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“Como diz o povo: na mudança de lua
A lua nova segura a lua velha
Uma noite inteira nos braços “.
                                          Bertolt Brecht

É oportuno lembrar, no momento em que o teatro comemora os 100 anos do nascimento de Bertolt Brecht (1898-1956), seu lugar junto à galeria dos grandes reformadores do teatro contemporâneo. Ao eleger o teatro como forma para expressar sua estética revolucionária, materializada por uma produção que envolveu tanto o texto dramático, quanto os jogos interpretativos, a direção, a cenografia, o figurino, a poesia, a música, o público, Brecht firmou um marco que nos faz pensar em seu nome sempre que ouvimos falar em teatro épico, muito embora não tenha sido ele seu “inventor”. Como bem lembra Anatol Rosenfeld, até nas peças mais rigorosas do classicismo francês há elementos narrativos, para não falar no teatro grego com seus coros, prólogos e epílogos. Mas, foi com Brecht que a forma épica de teatro ganhou os contornos que a transformaram em uma das mais importantes perspectivas do teatro contemporâneo.

Partindo de um olhar que tem por substrato a sociedade de classes, o teatro épico de Brecht implica – sempre – um teatro de atitudes que devem despertar nos atores e nos espectadores o sentido crítico de suas ações. Trata-se de uma proposta empenhada em destruir a ilusão dos palcos identificados com a realidade estabelecida; de um teatro que busca quebra com a tradição, tanto do ator identificado com seu personagem quanto de uma plateia acostumada a se identificar com as cenas que lhes são apresentadas. Enfim, de uma perspectiva determinada a romper com um teatro que – por intermédio da exacerbação emocional – impede os que o veem e os que o fazem de formarem um juízo crítico sobre o que fazem e veem. Brecht, entre os grandes reformadores do teatro, foi provavelmente aquele que mais se interessou em postular sua função social, sempre voltada para a tomada de uma consciência crítica fundada em uma postura revolucionária: estética e científica. Uma postura demonstrada de forma exemplar pelos versos que introduzem A Exceção e a Regra: 

“Estranhem o que não for estranho
Tomem por inexplicável o habitual
Sintam-se perplexos antes o cotidiano
(…)
E façam sempre perguntas
Caso seja necessário
Comecem por aquilo que é mais comum
(…)
Num tempo de confusão e violência
De desordem ordenada
De arbitrariedade proposital
De humanidade desumanizada
Para que nada seja considerado imutável
Nada, absolutamente nada
Nunca se dizer: isso é natural”

É frequente encontrar o universo da obra de Brecht, na verdade seu processo criativo, separado em fases (o que, se por um lado facilita uma certa compreensão desse universo, por outro lado quase sempre o empobrece). Nesse sentido, haveria um “jovem Brecht”- não marxista, contemporâneo do expressionismo e da Alemanha pré-nazista – identificado como artista inconformado, rebelde, anárquico, sensivelmente marcado pela experiência da guerra. Seria a fase do poeta de versos niilistas, cuja descrença nos homens, presos a impulsos irracionais, sexuais, configuraria também seus primeiros textos teatrais: Baal, Tambores na Noite, O Casamento do Pequeno Burguês, O Mendigo ou o Cachorro Morto, Na Selva das Cidades, Eduardo II.. Dentro desse mesmo raciocínio, um “outro” Brecht, “mais maduro”, seria aquele dramaturgo traduzido pelas grandes obras “clássicas”, como A Ópera de Três Vintens, O Senhor Puntilla e seu Criado Matti, Galileu Galilei, A Alma Boa Set-Suan, O Círculo de Giz Caucasiano, Mãe Coragem, etc. Uma produção identificada com a plenitude criativa do autor e diretor teatral, bem como do seu nomeado teatro épico, posteriormente batizado de teatro dialético (em oposição ao gênero dramático, de inspiração aristotélica).

Entre essas fases, uma fase “intermediária”, “preparatória de um teatro do futuro”, seria aquela que identificaria, no contexto de sua obra, um projeto inacabado – ou, abandonado no momento em que a Alemanha já não mais oferecia um “clima”propício aos seus experimentos, – reconhecido como teatro didático. Trata-se de uma produção marcada pela sua adesão aos princípios marxista e sua necessidade de engajamento político. Uma produção que, além de fragmentos e escritos dispersos, recobre basicamente as seguintes obras: O Vôo dos Lindbergh (peça escrita em 1928-9 e enunciada como peça didática radiofônica para meninos e meninas, com música de Kurt Weill e Paul Hindemith); A Peça Didática de Baden sobre o Acordo (escrita também em 1928-9, com música de Paul Hindemith); Aquele que Diz Sim (escrita em 1929-30 e enunciada como uma ópera escolar baseada na peça No japonesa Taniko, com música de Kurt Weill); Aquele que Diz Não (escrita em 1930, em virtude das críticas dos alunos da escola que representou Aquele que Diz Sim)As Medidas Tomadas (escrita em 1930, com música de Hans Eisler e também enunciada como peça didática); A Exceção e a Regra (escrita em 1930, com música de Paul Dessau) e Os Horácios e os Curiácios (escrita em 1934, com música de Kurt Schwaen).

Essas peças que configuram o que Brecht designou como peças de aprendizagem – escritas como experimentos (para estudantes, operários, militantes políticos), ao contrário do que é frequente considerar, não podem e nem devem ser encaradas como peças dogmáticas, uma vez que não expõem verdades eternas e, como aponta Roswitha Mueller com exceção de A Exceção e a Regra, deixam para trás a própria sociedade de classes. São peças que apenas apontam aspectos teóricos dos quais o autor se aproximou – em circunstâncias determinadas – certo de que podiam (poderíamos) ser modificados (modifica-los). Compreendem uma pequena, mas significativa produção centrada em uma estrutura aberta a múltiplas experiências que encontram no exercício da razão, da dialética, uma arma a serviço de uma realidade que deve ser demonstrada como passível de modificação.

As chamadas peças didáticas compõem escrituras fundamentais para uma prática de encenação e uma técnica de atuação que devem ser encaradas como meio de aprendizagem, como afirmações provisórias cuja estrutura se volta para quem deve ser ao mesmo tempo ator e espectador de suas ações (dentro e fora do teatro). Nesse sentido, constituem excelentes estratégias de aprendizagem – exercícios – para as representações épicas, mesmo as mais espetaculares.

Certo mesmo, é que o próprio Brecht diferenciou o que chamou de peça de aprendizagem (Lehrstück) do que ficou conhecido como peça épica de espetáculo (Schaustück). Esta sim uma separação a ser levada na devida conta. Não existindo como formas excludentes e nem absolutas, ambas configuram complementos de uma mesma perspectiva que pode e deve, como queria o poeta, ser designada de dialética: única perspectiva com vontade e capacidade de se mostrar criticamente.

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Eduardo Montagnari
Prof. Doutor em Sociologia e Diretor de Teatro na Univers. Estadual de Maringá, Paraná.

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 2º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (1998)