Fotos: Jackeline Nigri

Crítica publicada no Site da Revista Crescer
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 20.05.2016

Barra

Quatro histórias poéticas investigam a “dor” do crescimento

Cia. Artesanal, do Rio, monta em São Paulo “uma reflexão cênica entre ser criança e virar adulto”

Conheci o grupo carioca Artesanal no início de 2014, quando fui ver seu espetacular O Gigante Egoísta, que muitos prêmios abocanhou naquela temporada paulistana. Pois há algumas semanas eles estão de volta a São Paulo, onde decidiram, a convite do SESC Pompeia, estrear nacionalmente a sua nova peça para crianças: Por que nem Todos os Dias são Dias de Sol? Esse título comprido foi retirado de um poema de Fernando Pessoa.

A novidade é boa, vale a pena prestigiar. Com dramaturgia e texto de Gustavo Bicalho, que também assina a direção ao lado de Henrique Gonçalves, a peça é assim definida pela companhia: “uma reflexão cênica entre o ser criança e o tornar-se adulto”. Está dividida em quatro histórias, basicamente sobre o medo, mas também sobre muitos outros temas pertinentes à infância. Aliás, o fato de serem quatro histórias obrigou a direção a criar incríveis momentos de transição entre o fim de uma e o começo da outra. Essas transições, muito bem coreografadas, iluminadas e musicadas, são uma atração à parte da montagem. Gostei demais. Quando você for ver, repare nisso.

Desta vez não se partiu de nenhuma história clássica. Durante dois meses, a Artesanal Cia. de Teatro realizou um trabalho de pesquisa com cerca de 30 crianças. Elas foram estimuladas a formular suas opiniões sobre diversos temas trazidos pelo grupo: “O que é o amor? O que é a liberdade? O que é a vida? O que é o medo? O que é ser adulto? Como as crianças vão parar dentro da barriga das mulheres?“, entre tantos outros.

A respeito disso, passo a palavra ao dramaturgo e codiretor da peça, Gustavo Bicalho: “Nós trabalhamos, no processo de pesquisa, não só com as respostas das crianças, mas também com as lembranças da própria infância dos atores (e também um pouco da minha). As histórias foram sendo criadas a partir de elementos que identificamos que eram comuns a quase todas as crianças, como o medo do escuro, o medo de altura, a liberdade associada à sensação do voo, a curiosidade (e timidez) sobre o amor, a (não) percepção da morte, o desejo de permanecer criança (achando que ser adulto é chato), a família constituída não só pelos parentes de sangue, mas também por amigos e vizinhos, a curiosidade sobre o sexo. Enfim… O trabalho que fiz de dramaturgia foi pegar tudo o que as crianças disseram, interpretar esses sentimentos e criar as histórias (a partir de fragmentos de histórias contadas pelos próprios atores e lembranças da infância). A novidade desse processo está no fato de a criança ter sido o primeiro elemento de pesquisa. Não havia temas pré-fixados. Eles foram surgindo a partir desse bate papo. E durante a elaboração das histórias, mantive o ponto de vista das crianças. A única história cujo personagem é um adulto surgiu da observação de como as crianças brincam e animam diversos objetos, associada à ideia de que ‘adulto não brinca’. Eu brinco. E muito.”

Outro lance bem legal do espetáculo é que cada história é contada/encenada a partir de uma diferente ‘técnica cênica’, por assim dizer. A primeira se apoia em geniais bonecos siameses, aqueles bonecos de tamanho natural que praticamente são ‘vestidos’ no corpo dos atores. Você vai se impressionar com tanta expressividade. A segunda se utiliza de máscaras. A terceira, de animação de objetos, ou seja, uma régua, uma luminária e um relógio despertador ganham vida e voz na peça. E a quarta usa a técnica de projeções de imagens ou videomapping. As singelas projeções são feitas nas telas de bastidores de bordados, que os atores vão deslocando pelo palco. Sensacional.

Trata-se de um espetáculo que, com tantas propostas e multiplicidade de linguagens, consegue ainda assim ser objetivo, sintético, ágil e, ao mesmo tempo, muito poético. Dica: fique de olho o tempo todo no bem cuidado desenho de luz, a cargo da dupla Poliana Pinheiro e Rodrigo Belay.

Os enredos das quatro histórias são: 1) Um menino tem medo de uma velha que se senta todos os dias no banco de uma praça. 2) Uma menina, que gosta de pássaros, tenta ajudar seu vizinho a soltar uma pipa que ficou presa nos galhos de uma mangueira em seu quintal. 3) Um homem conversa com objetos em seu escritório, após seu filho ter lhe dito que prefere continuar criança para sempre, pois acha que é muito chato ser adulto. 4) Uma menina engole uma semente de laranja, achando que dessa forma um bebê irá crescer dentro de sua barriga.

É quase tudo apresentado de forma muito agradável, instigante, inteligente, sem facilidades narrativas e, portanto, sem subestimar a capacidade de abstração do público mirim. Só fico incomodado, no texto, com os trechos em que 1) a menina da segunda história diz: ‘Sabe, eu vou namorar um menino só e nós vamos nos casar e ele vai ser pai dos meus filhos’ e 2) o menino da primeira história encerra, dizendo sobre a velha da praça: ‘Mas até hoje, quando eu rezo, peço a Deus que a guarde e a proteja.’

Acho complicado hoje em dia, em uma peça para crianças, falar em religião, em rezar, em Deus, pois, sabemos, isso não é a prática de todas as famílias e pode soar doutrinário. Assim como realçar a ideia de “um namoro só” também embute um discurso bem delicado, já que hoje há várias configurações de famílias, muitos pais separados que namoram e casam várias vezes. O texto é fabular, brincalhão, imaginativo demais para ter caído nessas duas armadilhas de moralismo. Enfim, acho que são pontos que o texto deveria ter evitado, pois destoam de seu forte potencial poético e metafórico, muito mais rico, aliás riquíssimo, do que escorregar nesses dois possíveis ranços de caretices e “lições de moral”, que divergem da realidade de boa parte das famílias modernas e atuais que frequentam teatro.

Serviço

SESC Pompeia
Rua Clélia, 93, tel. 11 3871-7700
Sábados e domingos, às 12h
Feriado de 26 de maio (quinta-feira), sessão extra, também às 12h
Ingressos: R$ 8,50 (meia) e R$ 17 (inteira). Crianças até 12 anos não pagam
Em cartaz até 12 de junho