Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Flora Sussekind – Rio de Janeiro – 16.05.1980
“Amar é…” Numa Versão Indígena
Quem vai com alguma assiduidade ao teatro infantil não pode deixar de perceber quem é a criança capaz de frequentar as salas de espetáculo espalhadas principalmente pela zona sul carioca basta pensarmos que, fora os programas, cartazes e balas que se costuma comprar na entrada, a maior parte dos espetáculos taxado a cerca de 100 cruzeiros. Não é qualquer família, portanto, que pode proporcionar às crianças, como programação habitual de fim de semana, uma ida ao teatro e nas próprias portas das salas de espetáculo já se torna bem nítido que há uma parcela de crianças que pode entrar e outra fica de fora, vendendo bala ou tomando conta dos carros. Cria-se assim, na própria delimitação de quem seja o público um problema indescartável para quem dirige, escreve ou produz espetáculos infantis. Não é possível falar em abstrato de “criança” ou “infantil” quando na própria porta do teatro salta aos olhos uma divisão que não é apenas etária, mas econômica, nessa parcela mais jovem da população a que se dirigem as peças ponto sabendo que estão falando para crianças originárias de família com renda suficiente para pagar ingressos e morar perto dos teatros, trata-se, no caso daqueles que ocupam os grandes teatros da Zona Sul de, pelo menos, fazer uso de uma linguagem que proporcione a esse público privilegiado uma compreensão mais crítica do seu próprio espaço e do universo de valores que aprendi, na família, na escola e na TV, a ter como seu.
No caso de Passageiros da Estrela, cartaz do Teatro Villa-Lobos, esse parece ter sido o projeto da montagem, como se pode depreender das palavras de Sérgio Fonta, ator e autor do texto: “quis envolver nossas crianças cosmopolitas, despertando-lhes a consciência de que existem crianças índias da idade delas e no país delas. Todas integradas com a natureza, com o sentimento do amor e da solidariedade. Que percebem que devemos prestar atenção nesse povo, pois ele está bem próximo de nós.” Ao contrário, porém, das palavras de seu autor, em Passageiros da Estrela, o que se vê, dessa vez para uma plateia infantil, é mais uma representação do índio brasileiro que soa falsa do início ao fim. O que se tem em cena, basicamente, é um acúmulo de lugares-comuns sobre “Amor”, ditos por personagens vestidos de índios. O índio brasileiro está presente apenas na exterioridade dos trajes, nomes de personagens e referências lendárias, nada que permita ao espectador infantil revisar o que aprende na escola sobre essa parcela quase extinta da população brasileira. Nada que permita aflorar O que as culturas indígenas têm de particular. Tudo em prol de um pretenso humanismo, enunciado a todo instante em falas como essa: “vai ver que todas as florestas apesar de diferentes são uma só”. Fala aparentemente “liberal”, não dando margem, contudo, a que se indague o “por quê” de, igualmente “humanos”, estarem os índios tão despossuídos. Mas isso não parece preocupar muito os personagens de Passageiros da Estrela que falam apenas de amor. Mesmo essa fachada amorosa e humanista tem, no entanto, seus deslizes. Como quando o Curupira começa a rodopiar de maneira risível e Caru (bem interpretado por Sebastião Lemos) pergunta de modo irônico: “que é isso, Curupira? Tá recebendo o santo?”. De repente, gestos desconexos e meio ridículos adquirem sua significação quando referenciados ao candomblé ponto acrescenta-se assim uma preconceituosa pitada de Cultura Negra ponto estranho deslize num espetáculo que pretende dar voz a uma outra cultura marginalizada, a indígena.
Não é de estranhar, entretanto, se observamos que a própria cultura indígena serve apenas de cenário para a repetição de velhos valores como a crença na predestinação (“um dia você vai crescer e ter uma filha chamada Ceuci”) ou uma concepção folhetinesca um único e eterno amor (“o meu beijo é só de Ceuci”). Repetição que se faz acompanhar de uma linguagem teatral igualmente pouco interessante aos olhos dos espectadores infantis. A direção de Lauro Góes não consegue produzir uma movimentação capaz de suprir as deficiências do texto, e acaba por repeti-las. São monólogos longos que se sucedem numa impostação demasiado trágica e com muita pouca ação, fazendo dos efeitos visuais, estouros e explosões, os momentos mais apreciados de um espetáculo cuja produção esmerada não é suficiente para evitar o que mais parece uma encenação dos insuportáveis quadrinhos “Amar é”, apenas com uma diferença: personagens vestidos de índios.