Neste texto relato algumas percepções minhas e de meus colegas da Cia. Experimentus, Marcelo F. de Souza e Sandra Knoll, a respeito da oficina De Olho na Cena: Analisando Espetáculos Teatrais, que ministramos no último FENATIB com uma turma de educadores.
Há algum tempo tínhamos o interesse de desenvolver uma oficina cujo objeto fosse a discussão de espetáculos teatrais com educadores, pois, desde o princípio do trabalho do grupo, o vínculo com a escola sempre foi muito forte, seja por muito apresentarmos nossos espetáculos neste âmbito ou por atuarmos como professores em espaço diversos, como as aulas de teatro fora da grade curricular (as chamadas escolinhas de teatro) e o curso que ministramos desde 2003 na Casa de Cultura Dide Brandão, em Itajaí. Além disso, desde 2004 começamos a desenvolver trabalhos de formação continuada (01) com educadores da rede pública de Itajaí e região, trabalhos que nos impulsionaram a desenvolver experiências diversas e experimentar diferentes estruturas metodológicas.
Nosso percurso como educadores neste grupo, portanto, inicia-se com experiências de introdução teatral com alunos de âmbitos e faixas etárias distintas, e posteriormente, começa a se voltar a introdução teatral para educadores, por meio de oficinas cujo objetivo têm sido propor sistemas e estruturas (a partir de bibliografia e práticas já bastante conhecidas) que possam ser adaptadas ao contexto escolar. Estas práticas com alunos-educadores, e nossa intensiva apresentação de espetáculos no âmbito escolar nos fez observar uma série de problemas no que diz respeito à recepção do teatro no contexto da escola. Percebíamos, ao apresentar no âmbito escolar, que pouco se aproveitava da experiência teatral ali desenvolvida, o que, com o passar do tempo, e depois de muita “troca de figurinhas” com outros artistas e grupos que se dedicam ao teatro para este público, fomos percebendo ser este um fator comum também em outros estados brasileiros. A apresentação de espetáculos no contexto escolar parece ser assimilada apenas como um lugar de entretenimento ou de transmissão de alguns conteúdos que poderão ser aproveitados pelos professores em suas disciplinas. Assim, percebíamos que a fruição e a análise de espetáculos pareciam tidos como aspectos muito díspares, e ambos alheios às práticas em sala de aula, ainda mais se pensarmos que o Ensino de Arte no Brasil é dominantemente voltado para a prática das Artes Visuais. Parece interessante notar, no entanto, que nesta linguagem podemos perceber um frequente exercício de leitura e análise de telas, gravuras, entre outras modalidades explorando não apenas uma análise subjetiva destas obras, mas também um exercício de desconstrução destas imagens, desvendando seus procedimentos técnicos, o que parece alimentar nos educandos um olhar para a relação processo-produto. Parecia-nos que um exercício semelhante no campo teatral, ou seja, a desconstrução de espetáculos, poderia fomentar um melhor aproveitamento do teatro na escola. E quando falamos em desconstrução, pensamos justamente em dividir a obra teatral em seus diversos elementos estruturantes, visando uma análise que buscasse ultrapassar o usual “achismo” com o qual se costuma falar do teatro.
No ano passado, a organização do FENATIB desejava desenvolver uma oficina de análise de espetáculos voltada para educadores, então elaboramos uma proposta cujo objetivo seria analisar diariamente um espetáculo assistindo por oficinantes e oficineiros numa mesma sessão.
O primeiro momento da oficina partiu de uma breve exposição de cada uma das funções dos elementos cênicos que abordaríamos: texto, direção, atuação, iluminação, sonoplastia (ou trilha sonora), figurino, cenário, entre outro, delimitando, assim, alguns princípios de análise, cujas distinções poderiam ser melhor compreendidas durante o percurso da oficina, isto é, através do próprio exercício de desconstrução. Após esta primeira passagem pelos elementos de análise, começamos, num único círculo de cadeiras, uma análise coletiva do primeiro espetáculo, detalhando ponto por ponto da obra. Este primeiro dia revelou o quão desconfortável era este tipo de análise para os oficineiros, uma vez que não estávamos ali apenas para conversar sobre nossos gostos, e sim para analisar a coerência dos elementos cênicos. Neste primeiro dia ficava claro certo choque entre “o que eu gosto na obra” e “o que eu acho coerente nela”, o que não significa que deixávamos de considerar nosso gosto dos oficineiros em relação à relação obra, pois, nós mesmos, os oficineiros, tínhamos divergências quanto aos gostos. No entanto, um aspecto que nos ajudava a tomar certa distância da obra a ser analisada era o que chamávamos de coerência, o que levantou durante a oficina questões como: é coerente o uso deste recurso para este texto? É coerente o uso deste cenário numa peça que aborda o tema desta maneira? A coerência, portanto, não poderia ser analisada sem que lêssemos, antes de tudo, a proposta de cada grupo para cada espetáculo, exercitando a análise do ponto de vista do que o grupo se proponha a fazer, e não a partir do que gostaríamos de ver no palco. Este exercício foi de suma importância para que, pudéssemos pôr nossos gostos um pouco de lado, nos atendo a uma análise do quanto a proposta do grupo conseguia atingir.
Introdução dos elementos de análise; distinções entre “o que gosto” e “o que acho coerente”; relações entre a proposta do grupo e seus resultados: estava armado o território para bagunçar nossas cabeças durante uma semana.
No segundo encontro, dividimos a turma em duplas, e cada dupla tinha cerca de vinte minutos para discutir sua percepção sobre dois elementos cênicos da obra, assim, uma dupla ocupava-se de discutir, por exemplo, sobre texto e direção, uma outra sobre figurinos e atuação, etc. Em seguida trazíamos ao grande grupo as anotações do que cada dupla percebeu, e assim, nós, oficineiros, mediávamos a discussão sem tecer comentários que influenciassem, neste primeiro momento, as opiniões de cada um, já que não nos interessava desenvolver tal oficina para que todos saíssem com uma mesma opinião “correta” sobre o espetáculo do dia, e sim para que pudéssemos estimular uma percepção mais detalhada sobre a obra, o que nos colocava diante de uma experiência bastante distinta, pois muitas vezes deixávamos que a discussão tomasse rumos imprevisíveis, e amarrávamos a os pontos levantados somente no momento final, para que nossa opinião não fosse tomada como um veredicto. Neste sentido, muito nos ajudou que tivéssemos (eu, Marcelo e Sandra) impressões bastante distintas, pois uma vez que os próprios oficineiros discordavam entre si, a possibilidade de um veredicto era cada vez menor.
Assim, as dinâmicas em cada dia eram alternadas, criando formas distintas de expor as recepções de cada um. No quarto dia, por exemplo, cada pessoa assumia o papel de um dos criadores da equipe do espetáculo analisado e, como se concedesse uma entrevista ao restante do grupo, deveria argumentar sobre, um exercício que revelou, então no penúltimo dia de trabalho, um avanço na compreensão das distinções entre a cada elemento cênico.
A partir das discussões pudemos perceber algumas ideias que nos pareciam muito fechadas sobre o teatro para crianças, como: teatro pra crianças tem que ser colorido; teatro pra criança deve ser sempre animado ou fazer uso de muita música; quanto mais caricato for a trabalhar do ator, melhor se aproxima o espetáculo do público infantil. Felizmente, a programação trazia espetáculos de linguagens distintas, e no último dia da oficina, o espetáculo O Menino que não se Chamava João e a Menina que não se Chamava Maria, da Pardos Produções (Rio de Janeiro), trazia elementos que geraram certa ruptura no andamento da oficina. Nos perguntávamos até ali: será que um espetáculo com pouca inserção musical (ou com uma trilha não exatamente animada), que mostrasse personagens mais próximos do real, ou que utilizasse cenário e figurinos de poucas cores, ou cujo recurso narrativo não fosse o de “um grupo que vem contar uma história”, o que é bastante comum e eficiente junto a este público, será que um espetáculo que fugisse destes elementos, não poderia ter um bom apelo junto ao público infantil?
A montagem carioca O Menino que não se Chamava João e a Menina que não se Chamava Maria propunha uma versão atual da fábula de João e Maria, onde duas crianças fogem de suas famílias para viver na rua, abordagem que sugere diversos paralelos com assuntos que, em geral, se pretende esconder das crianças, em especial das de classe média, que parecem compor uma grande parte do público do teatro infantil hoje. Trata-se de um exemplo que surge no último dia da oficina, cuja abordagem soa como um respiro isolado no contexto de espetáculos que analisamos (o que não diz respeito a toda programação do festival, pois analisamos apenas cinco espetáculos). Um espetáculo de menos cor, trilha distinta, iluminação sóbria, atuações quase realistas, e uma abordagem impactante de uma fábula conhecida, elementos atípicos quando pensamos na maioria dos trabalhos destinados ao público infantil. Isto não significa, entretanto, que toda boa montagem para crianças necessita de um tema deste impacto social, ou que todo bom espetáculo é aquele que rompe com tudo que é tido como funcional. O que parece curioso é que tivéssemos, no último dia de oficina, um exemplo tão distinto de criação teatral que, ao estabelecer outras opções estéticas para um espetáculo infantil, gerasse uma discussão amplificada nesta semana de linguagens e temas tão variados. Nestes cinco dias pudemos experiência uma discussão embasada pelo material ali presente, as obras teatrais, concretizando uma experiência efêmera como o próprio teatro, pois, se o objeto de análise fosse um conjunto de espetáculos muito distinto deste, poderíamos estar diante de um percurso extremamente diferente.
Como já se mencionava ao início deste texto, não era nosso interesse estimular uma noção sobre que teatro deve ou não ser feito e / ou visto, ou que opinião se deve ter a respeito do teatro infantil, portanto, os veredictos não caberiam nesta oficina. Assim, mais do que fazer os oficineiros voltarem pra casa com um “pensamento-formado-sobre-teatro” (o que poderia ser arrogante, e pouco eficiente) nos interessava fomentar um olhar mais minucioso, gerando um primeiro estranhamento.
A partir dos depoimentos dos oficineiros e da percepção que tivemos de suas análises, pudemos observar o quanto o confronto com a diversidade dos trabalhos mostrados ajudou-os a perceber a complexidade de um processo de criação teatral. O exercício de desconstrução do que se vê parece ajudar também a repensar as funções do teatro no contexto escolar, colocando os gostos de lado (apenas por um momento) e exercitando um olhar mais afinado e questionador. Nada novo apenas uma apropriação de elementos, teorias e práticas já conhecidas, numa experiência que começa a se desenhar aqui. Trata-se de um campo ainda em explorações iniciais, uma experiência tão incomum para nós quanto para os oficineiros, mas que deixa alguns rastros que gostaríamos de compartilhar.
(01) Denominação utilizada por algumas secretarias de educação do estado de Santa Catarina para as atividades realizadas como complemento de formação dos professores da rede pública.
Daniel Olivetto
Ator e diretor da Cia. Experimentus Teatrais, Itajaí, Santa Catarina.
Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 10º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2006)