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A Importância…

Por essa e outras razões, pensar um teatro infantil ou, como preferem muitos, um teatro dirigido às crianças, implica pensar a forma pela qual podemos permitir e garantir às crianças um lugar e uma linguagem diferenciada que as auxiliem na descoberta de suas próprias linguagens. Um lugar e uma linguagem que permitam suporem-se diferentes do que lhes é dado ser cotidianamente; que permita aprenderem o quanto antes a se tornarem sujeitos e não objetos da cultura.

Peter Brook (Cuadernos de investigaçion teatral, nº. 229 Caja de Madrid, 1989), da mesma forma que Jorge de Sena pensando a personagem teatral como a mais livre e a mais liberta, comparando-o ao universo imaginado nas brincadeiras infantis, considera que são elas – as crianças – que compõem o público teatral mais livre: o público que responde com maior vitalidade às novas formas teatrais.

Para o encenador inglês, representar para as crianças é vitalmente importante e a clássica divisão de um teatro de adultos – produzindo eventualmente funções infantis – e um teatro especial para crianças, não pode continuar sendo legitimada por muito tempo. Ao contrário, urge um teatro em que trabalhar para crianças tenha seu lugar natural em um trabalho regular de adultos: os mesmos atores, escritores, diretores, desenhistas, movimentando-se continuamente através de distintas esferas sem restringirem o teatro a um determinado grupo de espectadores. Só assim, estaríamos dando lugar a um teatro criado sobre a base de um novo público. Um teatro cuja intenção está em servir a todos que vejam nele uma possibilidade de renovação pessoal e, por que não dizer, um teatro cuja a razão de ser reside, quem sabe, na possibilidade da renovação coletiva.

Muitas discussões já foram feitas sobre como um espetáculo para crianças poderia ser montado, quais seus objetivos, “mensagens”, estéticas e metalinguagens.

Cada vez mais me inquieta o fato de que estas discussões pouco têm contribuído para a verificação de modificações significativas no que se refere a esse tipo de espetáculo e seus objetivos reais. Cada vez mais observo a “picaretagem” em montagens de qualidade abaixo do mínimo aceitável para se chamar de teatro e, o que mais me intriga, é que a criança cada vez mais abandona as salas de espetáculos porque acaba não se identificando com aquilo que está no palco.

As crianças são vistas pela maioria absoluta das montagens no Brasil, como que sacralizadas, e de uma candura que realmente, aí sem, menospreza qualquer pessoa que vive neste mundo e neste tempo.

Não estamos mais no século dezenove, nem queremos mais a criança subserviente às vontades e sonhos dos adultos. Mesmo que queiramos, as próprias crianças já fazem suas opções muito mais cedo do que nós fizemos no passado. Ignorar isso é colocar a criança num patamar de desvinculação com tudo que a cerca.

Montagens teatrais têm persistido em olhar no passado as referências de uma criança que não existe mais, que bem ou mal, foi abandonada com a era da informática, da violência urbana sem precedentes, da novas escolas teóricas da alienação neoliberal, da televisão nos quartos, do videogame que prende muito mais a atenção do que um espetáculo teatral que ainda sonha com um mundo de flores, lutas inglórias, bruxinhas más e fadas que salvam sempre.

A criança de nossos dias convive com tudo aquilo que o final de século nos coloca a frente, desde inovações tecnológicas até a miséria absoluta nos guetos e nas grandes cidades, além de guerras e lutas travadas com traficantes em plena luz do dia e para quem quiser ver.

Essa é a criança que vê na praticidade do dia-a-dia uma coisa positiva, onde até mesmo os trabalhos escolares já perderam o “glamour” de tempos atrás porque significava pesquisa, agora basta acessar um programa de computador e temos o trabalho pronto depois de algumas clicadas. Podemos ignorar isto?

Podemos, sim. Mas, corremos o risco de abrir espaço para aqueles que pouco estão se importando com as vinculações sérias e que façam pensar. O que importa a esses comerciantes de artigos culturais é a casa cheia e uma bando de seres que não vão servir para pelo menos encarar a realidade de forma mais crítica. Não estou falando de televisão que já vêm cumprindo este papel há muito tempo, estou falando dos grupos de teatro que vêem na criança um amontoado de cifrões e níqueis e descobriram, antes dos outros artistas de espetáculos para crianças, onde está a mina de ouro e do que a criança gosta de assistir.

Isto tudo, infelizmente moldado de forma a continuar o preconceito e o “status quo” tão interessante aos meios alienantes em que vivemos.

Esse tipo de espetáculo, se é que pode ser chamado assim, consegue sobreviver a este mar de indefinições, porque as crianças são levadas de forma torpe e equivocada a assistir uma montagem com um grau de agressividade, crueldade, preconceito e a construir um pensamento maniqueísta que, querendo ou não, ela já está acostumada a ver na rua e em casa através dos meios de comunicação que são acessíveis a todos, indistintamente.

Obviamente que a criança também é cruel, preconceituosa e agressiva, e não poderia ser diferente, ela não é um alienígena, ela convive e está inserida na sociedade, portanto, temos que saber conviver com esta situação e encontrar uma saída pelo menos que leve a criança a pensar sobre o seu mundo de forma crítica e não observando espetáculos que ignoram o cotidiano social e criam uma névoa indecifrável e identificável, passando a ser não um espetáculo teatral, mas sim um desserviço social.

Isto não é pessimismo. Isto é simplesmente pontuar uma situação que já chega ao ridículo de termos que aceitar a “picaretagem” em todos os níveis do teatro para criança e buscando no velho e encarquilhado discurso da subjetividade das representações do mundo infantil as respostas mais distantes e de uma separação entre o vivido e o desejado. Desejado esse em nossas cabeças de adultos.

Claro que a subjetividade é importante, mas a objetividade e a realidade também.

Será que o teatro para criança está fazendo com que o público pense sobre seu tempo e sobre seus novos paradigmas? Sinceramente, pouco tenho visto neste sentido. Cada vez mais fugimos da discussão e do questionamento sobre o que realmente a criança está vendo ao seu lado e o que nós desejaríamos que fosse o mundo que mostramos no palco. O mundo não vai mudar seus rumos porque nós assim o desejamos. O mundo e suas relações, permanências e rupturas vão continuar, e as crianças que nascerão, já nascerão neste mundo, elas já pegarão a carruagem voando, o mundo não espera para a criança compreender o que está acontecendo. Ela tem que se “virar”.

Por isso a minha preocupação em pensar que o teatro pode ser o catalisador destas dúvidas das crianças e o crítico desta situação em que todos vivenciamos, tratando de assuntos polêmicos, que muitos ainda hipocritamente dizem que as crianças não podem discutir, mas que ela vê todo dia na esquina de sua casa e muitas vezes embaixo de seu teto, quando ela o tem. Neste sentido, parece-me que o teatro estaria cumprindo um papel menos alienante e no mínimo mais inquietante.

Não quero que meu discurso pareça marxista demais, mas realmente a cada dia novas dúvidas me surgem sobre o papel fundamental do teatro para crianças e seus novos paradigmas. Dessacralizar a criança me parece ser um desafio bastante instigador.

Morte, sexo, desenho animado, drogas, violência, parques de diversão, suicídio, estupro, AIDS, corrupção, sequestro, chocolate, perdas, desencontros, notas baixas na escola, traição, brinquedos (que também quebram), falsidade, maquiavelismo, futebol, dores, desemprego, assassinatos, andar de bicicleta, jogar videogame, brigar com o amigo por causa da namorada, genocídio, massacres, acidentes aéreos, navegar na internet e navegar em um pedalinho num lago. Tudo isso é um pouco do mundo em que vivemos, adultos e crianças, não separadamente. Porque os espetáculos para crianças ainda teimam em querer mostrar somente o bem, e quando mostra o mal, inventa uma bruxa qualquer ou qualquer outra coisa apenas alegórica para demonstrar que o mundo também é ruim. Isto é ridículo, ou para não ser tão objetivo, é ingênuo.

Sabemos quem são os inimigos do mundo que sonhamos sem injustiças e desigualdades tão gritantes, sempre foram os mesmo, e com certeza eles nunca se vestiram de bruxas, nem falavam com voz de “bandido”, muito pelo contrário, eram risonhos e nos passavam a mão na cabeça. Eles estão em todos os lugares. Infelizmente as crianças não conseguem identificá-los, porque na peça que ela foi ver “ontem” os maus não riam como pessoas normais e nem eram afáveis com elas, muito pelo contrário, gritavam o tempo inteiro e se mostravam maus desde o primeiro momento, muitas vezes porque a “mocinha” ou “mocinho” diziam.

Que crianças queremos? Alienada ao seu tempo? Muito bem, estamos no caminho certo, talvez o futuro construirá uma máquina de tempo e as crianças poderão ser jogadas para alguns séculos atrás, e aí sem o teatro para crianças terá cumprido seu papel histórico e social.

Vou aproveitar o momento para também questionar os projetos de “teatro vai a escola” e seu discurso de formação de plateia. O que falei acima sobre alguns produtores culturais que veem a criança como níqueis, eles se encaixam aqui.

Primeiro esses projetos já existem há mais de 10 anos. Uma criança que viu um espetáculo quando tinha 10 anos agora tem 20 anos. Onde ela está? Com certeza, não está assistindo um espetáculo teatral, se assim fosse teríamos nossos teatros sempre lotados e um público muito criativo e ativo. Este discurso não pode convencer mais.

A maioria dos espetáculos que são levados nas escolas são de uma falta de estética, texto e interpretações que são de indignar qualquer um que tenha um mínimo de didatismo e as lições de moral que estão nos discursos destas peças são realmente um verdadeiro assombro a nossa capacidade de compreensão. Mas, tudo pela “democratização” da arte. Que arte? Que democratização? Aí sinto cheiro de picaretagem e mau caratismo. Infelizmente, pouco ou quase nada se faz contra isto. Mesmo o que se faz ainda é pouco, temos que ser mais radicais e sair da falácia da pós-modernidade onde tudo vale, sendo este um ótimo porto aos pouco criativos e muito espertos.

Quero deixar claro que, temos muitos grupos sérios em nosso país, mas tenho certeza que para estes, quando lerem este artigo, a carapuça não servirá. Aqueles que se sentirem agredidos, paciência. O mundo também tem incompreensões.

Ah! A criança também vive com incompreensões. O 1º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau foi sem dúvida um bom local para as discussões que aqui explicito, e nos mostrou uma boa parte do que está se fazendo com os espetáculos para crianças no Brasil. Parabéns!

Dessacralizar a criança de forma a não imbecilizá-la e aliená-la um grande paradigma para este grande final de século.

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Lourival Andrade
Professor e Diretor de Teatro

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 1º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (1997)