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O presente artigo tem sua origem numa palestra pronunciada por mim em Curitiba, no Festival de Teatro Infantil e de Bonecos, que se realizou em Fevereiro de 1975.

O tema escolhido foi devido ao fato de ter eu realizado algumas experiências do que se convencional chamar “teatro de participação”, principalmente com crianças e por tal tipo de manifestação teatral ter sido objeto de controvérsia e alguns mal entendidos.

Entendo “teatro de participação” como uma forma de comunicação ator-espectador onde o contato com o público se realiza não apenas no nível emocional mas também nos níveis físico e espacial.

Para que isso seja possível, a estrutura formal da história (se uma história houver) deve ser quebrada, mantendo-se apenas uma espinha dorsal como ponto de referência e que permita o máximo de variações possíveis em torno do tema abordado sem que o sentido da história desenvolvida fuja ao controle nem dos atores nem do público.

Dessa forma, o público mantém um certo poder de decisão sobre o desenrolar e o desfecho do evento na medida em que, ao atuar física, espacial e emocionalmente, influi sobre o tema desenvolvido, sobre os atores e sobre o espaço físico onde se desenvolve o acontecimento.

Várias experiências foram desenvolvidas obedecendo a esse esquema, com maiores ou menores níveis de desestruturação ou, em outras palavras, de possibilidades abertas ao público para interferir no acontecimento.

Senti necessidade de relatar algumas das experiências realizadas porque penso que é essa a melhor forma de definir a expressão “teatro de participação” e, também, porque as experiências relatadas levantam uma série de problemas e dúvidas interessantes para posterior discussão.

São as seguintes:

– O estranho cavaleiro

– Experiência cineticarribiental

– A ilha mágica do Contador de estórias

– Experiências de Rua I e II

 A lenda da pedra de fogo

Vale dizer que o relato a que me referi será o mais sucinto possível. As duas primeiras foram realizadas por um grupo sem nome, composto por Ângela Valério, Edilberto Magliari, Maria Lúcia Vidal, Paulo d’Alcântara, Wagner Campinho e o autor deste artigo.

A ilha mágica do contador de estórias foi realizada ainda pelo mesmo grupo sem nome, com a entrada de Luca de Castro e Elza de Andrade e a saída de Maria Lúcia Vidal, que viajara para Israel. Após algum tempo de apresentação da peça, eu saí do grupo, que logo após passou a chamar-se Tribus Teatro e realizou mais duas peças dentro da mesma linha de participação do público que se chamaram As aventuras do Dr. Magnus Magnésia e O segredo das mensagens coloridas.

As Experiências de Rua I e II f oram realizadas com minha mulher, Sônia.

A Lenda da Pedra de Fogo foi realizada por um grupo formado por Gero Band, Fernanda Caetano, Miguel Gianessi e este autor, tendo, mais tarde Gero e Fernanda sido substituídos por Artur Faria e Maria Cristina.

estranho cavaleiro é uma peça escrita por Michel de Ghelderode, autor belga, praticamente desconhecido no Brasil exceto por uma peça sua que já foi montada por vários grupos amadores e profissionais – O Escoriai.

A temática desse autor é quase sempre carregada de fortes componentes irreais e místicos. Sua preocupação é basicamente a vida e a morte. Suas ações se passam quase sempre na Idade Média. Seu estilo literário é muito poético.

estranho cavaleiro se passa num asilo de mendigos, na Idade Média. Seus habitantes, logo no início da peça, ouvem um persistente ruído de sinos, que vem de fora e crescendo. Pedem ao guarda do asilo que suba à janela e vá ver o que é. O guarda, subindo numa escada, começa a descrever a cena que se passa do lado de fora. E descreve um cavalo, um enorme cavalo, de cuja crina e rabo pendem sinos. O cavalo galopa em direção ao asilo e montado está um cavaleiro. Um estranho cavaleiro. A medida que o guarda descreve com maiores detalhes cavalo e cavaleiro, os mendigos percebem que se trata da morte que se aproxima. O resto da ação se detém na reação de cada um e de todos ante a perspectiva de tal visita.

A ação foi montada num locais onde atores e espectadores estavam muito próximos e envolvidos pelo mesmo meio ambiente, uma vez que os espectadores, ao entrar no teatro desembocavam no próprio quarto dos mendigos e só podiam se sentar ou nas camas dos mendigos (beliches) ou no chão.

Esta experiência foi importante porque foi a primeira tentativa do grupo de um contato direto com o público e de uma quebra na estrutura formal da peça.

À medida que a ação se desenvolve e crescia em intensidade ante a iminente chegada da Morte o público era trabalhado emocionalmente para o momento da participação que consistia – uma vez que a peça continha fortes elementos ritualísticos – numa comunhão onde eram distribuídos pão e vinho a todos os espectadores e por um longo período de tempo, sem que a ação fosse quebrada, ou seja, a peça não “parava” para que o público tomasse vinho e pão, embora todos os atores estivessem distribuindo esses elementos. A participação do público formava um contínuo lógico dentro da estrutura da peça e, na minha opinião e da de alguns espectadores que comentaram a peça, o grupo conseguia uma integração bastante consistente da participação do público, sem nenhum contexto de “obrigatoriedade de participação”.

A segunda experiência de participação que o grupo realizou foi a Experiência Cineticambiental. Embora tivesse muito pouco, ou nada, a ver com teatro da forma como é convencionalmente entendido, foi um trabalho importante no estudo de funções e influências de meios ambientes no comportamento do público.

Foi um trabalho do que se convencionou chamar arte cinética e foi exposto no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, no I Salão da Luz e do Movimento, em janeiro de 1971.

A experiência não envolvia atores. Apenas ambientes e público. Consistia num espaço de aproximadamente 40 m2, fecha do, e dividido em 4 corredores dispostos paralelamente entre si, cada um com aproximadamente 5m de comprimento por 1 1/2 de largura.

A entrada do público era feita 1 por 1.

O primeiro corredor era composto de um grande lençol de plástico translúcido que caía sobre o chão, preso às partes mais altas das paredes laterais. O indivíduo entrava por baixo desse lençol e, para vencer o meio ambiente que se lhe apresentava, tinha que manipular o lençol que o envolvia. A ideia que estava por trás desse primeiro ambiente era a de um espaço totalmente envolvente e flexível, que se adaptava completamente ao corpo do indivíduo.

A seguir, o indivíduo entrava no segundo corredor, que era um ambiente com um grande número de grandes blocos de styropor (isopor), cada um de aproximadamente 2m x 50cm x 30cm, iluminado com luz negra. Para vencer esse espaço, o indivíduo tinha que deslocar esses grandes blocos – com não muito esforço muscular – subir por eles ou engatinhar pelos espaços vazios que se formavam ao rés do chão. A ideia por trás desse segundo ambiente era a de criar um espaço onde o indivíduo tivesse algum poder de decisão sobre a formação do espaço, pudesse até certo ponto adequar o espaço a seu corpo e tivesse que, até certo ponto, adequar seu corpo ao espaço criado. Em outras palavras, o indivíduo encontrava-se num espaço mais ou menos flexível, que podia modificar, mas que também lhe impunha algumas limitações.

O terceiro corredor era formado por andaimes tubulares que formavam uma construção por onde o indivíduo tinha que passar, se quisesse vencer o espaço, com algum esforço corporal. A ideia por trás do terceiro corredor era a de criar um espaço totalmente inflexível, onde o indivíduo, se quisesse vencê-lo, teria que adaptar totalmente seu corpo a ele.

O quarto corredor era composto de um chão móvel e uma luz estroboscópica. O chão móvel obrigava o indivíduo a fazer um esforço corporal maior do que o normal – inclusive movimentos – para andar. A luz estroboscópica permitia que o indivíduo que vinha atrás do primeiro visse esse movimento corporal dissociado.

experiência cineticambiental nos permitiu observar e estudar o comportamento do público frente a estímulos de ambientes, objetos, luzes e, principalmente, seu comportamento em lugares fechados, com um alto nível de estimulação e sem praticamente nenhum controle. As reações foram as mais diversas, desde voltar do primeiro corredor e ter medo de continuar até um comportamento extremamente agressivo. Basta dizer que o espaço no qual estavam construídos os corredores foi totalmente destruído por duas vezes em 1 mês no qual o trabalho estava disponível ao público.

A ilha mágica do contador de estórias foi a primeira experiência onde se conseguiu um nível bastante alto de desestruturação e o grupo se permitiu deixar-se levar pelos estímulos fornecidos pelo público, no caso crianças de 4 a 10 anos.

A motivação básica da peça era simples. Numa sala vazia, o público infantil (limitado a um número máximo de 50 crianças) sentado no chão conversa com um personagem que é o Contador de Estórias. Este, depois de uma fase de reconhecimento mútuo e de aquecimento, propõe ao grupo contar uma história e, não só contar, como fazer a história com o grupo. E a história era uma viagem a uma ilha onde o Contador de Estórias estava construindo uma casa para colocar todos os seus personagens. As crianças acompanham o Contador de Estórias nessa viagem, ajudam-no a construir a casa e enfrentam, com ele e com outros personagens, várias peripécias.

Logo após a realização da Ilha mágica pelo grupo ao qual sempre me refiro como “sem nome”, me afastei do grupo porque todos os seus componentes queriam se profissionalizar e a mim sempre pareceu – e continua parecendo – que a profissionalização, em teatro, impõe tantas condições e tão rígidas e, ao mesmo tempo tão frágeis aos profissionais que estes acabam num beco sem saída onde as possibilidades de livre opção e experimentação se tornam quase inexistentes. Tal situação cria um nível de conflito interno nos grupos e pessoas que se propõem tal tarefa entre o que se quer fazer e o que se pode fazer que acaba por corroer qualquer estrutura de trabalho.

Além desse tipo de conflito existem outros de natureza mais objetiva que vão desde conseguir um espaço teatral não convencional até as pequenas fortunas que os teatros cobram a grupos que mal sabem como conseguiram aprontar um espetáculo, quanto mais pagar aluguéis tão altos. Isso sem falar nas dificuldades para conseguir locais de ensaio, equipamento, enfim, falta de tranquilidade e de um mínimo de certeza de que o próximo trabalho será apenas mais um numa longa série e não a quase certeza de que será o último.

Além dessas razões havia uma questão de linha de trabalho. O grupo queria se profissionalizar e eu cada vez mais interessado em realizar experiências ao ar livre, onde cobrar ingresso é virtualmente impossível. Dessa forma, nos pareceu, a todos, que eu estava sendo uma carga para o grupo e o grupo uma carga para mim. Eu fui fazer minhas experiências ao ar livre e eles passaram a chamar-se Tribus Teatro.

As Experiências de Rua I e II foram consequência das experiências anteriores e de uma necessidade de efetuar experimentações num nível extremo de desestruturação, além de estudar sistemas de estímulo-resposta espontâneas e a influência do uso de materiais nesse sistema.

Teatro de rua é, lamentavelmente, pouquíssimo, se quase nada, usado neste País, apesar das excelentes condições de que dispõe. Entre algumas, que considero muito favoráveis, vejo as seguintes: a) excelentes condições climáticas; b) excelente geografia urbana, com inúmeros pontos de concentração da população, podendo-se escolher, inclusive, a classe social com a qual vai-se trabalhar; c) uma população extremamente lúcida, com um grande sentido de resposta imediata aos estímulos fornecidos.

Quando se fala em teatro de rua, a primeira coisa que se pensa em representar é, tomado como exemplo geral, um ataque epilético. No entanto, um ataque epilético representado, por um ator, ainda que num contexto diferente do de um teatro fechado, tem praticamente a mesma conotação que se acontecesse numa sala de espetáculos.

Não resta a menor dúvida de que o público é estimulado a participar, devido ao fato do público não saber que se trata de uma ação representada. No entanto, de alguma forma, um ataque epilético é um acontecimento previsto dentro do repertório de acontecimentos possíveis de um indivíduo que está na rua. E, caso isso aconteça, esse indivíduo não tem mais do que 4 ou 5 opções pré-estabelecidas de participação. Ele pode não querer nem ver o que está acontecendo, ele pode apenas ficar olhando e conversando com os outros sobre o fato, ele pode chamar a polícia ou uma ambulância ou pode querer ajudar o doente-ator afrouxando-lhe a roupa e prestando os primeiros socorros.

Não vejo muito mais opções de participação do que essas. Ora, um dos princípios do teatro de participação a que me proponho é a de não limitar nem dar pontos de referência de participação ao público. Quanto mais desconcertado ele se vir ante o estímulo, mais ele será obrigado a pensar para agir e reagir. E é isso o que me importa. Realizar com ele um exercício de pensamento-decisão-ação. Quanto mais difícil for a fase pensamento-decisão mais consistente será a fase decisão ação. O difícil é encontrar o estímulo certo a ponto de interessá-lo em pensar e agir. Frequentemente, os estímulos fornecidos ou facilitam muito a decisão à ação, como é o caso do ataque epilético ou dificultam tanto a ação que o público se desinteressa e bloqueia inclusive o pensar a respeito do que aconteceu. Se o estímulo for bem colocado, até o não participar leva o indivíduo a pensar por que razão não se permitiu participar. No caso da Experiência cineticambiental, as pessoas que não se permitiam entrar ou voltavam do meio do caminho frequentemente vinham conversar conosco a respeito do que lhes havia acontecido.

Com base em todas essas ideias e aproveitando algum material que sobrara do trabalho exposto no MAM, realizamos, a Sônia e eu algumas experiências que consistiam no seguinte:

Escolhíamos um lugar de relativamente grande concentração; no caso da primeira experiência o lugar escolhido foi o Largo do Machado. Depois de algum tempo descobrimos que a escolha do lugar para realizar o trabalho é de fundamental importância. Escolhemos o Largo do Machado porque a) queríamos um local na Zona Sul (porque era a região que mais conhecíamos geográfica e socialmente) b) o público adulto envolvido deveria ser um público não acostumado às atividades ditas de criatividade porque esse facilmente encontraria formas estereotipadas de solução (esse público é tipicamente o de Ipanema, Leblon, etc). O Largo do Machado, no entanto, apresenta um tipo de público propício ao tipo de trabalho que queríamos desenvolver, uma vez que é composto de pessoas que moram na Zona Sul mas que não apresentam um tipo de cultura nem de comportamento típicos do habitante da Zona Sul do Rio de Janeiro. É um público constituído, em sua maioria, de empregadas domésticas e de empregados em construção civil das proximidades que ali se reúnem para atividades típicas de uma praça do interior do Brasil. Conversar, encontrar amigos, flertar, há lambe-lambes, pipoqueiros e, à noite, cantadores do Nordeste, comedores de fogo, sanfoneiros e uma enorme gama de atividades.

Nesse local, num domingo à tarde, desembarcamos de uma Kombi e começamos a descarregar uma enorme quantidade de grandes blocos de styropor (isopor) e a empilhá-los no meio da praça. Ali os deixamos e nos afastamos, observando apenas o que acontecia.

De fato, blocos de styropor empilhados na rua e abandonados, mas ao mesmo tempo dando a forte impressão de que ali haviam sido colocados com algum propósito, constituíam uma espécie de provocação a fazer alguma coisa, mas definitivamente não estavam no repertório dos possíveis acontecimentos previstos a um indivíduo que vai à praça num domingo à tarde em busca de diversão.

A primeira reação dos adultos foi de fingir que nada havia acontecido, que os blocos não estavam ali, que tudo estava como antes. No entanto, percebia-se claramente que a simples colocação do material na praça havia transformado praticamente tudo, desde a atitude das pessoas até a conversa. Pouco a pouco, alguns adultos que por ali passeavam se detinham, olhavam, arriscavam um toque no material e iam embora.

Quem realmente desencadeou a ação foi um grupo de crianças que, ao ver o material, imediatamente saiu correndo em direção a ele e, sem nenhum titubear, começou a manipulá-lo das mais diversas formas. Após reconhecer o material, que tem diversas possibilidades, uma vez que sua principal característica é extremamente estimulante: a de ser ao mesmo tempo grande, leve e dar a impressão de ser muito pesado, o grupo de crianças começou a brincar com ele. E, como sempre acontece quando a ação pode se desenvolver espontaneamente, a primeira reação do grupo foi agressiva. Começaram a bater uns nos outros com os blocos, fingindo que eram fortíssimos, gigantes poderosíssimos em guerra. Nesse momento, quando do simples, ato agressivo passaram a atuar “como se fossem” outras pessoas em outra situação, estimulados pelas características do material, estabeleceu-se uma ação teatral. E parece-me que posso afirmar que a ação se estabeleceu exclusivamente baseada no estímulo oferecido pelo material proposto, uma vez que momentos antes de entrarem em contato com o material as crianças formavam grupos separados e brincavam de bola etc.

Logo após o reconhecimento das possibilidades do material através de um comportamento de agressão, as crianças tiveram que pensar o que fazer a seguir. O estímulo era suficientemente forte para que quisessem continuar a trabalhar com ele, mas não era suficientemente óbvio a ponto da solução do que fazer a seguir estar implícita no próprio material. Isso levou-os a parar um momento e discutir o que fazer. Ao mesmo tempo em que discutiam, faziam. Uns continuavam brigando, os outros montavam nos blocos, os outros faziam construções, e assim por diante.

A solução que encontraram foi a de fazer uma corrida com os blocos sendo usados como cavalos. A seguir, construíram um forte, uns eram índios atacando e os outros soldados defendendo a fortificação do lado de dentro. A seguir, um deles descobriu que os blocos flutuavam e, numa fonte que existia no meio da praça usaram-nos como barcos. Nesse momento, chegou um policial e pediu aos meninos que saíssem da fonte, pois era proibido entrar ali.

Até aquele momento, as crianças praticamente monopolizaram o material e as únicas interferências de adultos foram no sentido de ou proibir ou ordenar a ação, seja com comentários ou com ações, como no caso de uma mulher que passava e que tentou derrubar o forte que as crianças haviam construído com um pontapé.

Quando o policial entrou na ação, com uma atitude muito bem educada, vale dizer, a atividade das crianças esfriou. O material foi praticamente abandonado e nós, que até agora não havíamos intervido em nada, o recolocamos empilhado no lugar inicial. Os adultos, então, tentaram alguma coisa. Mas muito timidamente. Apenas dois homens levantaram os blocos fingindo ser muito fortes, mas disso não passaram. Pouco depois, recolhemos o material e fomos embora.

Essa experiência, com esse mesmo material, foi repetida diversas vezes, em vários pontos da cidade, como a Cinelândia, o Aterro, praças de Copacabana.

Dependendo do contexto e do momento, as reações diferem profundamente. Mas sempre se verifica uma modificação profunda no comportamento e, principalmente, na atitude das pessoas que estão próximas ao material ou passando por ali.

A que chamei Experiência de Rua II foi um trabalho realizado no Uruguay, mais especificamente em Montevideo, na Av. 18 de Julio, a avenida principal de Montevideo, em janeiro de 1972.

A estrutura era a mesma, mas o material eram fitas de plástico colorido. O local também era muito propício porque, ao mesmo tempo que era uma praça era também um lugar de passagem de gente de todos os tipos, desde pessoas que faziam compras até ocupados executivos.

O que fiz foi estender ao longo da calçada uma série de longas fitas de plástico de diversas cores, com formas aleatórias, sem nenhuma preocupação estética.

As fitas não chegavam a impedir a passagem pela calçada, mas quem passava por ali tinha, obrigatoriamente que passar por cima das fitas e, portanto, notá-las.

Nos afastamos e, depois de alguns minutos, algumas crianças começaram a brincar com as fitas, principalmente de corda e de saltos de obstáculos. Logo após, alguns adolescentes que estavam ali sentados começaram também a brincar com o material, embora de forma mais agressiva. E imediatamente se estabeleceu uma ação teatral na medida em que os adolescentes começaram a amarrar um deles num poste com as fitas. Nesse ponto, a quantidade de gente que começou a se juntar foi muito além do que eu poderia esperar. Esse trabalho está todo documentado e, vendo o filme Super 8, calculo que haveria umas 200 pessoas entre participantes e espectadores.

A ação de amarrar o rapaz no poste e fazer com ele uma espécie de ritual de sacrifício durou bem uns 20 minutos e culminou em jogá-lo, de roupa e tudo. numa fonte que havia no meio da praça. Depois disso, as fitas foram completamente esquecidas, mas a ação continuou. E surgiram, não sei de onde, malabaristas, faquires que se espetavam todo o corpo com alfinetes, um equilibrista que andava numa bicicleta de uma roda só, enfim uma enorme variedade de ações que alimentou a ação por aproximadamente 4 horas incluindo, uma banda do corpo de bombeiros que também surgiu como que por milagre (acredito que fosse um concerto em praça pública previamente marcado, por coincidência) e fez um concerto ao ar livre.

A razão de uma reação tão consistente por parte de um público de rua a um material é bastante complexa. Vários fatores podem ter influído. O local, sem dúvida era excelente. A população uruguaia é constituída, em sua grande parte, de pessoas aposentadas que passeiam muito por aquela avenida especificamente e que, possivelmente, podem ser solicitadas por relativamente pouco estímulo. No entanto, a capacidade de alimentar ações e de levá-las até o ponto de esgotamento máximo me impressionou muito. Em geral, uma das características do público de rua é de iniciar uma ação e de não levá-la até o ponto de esgotamento máximo. O que acontece é um certo nível de dispersão de ações e a passagem de uma ação não esgotada em suas possibilidades para outra nova e assim por diante. Aliás, essa é uma característica de atores não muito experimentados em técnicas de improvisação.

O tipo de trabalho de rua num nível tão alto de desestruturação foi uma fase que me permitiu entender vários fenômenos de estímulo-resposta e do uso de materiais em condições máximas de não diretivismo e espontaneidade.

Logo após, senti necessidade de realizar um trabalho que me permitisse estudar e explorar as possibilidades e limitações de um local determinado, ao ar livre, numa experiência com um certo nível de estrutura pré-estabelecida.

Dessa forma, escolhi uma lenda inglesa, A lenda da pedra de fogo, e tentei adaptá-las às condições de um local específico, no caso o Parque Laje.

A lenda da pedra de fogo conta à história de um mago que vivia numa floresta encantada e que era o guardião de uma pedra mágica que permitia a seu possuidor fazer tanto o bem quanto o mal. No entanto o mago perdera a Pedra e a Lenda desenvolve a luta do mago contra a sua inimiga mortal a Bruxa, que vivia na mesma floresta e que também quer a Pedra de Fogo.

A história estava pronta. Faltava criar espaços vazios para que as crianças funcionassem dentro dela e encontrar, no Parque Laje, condições de percorrer um roteiro com as crianças em busca da Pedra. Fazer isso no Parque Laje não foi muito difícil porque o Parque já é a própria floresta encantada. A quebra na estrutura da história se limitou a um ponto: dar às crianças a função de encontrar a Pedra de Fogo, com a Bruxa criando obstáculos e o Mago, nos momentos de maior dificuldade, interferindo com sugestões que permitissem às crianças encontrar uma solução para o problema.

Agora bem, a luta entre o bem e o mal é um problema muito discutido em teatro infantil. Até há bem pouco tempo, foi uma temática que serviu como base para toda a literatura infantil ocidental e, posso dizer, oriental. Hoje em dia, começou a questionar-se se essa colocação deveria ser feita com crianças ou não. Essa discusão, por ser interpretada à base de estereótipos psicologistas pela maioria dos autores de teatro infantil criou um grande caos na temática e abordagem de histórias para crianças aqui no Brasil.

A primeira reação dos mais desavisados e preocupados em manter-se “atualizados” com os cânones da psicologia infantil vigente, seja ela qual for, não titubearam em diluir por completo o conflito e abordar temas onde, ou não havia conflito nenhum ou a luta entre o bem e o mal era camuflada por símbolos mais modernos de conflito, como se esses não representassem forças contrárias e, portanto, em conflito.

Com uma bruxa e um mago em cena, não há muita opção. A identificação é imediata. E eu não procurei, em momento algum, fugir ao conflito entre o bem e o mal.

O único que fiz foi deixar espaços vazios para que as crianças pudessem optar por si o que fazer com o bem e com o mal.

A criança tem o conflito entre o bem e o mal muito vivo em suas concepções filosóficas do mundo em que vive. Para ela o bem é o bem e o mal é o mal. E não tem papo. Obviamente, essa visão estática se refere a uma fase em seu desenvolvimento onde ela ainda não percebe de forma clara que esse é um sistema dinâmico e que o mal pode ser bem e o bem pode ser mal. Possivelmente, mostrar essa possibilidade seja uma das tarefas dos que fazem teatro infantil. E não, como muitos tem feito, tentar esconder ou simplesmente ignorar o problema.

No nosso caso, da Lenda da pedra de fogo, o conflito entre bem e mal se mostra em sua forma mais viva.

Nós vamos ao Parque algumas vezes por semana e ali encontramos grupos de crianças de colégios que vão com as professoras brincar. Propomos o espetáculo à professora o que geralmente é aceito de boa vontade. Os dois atores, que são Mago e Bruxa não aparecem. Apenas eu, que começo entrando em contato com o grupo e expondo a ideia de que hoje em dia aquilo é o Parque Laje, mas que há muitos e muitos anos atrás era uma floresta encantada. E conversamos um pouco sobre florestas encantadas, sobre seus habitantes, gigantes, bruxas, fadas, anões, bichos que falam e magos.

Logo em seguida, proponho ao grupo uma volta pelo parque o que, geralmente, é imediatamente aceito. Entramos por um atalho pré-escolhido por nós e seguimos cantando, conversando ou fazendo uma coisa qualquer. No fim desse atalho, existe um lago no meio do qual há uma ilha. Nessa ilha, à beira do lago, está um dos atores sentado, vestido de Mago, como se estivesse em sua casa.

A visão de tal personagem cria uma enorme curiosidade no grupo cujo primeiro impulso é aproximar-se do personagem para conversar.

No entanto, a função especifica desta peça não é “estimular a criatividade”, expressão tão em voga, tão desconhecida pela maioria dos que a usam e tão eficiente na venda de produtos como escolinhas de criatividade a pais ou que estão ansiosos por se ver livres de seus filhos ou que são tão inocentes e bem intencionados quanto eles.

A função básica desta peça é criar situações onde a criança se veja frente a obstáculos de ordem objetiva e subjetiva e, ao enfrentá-los e, às vezes, vencê-los, perceba a sua capacidade de atuação e seus limites.

Quando digo obstáculos de ordem objetiva quero dizer dificuldades geralmente de ordem espacial e física e de ordem subjetiva, dificuldades de ordem emocional. Dessa forma, ao ver o Mago Telurius sentado à beira do lago, mas longe, as crianças imediatamente querem aproximar-se do personagem para conversar, para saber quem ele é. No entanto, eu começo a colocar uma série de dificuldades, que vão desde o “não sei como chegar lá” até “estou com medo dele, não sei quem ele é”. Essa minha atitude de recusa leva o grupo a repensar a situação, a medir os riscos e a tomar uma decisão meio impulsiva, meio racional. Mas, invariavelmente, o grupo decide ir até lá falar com o personagem, geralmente me arrastando e eu colocando uma série de argumentos contrários.

Finalmente, atravessamos uma pequena ponte e chegamos à casa do tal personagem.

As crianças imediatamente perguntam quem ele é, porque está ali e uma porção de outras coisas.

O Mago, tranquilamente espera que o grupo se tranquilize e começa a contar a sua história.

Seu nome é Mago Telurius e mora nessa floresta encantada. Durante muitos séculos foi o guardião da Pedra de Fogo, que confere poderes imensos de fazer o bem e o mal a quem a possui. No entanto não sabe como nem quando, ele perdeu essa Pedra. Muito triste, pediu aos passarinhos e a todos os habitantes da floresta que a procurassem, mas nada. Ninguém conseguiu achar a Pedra. Mais triste ainda, estava conversando justamente naquele momento com a água e esta lhe disse que não adiantava. Que agora que ele tinha perdido a Pedra ele também havia perdido todos os seus poderes e que somente crianças é que tinham o poder de encontrar a Pedra. Ele diz isso como se estivesse contando uma história e como se as crianças que estão ali não fossem crianças, como se ele estivesse tão triste e preocupado que não se tivesse dado conta de tal fato. A reação geral de todos os grupos é dizer a Mago “mas nós somos crianças e podemos ajudar você”. O Mago parece então perceber, fica animado mas imediatamente depois se desanima e diz ao grupo que não, que seria uma loucura porque existe um problema tão grande que é quase impossível vencê-lo. E segreda às crianças que, nessa mesma floresta encantada, existe e habita a Bruxa Belon, temibilíssima. que também procura a Pedra de Fogo e se souber que eles, crianças, estão querendo ajudar o Mago Telurius, provavelmente fará feitiços terríveis contra todos.

Uma nova dificuldade foi injetada no grupo e, agora, eu me recuso terminantemente a continuar a procurar a Pedra. Isso, argumento, é problema do Mago e só faltava essa agora de ter que enfrentar os feitiços de uma bruxa maluca. Nova reflexão do grupo e nova decisão.

Embora seja uma experiência extremamente interessante, contá-la toda seria provavelmente cansativo para o leitor. O importante é entender o esquema básico da peça, que consiste num estímulo que geralmente representa uma dificuldade, mas, simultaneamente, uma forte pressão à ação, seguido de uma reflexão a respeito do que aquilo significa e, em seguida, a ação. E assim sucessivamente.

O tipo de teatro, ou manifestação teatral ou evento ou como queiramos chamar-lhe tem, a meu ver, fortes implicações em, pelo menos, dois níveis de atuação:

– o nível de comunicação

– o nível psicológico

Ao nível da comunicação, parece-me que já ninguém mais discute que com o advento do rádio, do cinema e da televisão os conceitos de comunicação mudaram radicalmente. O alcance do teatro como meio de comunicação de massa é praticamente inexistente. Basta pensar que a renúncia de Nixon, por exemplo, foi vista e ouvida por 100 milhões de pessoas no mundo inteiro, no exato momento em que estava acontecendo e que pode ser reproduzida exatamente a qualquer momento (vídeo tape).

O argumento de que na época dos gregos e mesmo na Idade Média o teatro era, como sem dúvida o era, um meio de comunicação de massa fundamental e vastamente utilizado, é obsoleto. Na Grécia Clássica e na Idade Média o teatro foi utilizado para transmitir os padrões culturais, morais e políticos vigentes a uma população que, além de ter meios de diversão muito restritos, era praticamente toda analfabeta. Nessa época, o teatro funcionou maravilhosamente. Hoje, no entanto, a realidade é completamente diferente. A relação convencional ator-espectador é vastamente explorada pelo cinema e pela televisão. E, parece-me, com muito maior versatilidade do que o teatro. Além disso, economicamente, a possibilidade de reproduzir infinitamente cópias do mesmo acontecimento, além de baratear o custo do empreendimento aumenta as possibilidades de alcance do que está sendo transmitido. A televisão só começou a ser um empreendimento realmente economicamente viável depois do desenvolvimento do video-tape.

O que me deixa perplexo é que ainda haja pessoas que se espantem com a eterna e crescente crise do teatro.

Esses argumentos, além de uma infinidade de outros que não cabem aqui neste artigo, me fazem pensar que o teatro se tornaria realmente eficiente em sua função social se buscasse formas de manifestação que não fossem substituíveis pelos modernos meios de comunicação de massa.

Uma dessas formas – obviamente há muitas outras – é o tipo de manifestação teatral, que tenho procurado desenvolver. Até este momento, nenhum outro meio de comunicação tem a possibilidade de provocar situações onde o indivíduo seja le­vado, sistematicamente, a atuar física, espacial e emocionalmente fora de seu contexto cotidiano e vivenciar essas situações globalmente. Transpondo essa proposição do plano geral para o que foi descrito anteriormente, nenhum meio de comunicação, que não o teatro, tem a possibilidade de levar um grupo de crianças a um porque, transformar esse parque numa floresta encantada, humanizar personagens que habitam seu mundo interior no nível da fantasia e possibilitar que, através de uma atuação direta, esse público transforme e resolva uma situação problema. Dessa forma, todas as vezes que desenvolvo essa experiência sinto que é um nível de comunicação extremamente consistente porque cada vez realizo uma experiência única e insubstituível.

No nível psicológico, dois aspectos me parecem de fundamental importância: O lúdico e o catártico.

O elemento lúdico é o fator predominante no tipo de manifestação que descrevo. Lúdico não apenas no sentido restrito de “brincadeira”, mas num sentido mais amplo de elaboração de sistemas físicos, emocionais e cognitivos em grau crescente de complexidade através do uso de elementos sensitivos, motores e simbólicos que tenham uma correlação direta com o plano do real.

Vários pesquisadores interessados em desenvolvimento humano e animal forma ram teorias a partir de observação direta sobre ludicidade.

Freud explicou a ludicidade como uma forma de projeção de desejos guardados no nível tia fantasia e a possibilidade de elaborar conflitos no plano lúdico com a intenção de controlá-los.

Outros cientistas tentaram explicar o aparecimento e a necessidade do lúdico. Bechterev (1875-1927) e Pavlov (1849-1919) com a teoria dos reflexos condicionados, Thorndik (1874-1949) e Skinner com a teoria do aprendizado, Koffka que aplicou os princípios da Escola Gestalista ao desenvolvimento infantil e Kurt Lewin (1890-1947) que estudou o problema à luz de sua Teoria de Campo.

No entanto, os estudos mais completos no que diz respeito à ludicidade na criança são, até o momento, os de Jean Piaget.

A ludicidade, para Piaget, está fortemente associada à aquisição e desenvolvi­mento da inteligência. É através de experiências lúdicas que o indivíduo, criança, adolescente ou adulto, desenvolve a sua capacidade de compreender e controlar situações de vida e passar, progressivamente, a níveis mais complexos de compreen­são de si próprios, dos outros e do universo. Em outras palavras, é através do lúdico que o indivíduo adquire e desenvolve a sua “visão de mundo”.

A ideia do lúdico está muito próxima da ideia de risco. Toda atividade lúdica implica em correr algum risco e todo risco implica numa atividade lúdica. Risco entendido não no sentido de acertar ou errar apenas, mas em enfrentar uma situação relativamente desconhecida, embora acessível à experiência.

Meu filho de 3 meses tenta levar a mão à boca. Seu controle motor está longe de estar sob controle. Ao tentar levar a mão à boca ele “decide” correr um risco. Muitas vezes ele consegue o seu objetivo, mas muitas vezes não. Esse processo muito simples de levar a mão à boca é uma operação extremamente complexa para ele, mas a dificuldade, por um lado, e a possibilidade, por outro, fazem com que esse ato seja lúdico. E ele brinca durante horas com a mãozinha. No dia em que ele tiver controle absoluto sobre esse processo, não será mais lúdico. Ele terá conseguido, através do interesse lúdico, passar para formas mais complexas de compreensão de si próprio. Mutatis mutandis, um cientista que procura entender um fenômeno da Natureza, ou um matemático que procura desenvolver um novo conceito ou um executivo que procura realizar um grande negócio estão funcionando na mesma estrutura lúdica que uma criança que tenta controlar seus movimentos. Quando conseguirem seu objetivo, cientista, matemático e executivo terão compreendido um pouco mais o universo que habitam e, consequentemente, passarão a funcionar num nível de complexidade maior.

O não lúdico é justamente o indivíduo que, tendo aprendido uma determinada função passa a repeti-la indefinidamente sem perspectivas de transformação. Risco, nenhum. Avanço, nenhum. Tarefa, perfeita.

Seguindo essa mesma linha de raciocínio vemos, então, que o lúdico está profundamente ligado à ideia de risco, risco à ideia de desconhecido, enfrentar o desconhecido à ideia de tomada de decisão. Se essa sequencia está correta, o lúdico está profundamente associado à ideia de tomar decisões, de atuar.

O tipo de manifestação teatral que procuro desenvolver carrega, no seu bojo, toda essa sequencia. O tema em discussão é esse. As histórias são pretextos.

A catarse, para Aristóteles, é a purgação das emoções. Não deixa de ser um conceito muito próximo à teoria da ludicidade de Freud. E também muito próximo à teoria da assimilação e adaptação de Piaget.

No entanto, creio que deveríamos nos perguntar em que níveis a catarse se dá plenamente. Em que níveis a catarse realmente funciona como um processo real de assimilação e adaptação. Em que níveis esse conceito, sobre o qual todo o teatro tem se baseado até hoje, realmente implica numa transformação de uma estrutura racional e/ou emocional. Até que ponto não se tem confundido catarse com identificação. Catarse implica num processo de transformação. Identificação é um sistema estático de fazer aflorar emoções e que muitos confundem com catarse. A real catarse, para que signifique um processo de transformação, tem que ser exercida emocional, física e espacialmente.

Um dia, estávamos o Gero, a Fernanda, o Miguel e eu no Parque Laje fazendo a Lenda da pedra de fogo. Uma professora chegou um pouco tarde, o trabalho já havia começado e ela perguntou a uma criança de uns 6 anos que estava de mãos dadas comigo: “Então, o teatrinho já começou?” A criança respondeu: “Não, professora, por enquanto estamos procurando a Pedra de Fogo para o Mago, o teatro vai começar depois”.

Um outro dia, estávamos às mesmas pessoas num asilo de crianças abandonadas fazendo a mesma peça. Num determi­nado momento, a bruxa começou a ser atacada fisicamente.

Imediatamente, pedi para ela sair da sala e ordenei que todos se sentassem e ouvissem. Disse que eu era o guardião do castelo da Bruxa, que a Bruxa havia sumido e que havia deixado apenas a roupa. Perguntei se eles queriam a roupa da bruxa. Eles disseram que sim, que queriam. Sai da sala e pedi para a Fernandinha tirar o saco de batata com o qual cobria a malha preta. Voltei à sala e literalmente joguei o saco de batata no meio do círculo. Posso afirmar que não ficou fio sobre fio. Naquele momento pude experimentar e sen­tir o verdadeiro sentido da catarse. A ação de destruir a roupa da bruxa terminada, a Fernandinha pode voltar à sala, e conversar calmamente com o grupo. A destruição objetiva do mal, através de um objeto intermediário havia sido realizada. Obviamente, o grupo, devido às suas próprias experiências de vida, não podia suportar a existência de uma “mãe” tão má. Precisava destruí-la. Num esquema de teatro convencional, eles não teriam nenhum controle sobre o andamento da peça e o problema seria resolvido pela própria sequencia natural da peça. No caso que descrevo, a destruição do mal foi feita por eles mesmos, no momento em que quiseram ou sentiram necessidade. Tanto que a peça acabou muito antes do final. Há quem argumente que, talvez poderia ter-se induzido o grupo a transformar o mal em bem. Indução me parece uma forma sofisticada de ordenar. É o pior tipo de autoritarismo que conheço. Porque é muito difícil de identificar. Mas, de qualquer forma, naquela situação, mesmo que tivéssemos tentado não teríamos conseguido. A necessidade de destruir uma coisa que eles haviam identificado como mal era tão forte que não havia saída. Precisava ser destruído. Eu mesmo me espantei com a flexibilidade do trabalho que desenvolvíamos. Era tão flexível que podíamos evitar um ataque físico e, ao mesmo tempo;, satisfazer as exigências do grupo através de um objeto simbólico. Imediatamente após a destruição do objeto identificado como a personificação do mal o grupo se tranquilizou e a atriz-bruxa pôde conversar com o grupo.

Com estes dois exemplos não quero, de maneira alguma, sugerir que resolvemos os problemas das crianças. Eu questiono muito o alcance do teatro e penso que e uma atividade com muitos limites em termos de alcance e de possibilidades de transformação. Mas, uma vez que escolhi o teatro como forma de expressar as minhas próprias dúvidas, incertezas, certezas e elaborar meus próprios problemas, procuro encontrar uma forma de teatro que seja o mais eficiente possível, levadas em considerações todas as variáveis que procurei descrever neste artigo.

Tampouco penso que o tipo de manifestação teatral que acabo de descrever seja a única forma válida de teatro. Penso, apenas, que é uma das formas de teatro possíveis, que muitos problemas humanos não são passíveis de discussão através dessa técnica, mas que é uma forma de comu­nicação muito eficiente e muito plena, tanto para os atores como para o público.

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Bibliografia

JEAN PIAGET, The child’s conceptioon o/ the word, Paladin. Jean Piaget, Play, dreams and imitationin chidhood, Heinemann. D. \V. “Winnicott, Playing and reality, Tavistock, Londres. S. Millar, The psycholcgy ofplay, Pelican, Londres.

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José Antônio Domingues
É professor de Teatro da Secretaria de Cultura do Estado da Guanabara e do Colégio Sion do Rio de Janeiro (professor de meios de expressão e desenvolvimento sensorial). Curso de Ator e de Direção do Conserva­tório Nacional de Teatro. Curso de Dinâmica de Grupo. Curso de Espe­cialização em Teatro na Educação no Centro School of Speench and Drama em Londres. Na área do Teatro Infantil dirigiu A Ilha Mágica do Contador de Estórias e A Lenda da Pedra de Fogo.

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Obs.
Este texto foi retirado da edição especial da Revista de Teatro da SBAT, referente ao Seminário de Teatro Infantil de Curitiba de 1975, organizado pelo antigo Serviço Nacional de Teatro, do MEC, realizado no Auditório Salvador de Ferrante da Fundação Teatro Guairá, em Curitiba, no período de 3 a 7 de fevereiro de 1975.

Fazem também parte desta Revista os seguintes textos, que podem ser encontrados neste site:

Apresentação do Seminário de Teatro Infantil – 1975, de Orlando Miranda de Carvalho e Beatriz Veiga
A Criança e a Linguagem Televisual, de José Renato Monteiro
A Coragem de Fazer Teatro Infantil, de Maria Helena Kühner
A Propósito de um Concurso de Textos para Teatro Infantil, de Oscar Von Pfull
Desenvolvimento da Linguagem Teatral da Criança, de Helena Barcelos
Possibilidades do Teatro como Processo Educativo, de José Antônio Domingues
Observação Pessoal sobre o Julgamento de Textos para Teatro Infantil, de Zuleika Mello
O Mundo Subjetivo da Criança e sua Interação com o Teatro, de Monica Laport
Realidade Atual do Teatro Infantil no Estado da Guanabara, de Ana Maria Machado
Teatro, Educação Tridimensional, de Joana Lopes