Matéria publicada no Jornal O Estado de São Paulo
Por Dib Carneiro Neto (*) – São Paulo – 10.01.2013

Para crianças, uma rota coerente e corajosa

Um dos requisitos fundamentais para uma companhia de teatro que deseja longevidade no atribulado caminho do teatro para crianças e jovens é saber o que quer -com muita convicção – e seguir por essa trilha, muitas vezes íngreme, sem abdicar de coerência. Essa é a chave para compreendermos a rota de dez anos da Cia. O Grito, que, vez ou outra, também pega o atalho do teatro para adultos. Capitaneados pelo diretor Roberto Morettho, eles sabem o que querem e, a partir dessa certeza artística, vão em busca das escolhas mais adequadas.

Na trajetória de uma década, o grupo soube escolher temas fortes e pertinentes – e também acertou na seleção de textos e dramaturgos. Junte-se à fórmula um elenco afinado e equilibrado e um diretor que encara o espaço cênico como “o lugar do jogo, da brincadeira infantil, da eterna recriação da vida”. Pronto.
São bastante corajosos os temas de predileção do grupo: morte, perda, separação, enfermidades, medos de todos os tipos. Mesmo quando veste a roupagem amena e divertida das fábulas protagonizadas por animaizinhos ‘fofos’, a companhia não abandona a essência dos assuntos tidos como tabus no teatro infantil. Foi assim, por exemplo, com O Caso da Casa, em que Andrea Manna (no papel de onça) e Alessandro Hernandez (no papel de um bode) magnificamente retrataram a dificuldade das relações neste mundo de intolerâncias. Os autores, Hugo Possolo e Carmo Murano, foram muito felizes na releitura da fábula milenar em que onça e bode moram na mesma casa, sem saber um da existência do outro.

Com o mesmo casal de atores e o mesmo autor, Possolo, o tema de Marujo, o Caramujo e a Minhoca Tapioca foi a separação dos pais, um assunto bem árduo e doloroso, com direito a muitas lágrimas, mas que a companhia soube tratar com metáforas inteligentes e boa dose de sensibilidade. O filho do casal, por exemplo, era simbolizado por um objeto extremamente prosaico: um porta-durex, fugindo por completo da linguagem naturalista.

Em seguida, A Terra Onde Nunca se Morre mostrou que é possível falar de morte para o público infantil. Fábula italiana presente na compilação de Italo Calvino e retirada originalmente do livro de Arrigo Balladoro, com tradução de José Guida e primeiro tratamento dado novamente por Possolo, conta a história de um garoto que quer descobrir como ser eterno e, em sua empreitada, se depara várias vezes com a morte disfarçada de outros personagens.

O medo de morrer persiste no rol de temas da Cia. O Grito. Uma menina careca, por estar em tratamento de quimioterapia, lindamente interpretada por Léia Rapozo, e um garoto que tem medo de ser rejeitado por usar óculos desde cedo, mais uma vez bem defendido por Alessandro Hernandez, formaram os protagonistas de O Armário Mágico, que marcou a estreia no teatro para crianças de outra competente dramaturga, Paula Chagas Autran. A direção nunca deixou que a trama pesada caísse no pieguismo.

Mais medos – agora de fantasmas, de escuro, de seres do ‘outro mundo’, dos segredos do além. Em 1001 Fantasmas, outra excelente opção: apoiar toda a dramaturgia no livro homônimo da já veterana Heloisa Prieto, excelente autora de literatura para crianças. Uma atmosfera sombria dava o tom no palco, com trilha de suspense e corajosos momentos de blecaute no palco. Tirando um Som na Garagem, para jovens, sobre o universo temático adolescente, teve uma longa carreira por vários teatros e também faz parte de um repertório de acertos da trupe. E, com estreia prevista para breve, nova investida no tema da rejeição e a entrada na dramaturgia – pela porta da frente – do ator Alessandro Hernandez, com Filhote de Cruz Credo, peça livremente inspirada em livro de Fabricio Carpinejar. Como se vê, coragem, coerência e convicção – três Cs – permanecem na rota da cia. O Grito. Que venham, então, mais e mais décadas de trabalho.

(*) Dib Carneiro Neto é jornalista, dramaturgo, autor de Pecinha é a Vovozinha, entre outros