No País dos Prequetés, de Ana Maria Machado, em cena no Teatro João Caetano

Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Flora Sussekind, Rio de Janeiro, 14.09.1979

Barra

Jogo e Trabalho no País dos Prequetés

A figura de Robinson Crusoé costuma servir de molde para a representação ficcional da criança, quase sempre envolvida nas histórias infantis em viagens, perigos e aventuras. A criança não é, no entanto, nenhum Robinson. Mesmo quando envolvida em aventuras como as de Nita, a menina que em O País dos Prequetés, peça de Ana Maria Machado em cartaz no Teatro João Caetano, resolve correr mundo para descobrir se em toda parte existem aqueles que mandam e os que obedecem. Mas Nita não está só nem vive numa ilha. O que não impede que a peça apresente a trajetória da menina no seu duplo aspecto de viagem pela fantasia infantil e de contato com as soluções que se lhe apresentam no mundo em que vive. E, se são o jogo e a brincadeira que servem de molde para a encenação de José Roberto Mendes, os gestos infantis oferecem não uma imagem do reino mágico e isolado da pura fantasia, mas uma representação lúdica da sociedade a que pertencem. Talvez este seja o principal mérito do espetáculo, o de enfocar a criança como fazendo parte de um povo, de um grupo determinado e estabelecer para sua trajetória contornos mais amplos que os da aventura individual. No que encontra uma bela realização cênica, sobretudo no cenário de Sérgio Silveira e Lídia Kosovski, onde se aponta, como no texto, para a ação do trabalho e da fantasia do homem. Daí a utilização de estruturas constantemente reorganizadas pelos atores, e de materiais como o bambu, a esteira e a palha, que possam sofrer diferentes transformações.

O espetáculo se inicia como uma série de jogos, como o bento-que-bento-é-o-frade, a dança das cadeiras e as brincadeiras de roda, onde não faltam as brigas habituais para ver quem ganhou e as discussões travadas entre Nita e seus companheiros sobre a necessidade ou não de obediência a todas as regras. A brincadeira, momento em que em geral as fantasias e invenções individuais adquirem caráter grupal e o divertimento surge como produto da convivência dos diversos participantes, dá margem a que nela transpareçam as mesmas relações de poder que dominam a vida social. E Nita acaba achando que não se deve obedecer a tudo que seu mestre mandar. Viaja e chega ao país dos Prequetés, lugar onde tudo era permitido. Mas, no meio de uma brincadeira e de um jogo de paradoxos com os estranhos habitantes do lugar, descobre uma regra que, mesmo anárquica, não deixava de incomodar. Lá não se podia dizer não pode. Paradoxo que leva Nita a concluir que às vezes o não pode, pode. Ou seja, que se aceita pela comunidade, algumas regras são válidas. Deixa então os prequetés e chega a um lugarejo onde assiste a um mutirão. E, num misto de festa, jogo e trabalho, quase como nas brincadeiras de Nita com os amigos, os trabalhadores encontram no mutirão a possibilidade de se apropriarem do espaço em que vivem e de transformarem a convivência comunitária numa mistura de produtividade e de prazer. Ao contrário da aventura solitária de Robinson Crusoé, Nita abandona sua trajetória e volta para o seu grupo de amigos, trazendo a experiência de convivência comunitária a que assistira no mutirão. Aproximando-se assim as experiências do jogo e do trabalho, como momentos em que a ação, com seu caráter coletivo, se pode converter em instrumento de transformação de regras que não sirvam mais, seja nas relações de trabalho, seja na brincadeira.

Interessante observar como à dupla orientação de Nita, ora no sentido de uma trajetória individual, ora na direção de um pacto coletivo; corresponde idêntica oscilação de tom na representação dos atores. No que se combinam a direção de José Roberto Mendes, a direção musical de Cláudio Guimarães Ferreira e a coreografia de Raquel Levi. E se alternam os gestos quase rituais do trabalho e do jogo, e a liberdade da mímica de atores que representam as figuras noturnas que desaparecem com o nascer do dia e se movimentam ao estilo do Mummennschanz. Nessa oscilação, como em todo o espetáculo, se apresenta muito bem o elenco, com destaque para Sônia Braga e Sérgio Fonta. O único problema é o som que está obrigando os atores a forçarem demais a voz. O que pode ser resolvido com a utilização de mais alguns microfones. E não chega a prejudicar o encantamento da plateia que, ao final, transforma o espetáculo em festa.