, Como nasce o palhaço, texto e direção seus, é, na verdade, uma peça para seis atores, no máximo. No palco, entretanto, estão doze, todos com funções, não só adereçando a cena. Até chegar ao palco, o espetáculo passou por diversas etapas de produção. Para a direção de movimento ela trouxe de Recife o Zdenek Hampl, um coreógrafo do balé de Praga, com quem já havia trabalhado no Peter Pan. Zdenek trouxe na bagagem as músicas pesquisadas pelos irmãos Duprat, Ricardo e Rogério, este último um ativo participante da Tropicália. Para os figurinos, chamou Biza Vianna. Enfim, o quase pocket para a Casa da Gávea, virou um espetaclão em todos os sentidos.
Isso acontece desde o começo de sua carreira. Sura começou a fazer teatro no 3º ano ginasial, no Franco-Brasileiro, “uma escola supertradicional, e numa época de efervescência política.” Isso foi em 67; em 70, ela já estava no Tablado. Do Tablado é ela quem fala : “No Tablado eu encontrei a liberdade de criação […] Na ocasião, só a Maria Clara dava aula… Nós tínhamos as outras mestras, as outras professoras que eram as profissionais que trabalhavam lá, como Kalma Murtinho, que estava sempre ali, Anna Letycia, o Jorginho de Carvalho, já ali na luz […] Nós tínhamos aula de teatro com a Clara, mas nós respirávamos o mesmo ar que profissionais de teatro dessa grandeza […] o que aconteceu foi que nós tínhamos assim o estilo de trabalho da Clara, quer dizer a metodologia das aulas, jogos dramáticos e improvisação, e fomos criando um estilo próprio, mas isso não foi uma coisa rápida, foi uma coisa que até você entender, elaborar… Fui entender muito tempo depois, depois de muita psicanálise, que, ali, eu já estava criando meu estilo. Tinha uma coisa muito unida, muito coesa, mas cada um ia criando, desenhando um perfil, uma trajetória de trabalho”.
Do Tablado, a Sura foi chamada para fazer televisão. Resistiu bastante, achava que não pegava bem. Foi fazer cinema: “Tive a sorte de trabalhar com alguns cineastas super importantes que tinham vindo do cinema novo – Oswaldo Caldeira, Geraldo Sarno, excelentes documentaristas. Fiz muitos curtas e filmes bastante interessantes: Ajuricaba, A história de Delmiro Gouveia e, um dos últimos, Os sete gatinhos, do Neville de Almeida, que já era uma outra tendência do cinema. Só pra dar um panorama geral, a própria história do cinema foi mudando, o teatro foi mudando, o país foi mudando. E aí eu fui chamada pelo Ziembinski pra ir pra televisão”.
Foi pra televisão e ficou uma década fazendo novelas. Nessa época, sofreu dupla patrulha ideológica: o pessoal do teatro achava que ela estava se vendendo para a TV. O pessoal da TV dizia que ela era ligada ao teatro infantil e ao Tablado. É um bom retrato da época.
Na televisão, teve que desaprender algumas regras básicas do ator: “Então, lidar com a imagem era muito forte. Outra coisa era ter que lidar com uma representação tão naturalista, tipo ‘fala rápido, joga pra fora’. Era muito difícil. Me lembro que o Daniel Filho falava assim: ‘joga fora, texto é pra jogar fora!’ Mas eu tinha aprendido de outro jeito e queria falar o texto com embocadura, como os atores mais velhos falavam. Foi uma coisa louca. Fazia análise quatro vezes por semana. Havia coisas bacanas também, claro, eu é que não sabia lidar muito bem com aquilo tudo”.
Correndo na contramão do sucesso fácil, afinal era a época da novela Marron glacê e o Rio de Janeiro era uma festa com a inauguração do Circo Voador, Sura, investe em sua primeira direção. A peça era a Valsa n°6, de Nelson Rodrigues, representada pela iniciante Cláudia Jimenez, à meia-noite, no Teatro do Ibam. Mal comparando, e a trama tem a cor local da época, isso equivalia aos grandes empresários que largavam tudo para morar em Arraial d’Ajuda. Ela fala do resultado: “Foi minha primeira direção…”
“Um monólogo, uma solidão terrível, ficamos sete meses trabalhando com o acompanhamento de um psicólogo junguiano que, todo dia, no final, perguntava pra gente o que a gente tinha sonhado, uma invasão total dos nossos sonhos… Foi um trabalho maravilhoso, riquíssimo… mas não tinha público…. era no Ibam à meia-noite… eu ligava pras pessoas e dizia: ‘por favor, o que está acontecendo?’ A questão não era a falta de público, mas: que teatro é esse que eu estou fazendo? Por que é que estou fazendo isso? Isso presta? Isso não presta? As questões na época eram do tipo: fazer um teatro em função da tendência, do mercado ou seguir o desejo de auto expressão? […] era um momento de crise violenta, mas eu tinha a convicção de que, se o artista tem necessidade de falar, com certeza alguém teria interesse em escutar”.
A crise durou pouco tempo. O espetáculo decolou em outras praças e acabou inaugurando o Teatro Paiol em Curitiba. A marca, no entanto, ficou e foi a primeira e única vez em que Sura trabalhou com tão pouca gente: “Hoje entendo que a minha expressão enquanto diretora ou autora é através de espetáculos grandes, eu já até tentei fazer menores, mas é uma necessidade trabalhar com muita gente e trabalhar com tudo o que tem no teatro”.
O processo criativo de Sura Berditchevsky é hoje a assinatura de seus trabalhos: muita gente no palco e na técnica. Espetáculos grandiosos sem o tom feérico de costume. Assim foi no Peter Pan, Um peixe fora d’água e Diário de um adolescente hipocondríaco. Seu curso para atores, passa pelo teatro e pela vida: “O que aconteceu é que a concepção de todos os meus espetáculos integra, desde o início, a equipe de criação. Até com a garotada o sistema é o mesmo: ‘nós estamos trabalhando aqui e vamos ter que respeitar o vizinho.’ É uma questão de civilidade, de respeito ao próximo, de educação; não adianta você fazer um espetáculo se você não tem isso como princípio, se você não vive isso internamente”.
Isso é encarado literalmente. Em meio aos ensaios, acontece o que ela costuma chamar de “O Sermão da Montanha”. Nele, tudo é levado em conta: o respeito pelo teatro, o palco em que estão pisando, o ato de contracenar sem derrubar o companheiro e a crítica a outros vícios teatrais que porventura se insinuem.
Trabalhando hoje com seu elenco de jovens atores, Sura não faz concessões à pouca idade deles: “Como diretora, gosto muito de traduzir pro ator o que ele está fazendo… é um exercício que me fascina. Nessa tradução, seja através da palavra ou do gesto, é que dá pra colocar em prática esse sentido do coletivo, do grupo, do respeito que você tem que ter pelo outro. Acho que essa é a essência do contracenar, do fazer teatro, do trabalhar com o todo, então é importantíssimo, na hora em que eu estou dirigindo, falo até porque são coisas muito grandes, trabalhar, sim, pra plateia, pra quem vai ver, mas ter também esse trabalho interno […] Eu gosto de trabalhar o indivíduo, me atrai, eu acredito no ser humano”.
Quatro por quatro
A Cia. de Teatro Medieval, de Márcia Frederico, Marcos Edom, Heloísa Frederico e Ricardo Venâncio, completa, este ano, dez anos de existência. Sua formação original nasceu em um curso de Literatura Dramática na CAL, quando Márcia e alguns outros alunos se interessaram por esse teatro do final da Idade Média, mais especificamente, pela farsa medieval.
Como mais uma grande ideia que nasce da dificuldade, esse primeiro grupo não se contentou com o “material de sempre” e, como diz a Márcia, era impossível que, num período tão longo, com a farsa saindo das igrejas e ganhando a rua, “ganhando realmente a voz do povo”, fossem tão poucos os registros desta forma dramática. Começaram a procurar outras peças. Montaram 0 pastelão e a torta e Moço que casou com mulher braba. Quando o curso terminou, estava formado o grupo, mas ainda numa base muito emocional, como classifica a Márcia, do tipo: uma grande família que se adora, mas se não der certo “a gente se estapeia e vai embora”. Enfim, uma história muito comum na trajetória dos grupos que se formaram e se diluíram com a convivência.
Nesse momento de decisão, e contribuindo para a formação do que é hoje a Cia. de Teatro Medieval, entra em cena, embora ela faça questão de dizer que não é povo de teatro, a pedagoga e advogada Carmen Esteia e sua técnica de grupo operativo. Carmen classifica-a como a administração do caos, sem abafar o caos. Uma estratégia de trabalhar com os componentes do grupo, suas vitórias, derrotas e vaidades. Uma espécie de provocação calculada e dirigida para manter a saudável convivência. A Carmen define assim sua intervenção: “Às vezes, eu sou o Robinson Crusoe tentando fazer a constituição e eles estão querendo explodir a ilha e, às vezes, eles estão querendo fazer a constituição e eu estou explodindo a ilha. A gente alterna isso dentro do grupo”.
A Cia. de Teatro Medieval funciona hoje basicamente com quatro pessoas. A Márcia explica: “o Ricardo Venâncio, nosso diretor artístico, que dirige os espetáculos, cria cenários, figurinos, adereços, máscaras e a coreografia (ele trabalha muito com ginás tica rítmica e cria, com elementos como arco, bola, fitas e cordas, uma linguagem teatral própria); a Heloísa, que se encarrega de toda a pesquisa histórica e literária, além da tradução de textos, e que divide com o Ricardo a preocupação com o visual da companhia; o Marcos Edom, na direção de produção, administração da companhia e planejamento estratégico; e eu, que fico com a parte de adaptação e criação dos textos, além da produção e, claro, do trabalho de atriz, que é meu primeiro foco”.
A atriz Márcia Frederico, que ganhou o prêmio Molière por seu trabalho em O segredo bem guarda do, atua na companhia também como autora dos textos. Textos encontrados às vezes em alemão gótico, em inglês arcaico, traduzidos pela Heloísa e transpostos para o palco pela Márcia. Sua paixão pela farsa medieval passa, naturalmente, por seu trabalho de atriz: “A farsa era uma linguagem específica do ator, uma forma de relação direta do ator com a platéia. Tanto que Eric Bentley diz que ‘a farsa é a quintessência do teatro’. Porque você mostra o tempo todo, na cena, que aquilo é teatro. Você não tem nenhuma pretensão de iludir o público com algum tom de realismo: ao contrário, a farsa é uma forma exageradamente teatral, em que você mascara e desmascara os personagens e, mesmo estando na pele de uma criatura, você, como ator, comunica-se com a plateia. Essa relação muito direta e muito desnuda era uma das coisas que mais me interessavam”.
O segredo bem guardado, peça da Cia. de Teatro Medieval que inaugurou o fazer teatral no Paço Imperial, começava de uma maneira muito interessante. Antes de chegar ao espetáculo propriamente dito, o espectador participava de uma outra encenação chamada Farsa medieval passo a passo. Nos largos corredores do Paço, a companhia apresentava à plateia as diversas etapas do seu teatro. Por lá, em compartimentos divididos como as mansions do teatro medieval, o público conversava com a atriz que mostrava como improvisar nos figurinos, outro ator mostrava a técnica do equilibrista, enfim, uma peça dentro da outra, o que reflete bem o espírito da companhia. Heloísa Frederico fala melhor sobre o assunto: “Até os improvisos têm tudo a ver com a história da companhia. Por exemplo: precisava-se fazer o figurino, mas ninguém sabia costurar, não havia costureira. Fazer o quê? Se não havia dinheiro para contratar uma costureira, o jeito era fazer como os medievais: pegar uma roupa e botar por cima da outra. Pegar a perna da calça, juntar, fazer uma manga. Nessa época, eu não estava trabalhando diretamente, eu só fazia uma espécie de assessoria na parte de pesquisa. E eu dizia: o teatro, para mim, tem que ser maior do que a vida. E se tem que ser maior do que a vida, tem que ser maior inclusive no figurino – o ator tem que sobressair no meio do povo. Então, se a manga da camisa tem que ser maior do que a manga de camisa do dia-a-dia, pega a perna da calça, enfia no braço, vai empurrando, empurrando, e ela vai sanfonando, vai virando uma roupa medieval. Havia, portanto, um aspecto medieval, de dificuldade e improvisação, que aproximava a Idade Média do Brasil e aproximava a Idade Média da própria companhia. Porque havia ricos e pobres, como há aqui, hoje, e os pobres também se viravam para sobreviver”.
Esse teatro maior que a vida, de que a Heloísa fala, se confunde às vezes com o trabalho da companhia. O pensar teatral não se esgota em teorias, é preciso suar a camisa a maior parte do tempo. O espetáculo, pensado como um todo, não acontece sem que antes seja muito conversado. A Márcia diz que, como autora, encontra no diretor Ricardo Venâncio um parceiro ideal. As ideias se completam. Ela, como autora, acha que o enredo “dá bom caldo”, ele, como diretor, soluciona a cena que ela, às vezes, não está conseguindo concluir. Quando o texto está quase pronto, entra em cena o que eles chamam de “o advogado do diabo”, o Marcos Edom, uma espécie de demolidor profissional que só pára de agir quando todos desistem do projeto. Aí começa uma nova fase do processo. É a Márcia quem conta: “[…] o Marcos entra muito como o “advogado do diabo” […] fazendo aquelas perguntas que incomodam: ‘[…] Mas que tema é esse? Amor? As pessoas não estão querendo falar, ouvir falar de amor nesse momento! Que coisa açucarada!’ Aí a gente começa: ‘Não, mas espera aí. Eu acho que pode ser interessante […] Olha essa aqui.’ Ele: ‘Não! Isso aí não, não, não, não, não.’ Mais um pouco e a gente começa a mudar de ideia e a pensar: ‘É, realmente, era uma babaquice a gente fazer aquilo agora e tal’. Aí ele começa, ‘Não, mas você sabe que eu acho interessante. Ué! Vocês não vão defender a ideia? Se vocês não sabem defender a ideia pra mim, não vão saber defender pra ninguém.’ É um testezinho que ele adora fazer”.
E tem dado certo. Os afinadíssimos espetáculos da Cia. de Teatro Medieval, mesmo antes da estreia, já provocam grande curiosidade. No ano de Shakuntalá foram os 50 metros de seda que o Ricardo Venâncio trouxe da Índia para os figurinos. Naquela época, toda a imprensa especializada ficou “íntima” de Kalidasa, um autor indiano do século V. Em Oelixir do amor, eles viviam pela cidade procurando uma trilha raríssima, que sabiam que tinha sido gravada. Em Mestre por um triz, descobriram Hans Sachs e mais a ópera Os mestres cantores de Nuremberg.
Descobrindo e “convencendo”, um projeto da companhia se estende para além do palco na medida da curiosidade que provoca. Um dia, conversando com a Heloísa descobri que ela “não gostava” dos figurinos de Médico camponês (feito apenas por dois atores, a Márcia e o Ricardo, coringando diversos personagens) porque tinha tido que fazer dois trajes iguais. A produção em série não agradava à artista plástica. Assim, cada traje, foi tratado como uma obra única. O corte era o mesmo, a pintura era semelhante mas não igual, o que era um detalhe de suma importância para a artista. Esse foi o jeito que ela encontrou para realizar seu trabalho sem ofender a arte.
A Márcia finaliza, desvendando um pouco do mistério que cerca essa companhia que, em plena era dos modelos extremamente violentos de heróis e super-heróis, consegue manter a essência do seu trabalho, sem perder a comunicação com a jovem plateia: “[…] a gente vai e volta muito e vai experimentando, quer dizer, como a gente tem essa possibilidade de experimentar e de poder fazer, a gente está ali no processo de criação direto e vai recosturando o tempo todo […]”.
A Incrível História…
Em 1994, a Cia. Dramática de Comédia ocupava o Espaço 3 do Teatro Villa-Lobos com um dos mais inusitados títulos do teatro infantil de todos os tempos: A incrível história do homem que bebia xixi. A esquisitice, porém, ficava só no título – a peça, muito bem-acabada, era uma versão do diretor João Batista para O médico volante, de Molière.
No elenco: Roberto Guimarães, Sônia Praça, Giselda Mauler e Eduardo Rieche. Na técnica: Mauro Leite, no figurino, Doris Rollemberg, no cenário e Renato Machado na iluminação. Enfim: o mesmo núcleo original dessa companhia que continua atuante. João Batista, o diretor, fala um pouco dessa trajetória: “Começamos com a intenção de fazer uma espécie de estudo prático sobre comédia, direcionado para crianças. Eu tinha uma ideia de trabalhar com textos de Molière, mais especificamente, com a farsa improvisada típica dacommedia dell’arte italiana e a peça escolhida foi O médico volante. Adaptei o texto e dei a ele o nome de A incrível história do homem que bebia xixi O espetáculo teve uma repercussão legal. Depois desse espetáculo, começamos a nos perguntar o que iríamos fazer. Eu já trabalhava há oito anos com teatro e, naquele momento, pensava em desenvolver uma experiência que fosse cumulativa, buscando a construção de um caminho, de uma linguagem. Resolvemos continuar investindo em comédias para crianças. O trabalho seguinte foi Volpone, uma peça de Ben Jonson, contemporâneo de Shakespeare. A peça tinha a mesma linha do primeiro trabalho, o Xixi, mas era menos ingênua, falava de morte, de dinheiro. Em seguida, foi a vez dos autores brasileiros, apesar de eu achar que a gente estava sempre buscando a comédia brasileira, mesmo quando adaptávamos textos estrangeiros; partimos então para autores nacionais e fizemos o Esconde-esconde, adaptação de Judas em sábado de Aleluia, de Martins Pena, que teve uma repercussão muito legal. Por conta disso, resolvemos apostar em mais uma comédia brasileira, no caso, o Epaminondas, adaptação de um conto do Artur Azevedo”.
Na verdade, a Cia. Dramática de Comédia não vem montando apenas clássicos do humor, revisitados ou adaptados para o público infantil. A definição desse trabalho é mais precisa nas palavras do ator Roberto Guimarães, que considera os clássicos um mix de todas as comédias, preparado num liquidificador cultural. Assim, na trilha musical do Xixi, ouvia-se Waldick Soriano. Em Volpone, a platéia se transformava numa torcida organizada de programa de auditório. A cada espetáculo, uma surpresa.
João Batista acha que um fator determinante para que a companhia tenha conseguido criar uma marca tão definida é o fato de a equipe de criação acompanhar o processo de início a fim. Renato Machado, que está com a companhia desde o início, fala da sua participação no Xixi: “Tinha pouquíssimo dinheiro e o João me disse que tinha grana pra alugar uns dez refletores, eu pensei: o que eu vou fazer com dez refletores? E aí a gente começa a ver os ensaios, trabalhar junto, conhecer a outra pessoa, imaginar… porque aí, no momento em que a gente ia pro Espaço 3 do Villa-Lobos, eu virei e disse: “João, acho que o melhor é a gente fazer sem refletor nenhum. Pra ter dez, é melhor não ter nenhum, e a gente dá um jeito de fazer.” Por incrível que pareça, ele topou a ideia, parecia uma completa bobagem e ele topou. E a gente fez sem nenhum refletor e era muito legal, como resultado era super bom, e aí entra a questão da imaginação, de conhecer e confiar no outro…”.
Renato Machado não deve ter se dado conta, mas a sua luz para o Xixi é um marco na história do teatro infantil. A falta de “recursos financeiros”, substituídos pela criatividade, resultou no que hoje as fichas técnicas chamam de “adereços de luz”. Os refletores foram substituídos por pequenas lâmpadas pintadas à mão, que ficavam presas a fios aparentes que desciam do teto do teatro. A iluminação de Renato Machado para as peças da companhia que vieram depois foi um aprimoramento dessa técnica. Em Epaminondas, a mágica se faz em cena com precisa interferência. Aos olhos do público, o ambiente se modifica sem que se descubra como é feito. O Roberto Guimarães já contou o truque. São engrenagens escondidas no cenário que têm que ser puxadas na hora certa. Segundo Renato, isso só é possível quando está se trabalhando em sintonia: “[…] sei que posso fazer com a luz uma coisa que dependa dos atores, porque sei que eles vão fazer o que tiver que ser feito: se for preciso puxar um negócio, eu sei que vai ter alguém pra puxar. Confio neles, da mesma forma que eles têm confiança no meu trabalho […] A confiança vem com o tempo, com o fazer mais de uma vez, com o conhecer a pessoa melhor. É importante a continuidade do trabalho. Esse é o sentido da companhia, na minha opinião…”
Essa companhia, tão sintonizada em suas parcerias, diz que não se reúne todo dia porque é difícil conciliar os horários. Mas, quando estão em processo de montagem, as reuniões são diárias, porque eles fazem de tudo dentro da companhia: produção, divulgação e a criação conjunta do espetáculo.
João Batista diz que até hoje ele é quem tem proposto o texto a ser montado. Sempre um clássico da comédia mundial, pois acha interessante dar à criança a oportunidade de ver coisas diferentes: “[…] um negócio que aposte na inteligência das crianças […] não existem coisas proibidas, claro, tem que se pensar logicamente: é pra criança, então vamos por aqui, mas não se trata de, necessariamente, facilitar as coisas […] é como se, a cada trabalho, a gente pudesse estudar um pouquinho de comédia. A gente tem trabalhado nesse sentido, fazendo uma coisa legal internamente”.
Como diretor, o João – e os atores confirmam e apoiam – tem obsessão por detalhes: “Sou meio obsessivo com precisão de ator. Precisão no sentido de gestos, de desenho, de limpeza. Temos conseguido fazer isso agora de uma forma mais relaxada, sem que se perca a precisão, o detalhe. Talvez precisão não seja exatamente a palavra. O teatro tem que ter detalhe. O ator e o diretor têm que ser capazes de dizer coisas através de detalhes”.
Esse teatro de detalhes, de precisão de ator e de trabalho corporal, tem também como importante característica o apelo visual. O João Batista fala dessa marca registrada: “A gente tem um visual muito forte, que vem de coisas que a gente gosta. O Mauro Leite, que é meu irmão e figurinista, gosta muito de cor e lida com cor de forma muito legal. Uma coisa que foi determinante no caso do Xixi, que foi o primeiro espetáculo e de que muita gente falava, era o visual. O figurino era muito colorido, o cenário era colorido, a luz também muito colorida, cor em cima de cor, mas trabalhada de uma forma muito legal. No caso específico do cenário, não gosto de nada muito concreto: a gente praticamente não usa móveis, no Volpone tinha um banco e aquilo me incomodava terrivelmente. Eu gosto muito de ator; gosto de ver em cena as pessoas com quem eu trabalho, e acho que você até pode fazer um trabalho super legal com cenário tradicional, enfim, mas eu não sei fazer, não gosto. Eu vejo o cenário como um espaço a ser ocupado e é preciso que se tenha liberdade para ocupá-lo, para isso ele tem que ser um espaço que dê vontade de você entrar ali e fazer um monte de coisas. A gente trabalha muitas vezes com chão e fundo mas eu acho que pra Doris Rollemberg isso não tem sido um problema, uma prisão. A gente consegue pensar, inclusive, no caso do cenário, ela me ajuda a pensar em como usar aquele espaço.
Ela não entrega o cenário e pronto, ela sugere uma porção de coisas, diz: ‘esse espaço é legal, se for usado assim, assado’, é a coisa do trabalho de grupo mesmo […] muita gente sai dos nossos espetáculos comentando o visual, cenário, figurino, mas o que me enche os olhos é o conjunto e a utilização daquilo pelos atores. Apesar de eles estarem ali com a cara pintada de branco, num espaço colorido, acho que eles estão em evidência, pelo menos eu tento que estejam sempre”.
No palco dos atores, Eduardo Rieche, o Epaminondas do último espetáculo para crianças da companhia, que agora se prepara para estrear um espetáculo para o público adulto, também com a Cia. Dramática de Comédia, resume a trajetória do grupo, falando desse prazer de estar em cena: “… a nossa história, como Cia. Dramática de Comédia, passa pela produção de quatro espetáculos voltados pra criança. Na nossa história como companhia, ainda não há um espetáculo voltado pro público adulto, tanto que este é o nosso projeto pro ano que vem […] Acho que prazer tem que ter sempre, seja no teatro pra adulto ou pra criança, se não tiver, não tem sentido fazer”.
De repente, o teatro
Este foi o ano de Lúcia Coelho. O espetáculo Papagneno, sob sua direção, arrebatou nove Prêmios, entre Mambembe e Coca-Cola. Na direção, ela ganhou os dois. O caso de amor de Lúcia Coelho com o teatro começou assim meio que de modo transverso, mas, pelo resultado, valeu o caminho.
Lúcia dava aula de artes no Bennett na época em que a matéria era obrigatória e com o programa feito pelo diretor da escola. Ela achava um horror mas o Bennett oferecia aos professores “casa, comida e roupa lavada”, uma boa oferta para uma moça que não queria mais morar na casa dos pais. Nessa época, na escola, cada professor era obrigado a organizar um evento para cada uma das datas cívicas. Eles detestavam, mas Lúcia achava que era bem interessante e foi pegando essa tarefa como uma extensão do seu trabalho.
Por um desses acasos da vida, uma professora de artes ia se aposentar. Uma amiga da Lúcia que, como ela diz, “faz teatro na vida”, comunicou à direção da escola que a Lúcia Coelho era especialista em teatro de bonecos. A coisa pegou. A “especialista” contratada pegava receitas de massa e ia fazendo os seus bonecos com técnica intuitiva. Por um outro golpe de sorte, chegando da Argentina, Ilo Krugli desembarca no Rio. O encontro muda tudo. E a Lúcia quem conta: “[…] Fui fazer o curso dele. E, ao mesmo tempo que fazia o curso, dava aula e fui aprendendo. E foi uma paixão daquelas arrebatadoras. Comecei a fazer todos os trabalhos das professoras […] Fazia tudo em teatro de bonecos. Eu tenho esses textos todos e depois, ao longo da minha carreira profissional, eu os remontei. Porque foram experiências maravilhosas que ficaram, assim, pra sempre. A minha escola foi essa. Eu aprendia com as crianças e as crianças aprendiam comigo. Havia uma troca muito grande. O que eu acho um barato na educação é essa coisa de você trocar: as crianças sabem muito. E, com isso, fui batalhando. Comecei a achar que eu servia para aquilo – ‘eu gosto disso’, pensava. Quando conseguimos acabar com a obrigatoriedade das aulas de artes, de teatro, partimos para uma experiência diferente. Fundamos no Bennett um teatro amador – acho que em 1964 ou 65. E aí eu peguei um grupo de alunos, de nove, dez anos, que optou por fazer teatro, e comecei do nada. Levantávamos os interesses do grupo, iniciamos com textos conhecidos e, depois, partimos para textos dos próprios alunos, que era o que nós mais gostávamos de fazer. Como era matéria opcional, eles podiam continuar no ano seguinte. Esses meninos foram ficando, passaram do primeiro para o segundo grau e, quando eles estavam terminando o segundo grau e iam embora, eu resolvi ir com eles. Deixei a escola. Eu tinha 19 anos de trabalho lá, mas não aguentei ficar. O grupo tinha ficado nove anos junto. Com esse grupo, fundei o Navegando. Assim nasceu a história do Navegando. Todos eles eram alunos meus”.
O Navegando já tem 20 anos de história pra contar. Saídos do Bennett, Daniel Dantas, Karen Acioly, Andréa Dantas, Cica Modesto, Fábio Pillar, entre outros, cada um com sua carreira solo, fazem parte dessa turma que tirou a professora da escola.
A Lúcia diz que a ideia não era montar um grupo, mas um espetáculo. Assim nasceu o Tá na hora, primeiro espetáculo do Navegando, até hoje em cartaz. A ideia, correndo na contramão da lógica comum, não começava pelo texto, mas pelos bonecos. Cada um inventou o seu e só depois a história foi criada. Ela diz que escolheram o circo porque no circo pode tudo. Durante um bom tempo, os espetáculos foram criados dessa maneira: “Às vezes, partindo de personagens, outras, de uma situação que um de nós contava, uma coisa engraçada. Um dos espetáculos nasceu de um desenho, outro, de uma experiência de vida. Todas as histórias do Navegando foram assim. Nada era pensado com antecedência, planejado. Essa coisa mais livre é muito mais gostosa porque você não tem expectativa nenhuma”.
O tempo de descompromisso se instalou no Núcleo de Artes da Urca (NAU), numa casa da mãe da Lucia, que virou uma escola, e onde o grupo trabalhava. No auge dos anos 70, por lá ficavam varando a madrugada em suas pesquisas de boneco de animação, sem nenhuma pauta marcada para estreia. A escola cresceu, a casa ficou pequena e os navegantes ficaram sem sede.
Ganharam a concorrência para o Teatro Villa-Lobos. Por lá ficaram dois anos, tendo que renovar o repertório de seis em seis meses. O tempo das longas jornadas noite a dentro foi passando. Mesmo antes disso, Lúcia Coelho e o Navegando passaram pelo que se costuma chamar de “a maldição do segundo espetáculo que tem que ser melhor do que o anterior”. É a fase do sofrimento que só perde a importância quando contada muitos anos depois.
A técnica do boneco evoluiu para a técnica do ator. Hoje, Lúcia Coelho usa com muita propriedade todo esse aprendizado em seus espetáculos: “Em A mulher que matou os peixes, a gente optou pelo não boneco porque, como a Clarice Lispector é tão realista e o boneco é tão fantástico, a gente tirou o fantástico e botou o realismo com animação. Então, tapete vira cachorro, almofada vira gato, dependendo da forma pela qual a atriz manipula as coisas. Eu acho que a Zezé Polessa tem essa facilidade: encher de vida tudo que ela pega. O manipulador-ator aprende com o boneco e com a manipulação. Isso é muito rico. E que nós, brasileiros, não temos a oportunidade de aprender isso. E o boneco tem muito para dar. O ator tem o seu físico, embora ele vá emprestar coisas ao personagem, inventar uma característica psicológica, dar uma alma para aquele personagem, o físico ainda é o dele, ator. Não dá pra mudar de cara. E o boneco não é você. Então, você pode transferir tudo pra ele. É uma coisa maravilhosa. Essa coisa de você descobrir a liberdade, ficar solto, esquecer que você existe, o boneco nos dá. É preciso descobrir essa energia porque se a mão não vibrar, o boneco não vibra, o coração dele não bate, fica tudo um horror. O boneco pode ser lindíssimo mas, se não tem alma, vira alegoria”.
Mais do que uma especialista em manipulação, Lúcia Coelho é uma grande diretora de atores que não perde o senso do espetáculo. Em Papagueno, alguns detalhes de composição de personagens impressionam o público pela sutileza do gesto. No cenário de Cica Modesto – enormes castelos de areia – o pai faz sua visita semanal à filha quando encontra a ex-mulher. Numa dessas passagens de texto de conflito, o ator, sem perder a cena, passa a mão pelos móveis da casa (os castelos) e guarda nos bolsos um punhado de areia. O cheiro da casa, um pouco da casa que ele quer levar, uma lembrança de outros tempos. Um detalhe revelador. A mão da diretora em cena.
Agora diretora do Centro Cultural Gama Filho, na Piedade, Lúcia Coelho, tem realizado um grande trabalho no Teatro Dina Sfat. O Centro tem uma programação diversificada mas, se sobra público nos eventos musicais, o espectador do teatro tem que ser conquistado a cada espetáculo. Mas ela vai navegando contra a maré, sem desistir. No final desse Seminário, por um desses encontros planejados pelos deuses, se encontraram no palco do Ziembinski, a Lúcia e o Aurélio de Simoni, que estava por lá a trabalho. O diálogo dos dois fecha o bloco em perfeita síntese:
Aurélio: Eu acho que esse trabalho que você está fazendo, de conscientizar, levar nossa proposta cultural àquelas pessoas que desconhecem o que é uma atividade de teatro, é um trabalho hercúleo. Porque a verdade é essa: o meu vizinho sabe que eu faço teatro porque de vez em quando ele vê meu nome no jornal, mas ele não sabe o que é a minha atividade. Pra ele, eu sou aquela pessoa…
Lúcia: Que apaga a luz e acende a luz.
Aurélio: Não. Pra ele, eu sou aquela pessoa que conhece aquelas pessoas que aparecem na telinha mágica. Essa é a minha referência para ele. Não meu potencial de trabalho. Então peço a vocês, vocês que estão batalhando pelo público na Zona Oeste, na Zona Norte, que continuem, que não desistam, pelo amor de Deus. Porque, quando o meu vizinho souber o que é teatro, a vida dele vai ficar melhor.
Lucia Cerrone
Jornalista e dramaturga
Obs.
Este artigo foi retirado do quinto volume dos Cadernos de Teatro, editado na gestão de Aderbal Freire-Filho, no Teatro Ziembinski, durante o ano de 1997. Além do texto acima, O Seminário Permanente de Teatro para a Infância e Juventude, com coordenação de Dudu Sandroni, resultou numa série de bate-papos e textos que podem ser encontrados em nosso site:
Textos
Em Boa Companhia – Dudu Sandroni
Uma Boa Relação – Maria Helena Kühner
Bate-Papos
Daniel Herz e Susanna Kuger (Companhia Teatro Atores de Laura)
Sura Berditchevsky
Célia Bispo e Roberto Dória (Companhia Teatral Nosconosco)
Ernesto Piccolo e Rogério Blat (Oficina de Criação de Espetáculos Calouste Bulbenkian)
Marcia Frederico (Companhia de Teatro Medieval)
Lucia Coelho
João Batista (Companhia Dramática de Comédia)