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Resumo

O presente texto constitui uma reflexão acerca dos processos de leitura envolvidos na recepção do espetáculo teatral, a partir do que nos apresenta Vicente Jouve, na obra A leitura. Abordaremos os processos neurofisiológicos, cognitivos e afetivos, relacionado-os às especificidades da linguagem teatral, com o objetivo de percebermos em que medida eles possibilitam compreender o contato com esta arte num momento de leitura em que estão envolvidas diversas linguagens.

Palavras-Chave

Leitura. Linguagem Teatral. Recepção.

1. Considerações Iniciais

Presenciar a encenação do texto teatral, além de ser um momento lúdico e descontraído insere o espectador num amplo contexto de leitura, onde são colocadas em jogo capacidades leitoras diversas. A linguagem teatral se constitui na confluência de outras, ou seja, ela é a soma da verbalização do texto, da atuação dos atores e dos diversos elementos cênicos (cenários, figurinos, luzes e sons) de que o teatro contemporâneo dispõe para transformar o texto dramático em encenação. Na recepção da referida linguagem, o espectador precisa atualizar os diversos elementos que chegam até ele, processo esse que caracterizamos como amplo, pois envolve A leitura em diversos e distintos aspectos.

Vicente Jouve, no seu livro A leitura (01), discute diversos aspectos em torno dA leitura do texto escrito, afirmando, inicialmente, que se trata de uma atividade complexa e plural, e que se desenvolve em todas as direções. Mesmo que suas considerações se relacionem a princípio, ao texto escrito, neste trabalho, vamos relacioná-las aos processos leitores no âmbito da recepção do espetáculo teatral.

No primeiro capítulo de seu livro, intitulado O que é A leitura?, Jouve se fundamenta nos estudos de Gilles Thérien1 (02), que vê nA leitura um processo com cinco dimensões, das quais vamos direcionar três – processo neurofisiológico, cognitivo e afetivo – à leitura enquanto recepção do espetáculo teatral. (03)

2. Um Processo Neurofisiológico

Ao se referir ao processo neurofisiológico, Jouve afirma:

Nenhuma leitura é possível sem um funcionamento do aparelho visual e de diferentes funções do cérebro. Ler é anteriormente a qualquer análise do conteúdo, uma operação de percepção, de identificação e de memorização dos signos. (04)

A encenação de uma peça teatral é a transposição do texto dramático, composto de diálogos e rubricas para o plano da representação cênica. Por esse motivo é importante salientar que o processo neurofisiológico não poderia ficar restrito a audição dos diálogos, uma vez que, no conjunto, na composição geral do espetáculo, o texto é somente um dos signos a serem recebidos e, muitas vezes, de menor importância que os demais. Jouve prescreve o desenvolvimento dA leitura a partir da apreensão de signos, ou seja, de palavras, o que caracteriza o deciframento que o leitor faz do texto. Na recepção do espetáculo teatral esse deciframento corresponde ao reconhecimento das personagens e das linhas gerais da ação dramática, elementos que, contextualizados pela trilha sonora, pelo cenário, pelo figurino e pelo jogo de luzes, oferecem ao espectador uma idéia do clima e do som que envolve a história.

A menor importância que o texto falado tem no espetáculo teatral, confrontando-o com a sua importância no processo de leitura de um romance, também pode ser justificada pelo fato do espetáculo teatral, na sua intenção de reproduzir lugares, roupas e climas, já ser, por sua natureza, narrativo. Desse modo, podemos observar que o teatro possui uma narrativa visual (cenários, luzes, figurinos, adereços) que aos olhos do espectador recupera grande parte do trabalho do narrador, sendo processadas, então, informações que resultariam em muitas páginas, se as mesmas configurassem na narrativa escrita. E mesmo em espetáculos onde a cenografia e a iluminação são precárias, ou por motivos técnicos de concepção do espetáculo, reduzidas ou insuficientes, esse processo é percebido, pois a própria personagem teatral traz, em sua configuração particular, em sua partitura gestual e vocal, e mesmo em seu discurso, elementos que colaboram para a construção “além narrativa” da mesma. Portanto, a importância que o texto verbal escrito tem na recepção do romance e no espetáculo teatral parece ser dividida com os demais elementos que, concatenados, articulam a linguagem teatral.

As capacidades assinaladas por Jouve, de percepção, identificação e memorização são intensamente utilizadas na recepção do espetáculo teatral. E, uma vez que os signos em questão são os diversos elementos cênicos, que somados constituem a linguagem do teatro, a utilização dessas capacidades está ligada diretamente a eles.

3. Um Processo Cognitivo

Os aspectos apontados até agora já nos remetem, parcialmente, para a segunda dimensão do processo leitor, apresentado por Jouve: o cognitivo. De acordo com o autor, “depois que o leitor percebe e decifra os signos, ele tenta entender do que se trata. A conversão das palavras e grupos de palavras em elementos de significação supõem um importante esforço de abstração” (05)

A ideia de abstração, levantada pelo escritor, também é verificável na recepção do espetáculo teatral, pois o espectador está, o tempo todo, tentando abstrair os vários significados que as diversas interfaces da linguagem teatral, acionadas para determinada montagem, oferecem. NA leitura do texto verbal escrito Jouve prevê a “conversão de palavras e grupos de palavras em elementos de significação”. Na recepção do teatro, a compreensão do que é apresentado em seu espaço ocorre no esforço do espectador em converter cada elemento cênico em elemento de significação potencial: cenários, figurinos, luzes, gestos, diálogos ou monólogos; tudo pode ser lido e a recepção do espetáculo se constitui também num grande esforço cognitivo.

Ainda discorrendo a respeito da leitura, enquanto processo cognitivo, por meio da voz de Roland Barthes, o autor apresenta duas práticas de leitura distintas: a progressão, que “vai direto a progressão da história” e a compreensão, que valoriza o jogo de linguagem, um trabalho mais lento e detalhado. Relacionando esses dois aspectos à recepção do espetáculo teatral, podemos salientar que eles também se fazem presentes nesse processo. O primeiro aspecto, a progressão, é de suma importância, pois, no teatro, sempre há uma história sendo representada, o que faz com que este gênero se integre à unidade básica do modo narrativo (06) sempre preservando e respeitando a natureza específica de sua linguagem. Para que essa prática de leitura seja eficiente, o fruídor deve reconstruir a história narrada no espetáculo teatral, absorvendo, no plano geral da história, os elementos comuns a toda e qualquer narrativa: personagens, tempo, lugar e ação. O segundo aspecto, a compreensão, é a possibilidade que o espectador tem de perceber detalhes significativos no espetáculo, como a composição dos gestos, nuanças de luz, detalhes do cenário e figurino, que traduzem aspectos importantes da história e que se referem mais à composição estética da peça. Esse aspecto é a possibilidade do espectador perceber a constituição da linguagem teatral na sua essência; na recriação de uma realidade, no caso, um conflito, por meio da ação e do diálogo humanos e de alguns recursos técnicos utilizados.

Quanto a esses dois processos, é importante salientar que, nA leitura do texto verbal escrito, ambos podem ser realizados separadamente e em momentos distintos, ou seja, numa primeirA leitura, o leitor pode se preocupar com a progressão e, depois, pode retornar ao texto diversas vezes, procurando realizar A leitura da compreensão. Já no que se refere à recepção do espetáculo teatral esses processos acontecem simultaneamente, pois, dificilmente, o espectador vai assistir ao espetáculo por duas vezes visando separar os dois processos. Essa diferença ocorre por que, segundo João Francisco Duarte (07), a encenação teatral faz parte das “formas dinâmicas” presentes nas “artes dinâmicas” que, do mesmo modo que a música e a dança, se dão no tempo, ou melhor, tem um tempo específico para acontecerem. Desse modo, o espectador deverá prestar atenção à história, a qual se atualiza, permanentemente, diante de seus olhos e nos detalhes significativos da linguagem teatral que está sendo empregada para apresentar essa história. Podemos inferir que a recepção de uma “arte dinâmica”, que também constitui uma “forma dinâmica”, exige do fruídor um processo de leitura igualmente dinâmico e que una duas interfaces, previstas para A leitura do texto verbal escrito, em um único processo que, por esse motivo, se caracteriza como intenso e dinâmico.

Nesse sentido, podemos relacionar a dinamicidade dA leitura que percebemos na recepção do espetáculo teatral a uma colocação de Vicente Jouve, quando reflete a respeito do processo cognitivo em que A leitura está inserida: “o texto coloca em jogo um saber mínimo que o leitor deve possuir se quiser prosseguir A leitura” (08). Com relação à leitura de que tratamos aqui, ela também conta com um saber mínimo, por parte do espectador, para que o processo se desenvolva de modo satisfatório. Num primeiro momento é preciso que o leitor esteja familiarizado com a linguagem teatral, uma vez que, do mesmo modo que as diversas linguagens artísticas, ela exige uma iniciação e uma pré-contextualização. Está aí a importância da criança, desde cedo, entrar em contato com bons espetáculos teatrais, seja por iniciativa da escola ou da família.

Num segundo momento, o espectador, conhecedor da linguagem teatral, terá sua capacidade testada a cada peça assistida. E, como cada texto literário é um desafio para o leitor, mesmo que ele já conheça as características do seu gênero ou o autor em questão, se o espectador “quiser prosseguir suA leitura” deverá: processar o significado e a seqüência das ações, a ponto de recuperar a história que ali está sendo encenada; perceber em que medida e de que modo os figurinos e os cenários contribuem para o entendimento da mesma; como a iluminação e a sonoplastia delineiam e transmitem o clima e os efeitos de cada cena e, enfim, de que modo cada interface da linguagem do espetáculo teatral pode se tornar um elemento de significação para quem se propõe a assisti-lo.

4. Um Processo Afetivo

A leitura, enquanto processo afetivo, é apresentada, pelo autor, como um componente essencial da leitura em geral e, talvez, como o mais importante:

Se a recepção do texto recorre às capacidades reflexivas do leitor, influi igualmente – talvez, sobretudo – sobre a sua afetividade. As emoções estão de fato na base do princípio de identificação, motor essencial dA leitura de ficção. É por que elas provocam em nós admiração, piedade, riso ou simpatia que as personagens romanescas despertam o nosso interesse. (09)

De acordo com o que pudemos perceber, o autor se refere à leitura de ficção, mas, do mesmo modo que a personagem, do texto lido, provoca, no leitor, a piedade ou a admiração, a encenação teatral também a faz. A possibilidade da transmissão da história se dar por meio da representação das ações e, principalmente, pela presença física da personagem, no palco, reforçam o caráter afetivo que envolve o espetáculo teatral. A personagem, nesse contexto, ocupa um lugar de destaque, sendo, na configuração do teatro, elemento primordial. Rocha Filho oferece um respaldo teórico para analisar a importância da personagem. Em sua obra A personagem dramática (10), o autor investiga esse tema, oferecendo-nos uma visão panorâmica de situações históricas muito diversas na dramaturgia e na representação teatral. No primeiro capítulo, curiosamente intitulado “No reino do verbo de carne e osso”, o autor discorre a respeito da importância da personagem na dinâmica do espetáculo teatral:

A personagem em sua transmissão direta com o público nos parece ser a marca registrada do teatro, sua forma inconfundível. (…) Será, então a personagem agindo, móvel e palpável, em todas as dimensões do seu corpo, reconhecida e interpretada, literária ou histriônica, simbólica ou realista, que dará a medida da teatralidade. (11)

No teatro, tanto no texto quanto na sua encenação, nada existe fora da transmissão direta dos personagens. Os demais elementos podem oferecer uma narrativa visual ao espetáculo, enriquecê-lo ou melhorá-lo. Entretanto, não se justificam sem a presença da personagem. De acordo com o autor, a medida da teatralidade, tanto no texto quanto no espetáculo é a existência, a presença e a configuração da personagem. Relacionando as considerações de Rocha Filho ao que nos diz Jouve a respeito do envolvimento afetivo, nos processos de leitura, podemos inferir que ele se intensifica na recepção do teatro, constituindo um “jogo afetivo”, pois se trata da (representação) vida pulsando à nossa frente; onde as emoções, os sentimentos e ações das personagens “jogam”, diretamente, com o espectador que, dificilmente, não se sentirá impulsionado e motivado a se envolver nesse processo.

5. Considerações Finais

“Ler o teatro” é colocar em constante atualização todas as interfaces da linguagem teatral, desde a publicitária – o material de divulgação dos espetáculos – até a encenação propriamente dita, na sua forma geral, que conta com cenários, figurinos, luzes, sons, movimentos e, principalmente, com a configuração da personagem, viva e pulsante, transmitindo sua história diante da platéia. No teatro tudo tem significação e realizar umA leitura satisfatória do mesmo é perceber em cada um desses elementos a relação que eles mantêm com a história representada e com a linguagem utilizada na representação.

A “ida ao teatro”, no contexto escolar ou fora dele, deve ser encarada como um momento rico e intenso, e que está diretamente ligado à formação do leitor, principalmente por se tratar da recepção de uma linguagem tão peculiar. Quando se pretende formar leitores, na perspectiva ampla que a palavra “leitura” pode evocar, é preciso fazer da salas de aula um lugar que privilegie o contato e a integração das diversas linguagens, uma vez que a competência leitora do aluno é resultado das diversas linguagens com as quais ele teve contato durante toda sua vida e com as quais ele entra e entrou em interação em todo tempo de sua formação educacional familiar e escolar.

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Bibliografia

DUARTE, João Francisco. Fundamentos estéticos da educação. Campinas(SP): Papirus, 1998
JOUVE, Vicent. A leitura. São Paulo: UNESP, 2002
ROCHA FILHO, Rubem. A personagem dramática. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura (INACEN), 1986

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Notas

(01) JOUVE, Vicent. A leitura. São Paulo: UNESP, 2002
(02) Jouve aponta como bibliografia a obra “Por uma semiótica dA leitura”, de 1990
(03) Os outros processos envolvidos, segundo o autor, são o argumentativo e o simbólico
(04) JOUVE, op. cit., 2002, p. 17
(05) JOUVE, op. cit., 2002, p. 18
(06) É importante salientar que, pela narratividade, o texto teatral e a representação que ele projeta, vinculam-se às inúmeras narrativas do mundo. O ato de narrar apresenta-se na pintura, na escultura, na tapeçaria, na mímica, na dança, na representação cênica e na prosa de ficção, ele se instala através da linguagem pictórica, gestual, oral ou escrita, inscrevendo-se nos mais diferentes suportes.
(07) DUARTE, João Francisco. Fundamentos estéticos da educação. Campinas (SP): Papirus, 1998
(08) JOUVE, op.cit., 2002, p. 19
(09) Idem, p. 19
(10) ROCHA FILHO, Rubem. A personagem dramática. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura (INACEN), 1986
(11) ROCHA FILHO, op. cit., 1986, p. 15

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Fabiano Tadeu Grazioli
Mestre em Letras – Estudos Literários (Leitura e Formação do Leitor) pela Universidade de Passo Fundo/RS (2007). Especialista em Metodologia do Ensino da Literatura pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – Campus de Erechim/RS (2004). Autor do livro Teatro de se Ler: o texto teatral e a formação do leitor. Diretor de Teatro. Contato: tadeugraz@yahoo.com.br

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Obs.
Este artigo foi anteriormente publicado na Revista Voz das Letras (Universidade do Contestado, Concórdia/Santa Catarina) número 6, 1º Semestre de 2007