Crítica publicada no Jornal do Brasil, Caderno B
Por Flora Sussekind – Rio de Janeiro – 13.04.1984

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As Armadilhas de Pinóquio

Basta entrar no Teatro dos 4 e observar rapidamente alguns dos desenhos pertencentes à mostra comemorativa do Centenário do Pinóquio, de Collodi, para perceber que o Grupo TAPA está apresentando uma espécie de espetáculo-alçapão. Primeira armadilha: todos pensam conhecer de cor e salteado o Pinóquio. Então, o que faz o grupo? Logo na entrada nos obriga a conviver com as mais diversas representações pictóricas do boneco, meio insinuando que talvez a nossa seja apenas uma versão a mais em meio a esta série de Pinóquios.

De cara, uma primeira inquietação para o espectador e a sugestão de que o desenho do personagem talvez obedeça a contornos diferentes dos que imaginávamos a princípio.

Segunda armadilha, esta do próprio Collodi, mas retomada literalmente pelo grupo: quem pensa que irá assistir à história de um boneco leva um susto com a primeira fala do espetáculo, com o Era uma vez um pedaço de pau que inicia tanto o folhetim quanto esta sua versão teatral atualmente em temporada no Teatro dos 4.

“Era uma vez um pedaço de pau”, diz o narrador do folhetim. E não “Era uma vez um boneco” ou “Era uma vez Pinóquio”. Do ponto de vista do romance seriado de Collodi esta escolha parece apontar para o estatuto mesmo do personagem de folhetim, passível de maiores transformações e submetido menos à verossimilhança do que à fantasia dos leitores, diferenciando-se assim do modelo e da lógica do personagem nos romances não folhetinescos. É, então, do próprio folhetim que fala Collodi ao definir o seu personagem central nem é um menino em formação, nem um boneco, mas uma “madeira animada”, de um lado afasta as identificações subjetivas fáceis com a trajetória de Pinóquio, e de outro proporciona uma dicção interpretativa para o personagem que não é a de uma duplicata desengonçada da infância como na maioria dos Pinóquios.

Não é à toa que uma das melhores cenas desta encenação nova do Pinóquio é justamente o momento em que Gepeto (Celso Lemos) constrói o boneco de madeira. A cena serve de pretexto para um belíssimo exercício interpretativo, de Clarisse Derzié, o Pinóquio da versão do Grupo TAPA, para o seu jogo com várias maneiras possíveis de interpretá-lo. A Princípio apenas com a mímica facial, já que o corpo permanece preso na madeira. Em seguida, com a movimentação meio desarticulada e rígida característica às marionetes.

Daí a necessidade de amparo e manipulação por parte de Gepeto. E, depois, a oscilação de um comportamento cênico  que lembra ora a gesticulação dura dos bonecos, ora a postura convencional de um arlequim, ora a emoção dos personagens de folhetim. Oscilação esta que parece ter sido o principal atrativo para que o grupo se decidisse a montar Pinóquio. O jogo de Collodi com seu personagem-máscara, sua referencia aos improvisos e à convenção dos solitários stenterelli, a transformação dos personagens da commedia dell’arte em títeres do teatro de Papa-Fogo, a rápida passagem de Pinóquio pelo Circo de Cavalinhos: tudo isso já parece sugerir laços bastante estreitos entre o romance-folhetim de Carlo Lorenzini e a tradição teatral italiana. Laços estes cujos diversos nós servem de base para que Eduardo Tolentino se utilize da história deste “pedaço de madeira” para narrar simultaneamente uma outra: a da constituição do personagem teatral.

Nem marionete, já que dispensa os fios; nem máscara, porque alguns “excessos” sentimentais poderiam dissolvê-la; nem convenção teatral, pois se afasta do teatro de Papa-Fogo, Pinóquio reclama outras definições. Como explica Eduardo Tolentino: “Ser ou não ser um personagem? Eis a ficção. Ao contrário dos outros bonecos, ele não tem fios que determinem as suas emoções e a sua vontade. E essa autonomia em relação ao manipulador o distancia do Teatro de Marionetes. Mas também não será na tradição do teatro italiano de máscaras que Pinóquio vai encontrar sua identidade.

Ironicamente a Comédia Dell’Arte aparece, no texto, aprisionada a um teatro de bonecos. “Pinóquio é uma máscara transitando entre o desejo e a angústia de ser diferente”. Uma bela representação desta difícil identidade de Pinóquio é o instante exato em que os personagens do teatro de Papa-Fogo o reconhecem e o Arlequim exclama: “Pinóquio, venha cá, venha se atirar nos braços dos seus irmãos de pau”. Inicialmente Pinóquio atende ao chamado e pensa encontrar o seu lugar em meio aos outros bonecos. Mas os stenterellu, mais do que sua filiação à commedia dell’arte, parecem narrar nas suas solitárias representações a decadência de suas máscaras e improvisos depois de um império de mais de dois séculos.

E Pinóquio também não se encaixa no grupo de Papa-Fogo, como não se encaixara na sua casa paterna, na escola, no circo de cavalinhos ou no papel de cão de guarda. Neste sentido é a representação destes desencaixes que permite à direção exercitar uma narração plural, uma dicção interpretativa mista que vai da farsa de Emília Rey e Brian Penido (A Raposa e o Gato) ao tom emocional de Celso Lemos e Susana Kruger (O Grilo e a Fada).