Bases Psicológicas, Pedagógicas, Técnicas e Estéticas para a sua Realização (*)
Desnecessário seria enfatizar que, entre as várias funções do teatro para crianças, uma das mais importantes – talvez a mais importante, é a função de educar. É óbvio que a função de educar não deve ser interpretada meramente no sentido estrito e rigoroso de conduzir, domar ou domesticar. Educar é fornecer os instrumentos intelectuais, morais e éticos necessários à criança (e ao ser humano em geral) visando à sua integração individual, familiar e social, consciente e responsável. Educar é fornecer ao indivíduo condições para percorrer em pouquíssimo tempo o longo e árduo caminho de milênios que levou do homem primitivo ao homem civilizado, através do aprendizado por trial and error (tentativa e erro), ao relacionamento humano autêntico e construtivo, ou seja, a aprender que é preciso respeitar para ser respeitado, e assim garantir a sua tranquilidade pessoal e o bem-estar social.
No palco, devemos criar situações e conflitos que precisam ser resolvidos. E a maneira encontrada para essa solução vai desencadear na criança processos mentais que a levarão a formular conceitos de comportamento e de relacionamento adequados para o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade. Assim, a maior assiduidade da criança ao bom teatro acaba por colocá-la em contato com toda sorte de situações e conflitos, ampliando, por extensão, os seus próprios processos mentais. Através deste mecanismo, o teatro se torna uma das poucas agências educacionais que, ao invés de “fazer a cabeça” da criança (expressão horrorosa, tão em moda nos nossos dias), abre a cabeça da criança, tornando-a apta a avaliar por si mesma o “bom” e o “mau”, o “certo” e o “errado”. Esta criança vai deixando de “engolir sem mastigar” julgamentos apriorísticos baseados nos conceitos deturpados, viciados e falsos (melhor dito, preconceitos) adquiridos por contaminação da maioria dos adultos. Preconceitos e imensurável e estúpido acirramento, que com tanta frequência criam neuroses e acabam sendo os principais responsáveis pelo encaminhamento do adulto ao psiquiatra.
Porém não há dúvida de que o teatro para crianças tanto pode contribuir para a educação como para a deseducação. Depende do grau de competência e seriedade do autor e do diretor, e até mesmo do mais obscuro dos atores. Certa vez perguntaram a Stanislavsky, o grande teatrólogo russo criador do “método” que leva seu nome, como deveria ser o teatro para crianças. Ele pensou um instante e respondeu: “Igual ao dos adultos, só que melhor“. Concordamos, porém em termos, já que os critérios aqui não podem ser absolutos, e sim relativos. Pois, se cada público tem o teatro que merece, por outro lado nenhum teatro pode ir além das possibilidades do seu próprio público. E por isso convém indicar quais as medidas que devem ser postas em prática a fim de preparar públicos cada vez melhores, tanto qualitativa como quantitativamente, para produzir a “reação em cadeia” que, ao dar ao público um teatro cada vez melhor, cria ao mesmo tempo um público cada vez mais exigente e melhor para o teatro.
Portanto, no teatro como na medicina, ao lado das medidas curativas, isto é, a reeducação dos adultos imbuídos de preconceitos – tarefa ingrata, lenta e de resultados duvidosos – teremos de utilizar também e principalmente os métodos profiláticos, a saber: evitar na criança a formação de concepções falsas, desenvolver o interesse pelas coisas de teatro, e, divertindo-a, elevar o nível intelectual e artístico das novas gerações. Desta forma, chegaremos mais depressa ao dia em que o teatro, tanto o infantil como o adulto, poderá contar com um público numeroso, consciente e de padrão cultural elevado.
Assim, fica claro que, enquanto o teatro para adultos deve ser encarado pelo aspecto cultural, o teatro para crianças e adolescentes só pode ser considerado como educativo – o que nos obriga imediatamente a colocá-lo no âmbito da pedagogia (aplicada), lembrando sempre que “o teatro é para a criança, e não a criança para o teatro“, e que a principal finalidade do teatro para crianças não consiste apenas em formar para o futuro um público adulto de boa qualidade, mas implica primordialmente determinadas influências psicológicas de alcance muito maior do que se pensa usualmente. E isto porque todos os acontecimentos do palco passarão a fazer parte do subconsciente da criança, constituindo “engramas” e contribuindo para a formação daquele fabuloso depósito mais ou menos inconsciente de idéias e emoções, que terá posteriormente uma tremenda participação na inteligência, na sensibilidade e no comportamento da pessoa adulta.
Educar uma criança é integrar a sua personalidade dentro da sociedade, sem prejuízo do senso crítico; é iniciar o processo de maturação que se prolongará por toda a existência do indivíduo. Esta integração e este amadurecimento, que constituem a base da saúde mental ideal, requerem uma harmonia perfeita entre o intelecto e as emoções; emoções que necessitam de treino, e este treino das emoções só pode ser conseguido através da participação efetiva em experiências pessoais verdadeiras.
Entretanto, é claro que experiência real, em todas as situações da vida, não é possível nem desejável, especialmente em se tratando de crianças. Constatou-se, porém, que as experiências pessoais imaginadas também podem servir para exercitar e desenvolver as emoções, desde que constituam verdadeiras experiências, vivências acompanhadas de participação afetiva. Podemos, pois, valer-nos de experiências imaginárias, “vicariantes” ou “vicárias”, realizadas por projeção, para, através de expressões emocionais, encarar de perto todas as relações e reações humanas. E o melhor elemento de que dispomos, para isso, é o teatro.
A experiência já demonstrou sobejamente, nos Estados Unidos, na União Soviética e em alguns países europeus onde foram feitas pesquisas sobre o público teatral, que a integração e o amadurecimento da personalidade avançam um passo a cada experiência estética fornecida pelo teatro. E quanto mais verdadeira, autêntica, for a experiência estética, tanto mais profundo será o resultado educativo.
Assim sendo, o valor de uma peça para crianças, ou de uma peça para adolescentes, não deve ser julgado apenas em função da sua popularidade (embora este seja um ingrediente importante), ou do resultado financeiro, mas sim através da sua contribuição para o desenvolvimento intelectual, emocional e estético dos espectadores.
A primeira conclusão de tais fatos é que toda peça para crianças e adolescentes deve apresentar um conflito perfeitamente delineado, com personagens bem caracterizados e uma situação absolutamente clara, para que o jovem espectador, através da identificação com um dos personagens (ou com uma situação) sofra uma experiência, uma vivência pessoal verdadeira, com a correspondente participação emocional. Uma peça sem conflito, sem “nó dramático”, pode até resultar numa contribuição estética de qualidade, mas a permanência dessa contribuição estética e a sua incorporação à personalidade da criança serão duvidosas – justamente por faltar a participação afetiva que só um conflito pode produzir, e porque somente a participação afetiva é capaz de fixar o resultado das experiências vividas.
O segundo princípio básico do teatro para crianças e adolescentes é que o gosto, o interesse e a preferência desse público não podem ser avaliados e julgados diretamente pelos adultos, pois o mundo da criança é para o adulto um mundo diferente, estranho e fechado. Entre as maneiras de avaliar o interesse das crianças, devem ser recusadas e imediatamente postas de lado as seguintes:
1 – Julgar exclusivamente em função das manifestações de entusiasmo ou de júbilo durante o espetáculo. Pois não só é muito fácil provocar essas manifestações das crianças – o que absolutamente não implica boa qualidade do espetáculo – como também é muito difícil distinguir se tais manifestações partem propriamente do público infantil ou se é dos adultos que usualmente estão presentes na platéia, “incentivando” (ou tolhendo) as crianças.
2 – Entrevistar as crianças diretamente. E isto porque nenhum adulto deve pensar ou esperar que uma criança lhe confie a sua opinião real, pois mesmo que a criança estivesse disposta a isso (o que é raro) não saberia como fazê-lo. Além do que, a própria situação de entrevistado cria neste uma inibição. E mesmo que a criança responda, o mais provável é que ele queira “agradar” o adulto e procure dizer o, que imagina que o adulto espera dela.
A única maneira de tentar vislumbrar o que se passa no íntimo de uma criança é através da experiência e da observação, abstraindo tanto quanto possível a situação adulta do observador, aplicando todos os conhecimentos de psicologia infantil e da pedagogia, e empregando o método científico clássico:
a) observação;
b) hipótese para interpretação do fato observado;
c) experiência provocada para verificar a exatidão da hipótese;
d) nova observação, com consequente confirmação ou desmentido da primeira interpretação.
Este processo, que é utilizado há muitos anos na União Soviética e é aplicado também nos Estados Unidos, consiste no seguinte.
O autor escreve uma peça, que supõe apropriada para crianças de determinados limites de idade, entrega-a ao diretor artístico especializado, o qual monta a peça e apresenta-a a um público-padrão, constituído de crianças de idades dentro daqueles limites e com características psicológicas conhecidas. Durante o espetáculo, o diretor artístico, o autor e alguns educadores e especialistas em psicologia infantil observam e anotam todas as reações do público, e tiram fotografias (com infravermelho) sincronizadas palco-platéia em determinadas passagens da peça. E é de acordo com essas observações que a peça será aprovada, modificada ou rejeitada para público daquela faixa etária. Neste último caso, o processo repete-se com públicos de idades maiores ou menores, até se encontrar o público certo para a peça, ou se resolva que ela não serve para crianças, mesmo alterando o texto. (É claro que isto é bem mais difícil no Brasil, por ora, enquanto ainda não se estabeleceu o hábito salutar de se levar as crianças ao teatro em turmas escolares).
Para avaliar o interesse e as preferências do público jovem, o inquérito por escrito pode dar bons resultados, conforme constatamos em experiência realizada pela União Paulista de Educação, com cerca de mil crianças. O inquérito que realizamos baseia-se numa série de perguntas preparadas pelo professor Sólon Borges dos Reis. As perguntas são formuladas por escrito e sem intervenção da professora. O exame e a comparação das respostas darão informações bastante precisas, especialmente se o mesmo inquérito for realizado com o mesmo público depois de diversos espetáculos, com peças diferentes.
De uma forma ou de outra, no teatro para crianças e adolescentes, a peça deve ser apropriada para o público, partindo do ponto de vista deste e não do ponto de vista do adulto. E para tanto precisamos conhecer o público infantil, estudar seu comportamento durante e depois do espetáculo, e apresentar as conclusões aos autores de peças para crianças, para que eles possam produzir textos cada vez melhores e capazes de orientar os jovens, tanto do ponto de vista estético como do ponto de vista pedagógico, sem jamais esquecer o lúdico. Fazemos nossa a frase com que John E. Anderson encerrou o VI Congresso Americano de Teatro para Crianças: “Encerro a minha contribuição para este Congresso com o voto para a maior e melhor observação e estudo das reações das crianças nos teatros, pois uma pessoa sentada a uma escrivaninha, por mais competente que seja, dificilmente poderá nos dizer o que convém às crianças, orientando-nos nesse mundo maravilhoso e cheio de mistério que é a alma infantil.”
O terceiro ponto básico no teatro para crianças decorre do segundo, e é a necessidade de separar o público de acordo com as idades. O desenvolvimento mental, emocional e intelectual é tão diferente nas diversas idades, que apresentar uma peça a um público heterogêneo, formado por crianças de 4 ou 5 anos, ao lado de crianças com 10, 11 ou 12, é simplesmente absurdo, e tão obviamente errado, que dispensa comentários – especialmente se nos lembrarmos de que até para frequentar a escola primária ou o ginásio há limites de idade, de acordo com a legislação. Aliás, a maneira mais lógica e mais viável de separar por idades o público dos espetáculos é em função do ciclo escolar: pré-escola ou Jardim da Infância, escola de 1º grau ou 2º grau, constituindo este último o público do teatro para adolescentes propriamente dito.
Infelizmente, porém, a separação por idade nem sempre é possível entre nós, já que poucas escolas levam os alunos ao teatro, e os pais ainda não desenvolveram o hábito de levar os filhos aos espetáculos teatrais (onde os há), muito menos de verificar a que faixa etária essa ou aquela peça é adequada. Mas nem por isso a separação por idades deixa de ser desejável, e devemos realizá-la sempre que possível, evitando assim que os nossos espetáculos sejam prejudiciais para as crianças pequenas e insuficientes e insatisfatórios para as maiores. E para isso seria bom que os jornais e revistas (e a imprensa em geral) mantivessem sessões permanentes de crítica e informação sobre teatro infantil, para orientação de pais e mestres.
Entrelaçada com a questão da separação por faixas etárias está a questão dos personagens maléficos, as bruxas, os vilões e outros “adversários” necessários. Consideremos aqui dois pontos:
1 – As atitudes dos personagens, as situações em que eles se encontram e os conflitos que enfrentam podem e devem ser dosados e controlados, na medida em que as situações e as personalidades dos personagens sejam tais, que já contenham em si todas as possibilidades de uma solução plausível (e o plausível da criança certamente não exclui o mágico) e satisfatória. Nessas condições, qualquer emoção sofrida pela criança em sua identificação com o personagem só poderá ser benéfica (e catártica), pois servirá para mostrar à criança que as dificuldades devem ser enfrentadas e podem ser vencidas, dominadas ou ultrapassadas. De qualquer forma, o “final feliz” é necessário e importante para a criança, especialmente a menorzinha.
2 – É evidente que a idade das crianças, aqui mais do que em qualquer outro ponto, é elemento de capital importância. Pois o mesmo acontecimento, ou personagem, ou situação, que para uma criança de 10 ou 11 anos seria apenas interessante, às vezes até ingênuo demais, às vezes cômico, ou no máximo emocionante, para uma criança de 5 ou 6 anos pode apresentar-se como terrivelmente dramático ou mesmo constituir motivo de pânico.
Assim sendo, se outras razões não existissem, esta seria suficiente para que em todos os espetáculos para crianças houvesse sempre pelo menos a indicação das idades apropriadas para aquela determinada peça. E esse cuidado é também de capital importância nas peças para pré-adolescentes e adolescentes, pois estes, em consequência das suscetibilidades características da fase que atravessam, tenderão a se afastar dos espetáculos teatrais, se as peças que lhes dermos apresentarem “infantilidades” impróprias para a sua dignidade de “gente grande”. Entretanto, não há dúvida de que existem textos e espetáculos com vários níveis de leitura, que podem ser assistidos com proveito por um público heterogéneo – mas são casos especiais.
O quinto ponto básico a considerar na realização do teatro para crianças e adolescentes é a questão da “participação”. Participação, em última análise, nada mais é do que demonstração de interesse e envolvimento pelo que acontece no palco. A exteriorização desse interesse – que pode chegar à empolgação e à absorção – e que, como sabemos, é o indicador mais importante da qualidade (e comunicabilidade) do espetáculo – pode ser verificada durante a função de duas maneiras principais: pela observação das expressões faciais e corporais do público e pela observação dos ruídos provenientes da plateia. A primeira é mais difícil, pois exige vários observadores; ou implica fotografias, com as consequentes possíveis perturbações e desvios de atenção. Resta-nos, porém, a possibilidade de observar a participação do público através dos ruídos da plateia.
Os ruídos da plateia constituem um dos capítulos mais interessantes do teatro para crianças. Antes de mais nada, porém, é necessário ter-se a certeza de que os ruídos partem do público infantil e não dos adultos que usualmente acompanham as crianças. (Aliás, quanto menos adultos na plateia do teatro para crianças, tanto melhor, pois tanto maior será a receptividade e a espontaneidade das crianças). As manifestações sonoras do público infantil são características e de vários tipos, representando cada um deles coisas totalmente distintas. Boa classificação, completa e concisa, é a de Mrs. Filed, da Arthur Rank Organization: “As plateias infantis são as mais exigentes do mundo. Demonstram a sua aprovação ou desaprovação por cinco tipos diferentes de ruídos. Quando ficam entediados, dizem-no em voz alta ou começam a conversar entre si sobre qualquer outra coisa. Barulho agradável é quando começam a falar e a discutir sobre o que está acontecendo no palco. Barulho delicioso, quando reagem e dão gritos, e melhor ainda quando dão gostosas gargalhadas. Mas, evidentemente, quando estão silenciosas é maravilhoso“. Portanto, o melhor “ruído” da platéia é o silêncio absorto e encantado.
A verificação da qualidade de uma peça através dos ruídos do público deve ser feita, porém, com grande cautela, especialmente no que se refere aos gritos e gargalhadas. Com efeito, esses ruídos tanto podem traduzir uma participação natural e autêntica, como podem ser apenas o resultado de estímulos provocados deliberadamente, “de má fé”, com recursos desprovidos de qualquer conteúdo emocional, ou com situações vulgares e sem significação estética. Estariam nesse caso certas correrias, certos trambolhões realizados em grande parte das peças infantis, e, em especial, as perguntas (em geral nada menos que idiotas ou provocadoras de “delação”) dirigidas pelos atores diretamente ao público, com a intenção de arrancar “respostas” gritadas, que nada mais são senão um berreiro infernal, vulgar e sem sentido, que só produz uma excitação gratuita, que é o oposto da emoção verdadeira.
Entramos assim no terreno da comicidade infantil. Toda peça para crianças deve conter uma grande dose de humor e comicidade, pois a criança precisa de alegria e de risos para descarregar os excedentes de energia nervosa, e, no teatro, para avaliar a tensão das situações dramáticas. É claro, porém, que nem todas as formas de comicidade estão ao alcance da criança, como também aqui cada idade tem as suas limitações próprias no que se refere ao humor. Por exemplo, o paradoxo e a ironia são formas de comicidade de difícil compreensão para a criança, enquanto que mesmo o trocadilho banal pode tornar-se difícil quando a idade implica recursos vocabulares muito reduzidos. Entretanto, as brincadeiras com palavras, o non sense verbal, dentro do nível de compreensão de cada grupo etário, são bem aceitas e muito úteis.
Partindo do princípio de que não é a simples apreensão do fato acontecido o que suscita a comicidade e gera o riso, pois sabemos que o mesmo acontecimento pode provocar tanto a emoção quanto a hilaridade, somos forçados a admitir que a comicidade só se realiza quando o indivíduo em questão é capaz de realizar a chamada “representação efabuladora”, ou seja, agir como se ele contasse para si mesmo a história referente ao fato cómico. Portanto, a comicidade depende do grau de inteligência, de sensibilidade, de cultura e de educação do indivíduo que ri. Isso explica por que a comicidade infantil é tão limitada e depende tanto da idade de quem ri. (E justifica em parte o “humor do trambolhão”, quando usado com parcimônia, já que é um tipo de humor “circense”, acessível até às crianças bem pequenas).
O indivíduo que ri admite implicitamente relações com a personagem de quem ri, e reconhece o mundo em que este se movimenta. É por essa razão que as formas de comicidade são o humor do absurdo, do disparate (non sense) e o “humor da cumplicidade”. O humor da cumplicidade é a nosso ver uma forma de humor bem característica da criança, e consiste em fazê-la participar do segredo da personagem (heroi ou não). Trata-se aqui de legítimo humour, pois não há gargalhadas mas apenas um sorriso feliz e silencioso. Nada deleita mais o público infantil do que um heroi, personagem superior, deixá-lo participar de alguma coisa que as outras personagens, comuns, parecem ignorar. E, finalmente; não nos esqueçamos de que a coisa mais difícil e mais maravilhosa em teatro para crianças é conseguir o silêncio da platéia. Há quem ache, absurda e desavisadamente, que uma criança sentada e quieta no seu encantamento está “passiva” – mal sabem estes que a atenção concentrada, a absorção mental, é uma atividade, e das mais nobres, pois atividade intelectual e emocional.
Tudo o que dissemos até aqui refere-se naturalmente a teatro para crianças representado por adultos (ou em alguns casos por estudantes dos cursos mais adiantados), e é aos adultos que compete realizá-lo, posto que só atores adultos e amadurecidos serão capazes de apresentar espetáculos de boa qualidade artística e educacional. Só eles – competentes e experientes – serão capazes de estabelecer as necessárias relações entre palco e platéia, orientando e controlando as reações do público infantil. Sem falar que um teatro estável é um trabalho profissional árduo, certamente inadequado para crianças. Entretanto, o teatro representado pelas próprias crianças e adolescentes deve ser igualmente estimulado – na escola, na biblioteca, no clube – não só porque também constitui importante elemento de formação do hábito do teatro, como, principalmente, porque contribui como poderoso fator educativo para o desenvolvimento da personalidade “social” da criança, graças ao espírito de cooperação que caracteriza o trabalho em equipe, indispensável à realização de um espetáculo teatral. Sem falar no fator de desenvolvimento intelectual implícito no estudo e ensaio de um texto teatral. E há ainda o importantíssimo capítulo do playmaking, do “jogo dramático”, que deve ser estimulado – deveria mesmo fazer parte do currículo – nas escolas, desde tenra idade, atividade essa na qual as crianças “brincam” suas histórias espontaneamente, mas sob orientação das professoras ou de especialistas, e que se constitui em possante auxiliar no desenvolvimento emocional e na socialização da criança – mas isto já é outro assunto, que não cabe neste trabalho.
Em nenhum caso, porém, sejam representados por adulto ou por criança, os espetáculos devem ser feitos “a portas abertas”. A entrada do público infantil em qualquer representação teatral deve ser sempre mediante ingressos adquiridos – a preços acessíveis, mesmo simbólicos, mas adquiridos. E de preferência com lugares numerados. Ou, em alguns casos, quando não for paga, a entrada deverá ser feita mediante convites, ou ingressos-convites, obtidos antecipadamente. De uma forma ou outra, é importante que a criança perceba que deve dispender alguma coisa – dinheiro, tempo ou esforço – para assistir um espetáculo teatral. O teatro tem de se dar ao respeito. E essa será uma das melhores maneiras de, desde o começo, darmos o devido valor ao teatro perante o público ainda em formação. E, na mesma ordem de ideias, devemos abolir o abominável costume de distribuir balas ou presentinhos, ou, pior ainda, de realizar sorteios antes, durante o intervalo, ou depois da representação. O teatro é atividade de lazer cultural que constitui em si mesma um prêmio que dispensa quaisquer chamarizes, engodos ou “subornos”.
Todas essas considerações, em última análise, nada mais são do que uma maneira de desenvolver aquela frase de Stanislavsky: “O teatro para crianças deve ser igual ao dos adultos, só que melhor“.
Por Júlio Gouveia
Diretor de teatro e de televisão, criador do Sítio do Pica-Pau Amarelo, na TV Tupi
(*) Ensaio-tese apresentado no 1º Congresso Brasileiro de Teatro, no Rio de Janeiro, em 1954